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Da conversão substancial do negócio jurídico

19/02/2008 às 00:00
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Dedicar-nos-emos, neste despretensioso artigo, a um exame perfunctório de expediente cujo valor, conquanto antes enxergado por visionários juristas pátrios, de alta sabedoria jurídica (a exemplo de Pontes de Miranda [01], Eduardo Espínola [02] e Antônio Junqueira de Azevedo [03]), foi, seguramente, realçado, a partir de sua positivação no Direito Brasileiro, com o advento do Código Civil de 2002.

O tema sói, para fins didáticos, acomodar-se na estrutura da invalidade dos negócios jurídicos, justamente porque concebido como artifício tendente a resgatar os ajustes entre partes juridicamente capazes do abismo formal que os vicia, retirando-lhes a validade e a aptidão para a produção dos efeitos almejados com a celebração do acordo.

Decorre a conversão substancial do princípio maior da conservação dos negócios jurídicos, matriz interpretativa que não apenas inspira, mas induz à criação de meios sanatórios de invalidades, tais quais, entre outros, a convalidação dos negócios anuláveis (artigo 172 do CC) e a redução de negócios parcialmente viciados (artigo 184 do CC), além, é claro, do instrumento legal objeto do presente estudo.

Contemplando-o em seu artigo 170, o Novo Código Civil, sanando a omissão do diploma civil antecedente, preconiza, após estabelecer a impossibilidade de confirmação e de convalescimento do negócio jurídico nulo, que:

"Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade".

Antes de avançarmos à análise dos pressupostos para o aproveitamento, sob outra roupagem, do negócio jurídico nulo, convém nos referirmos, em breve registro, ao influxo exercido pelos Códigos da Alemanha (BGB de 1900, §140) e da Itália (de 1942, artigo 1.424) no texto do Código Civil Brasileiro relativo à conversão, os quais, de resto, igualmente estimularam os legisladores da codificação civil portuguesa de 1966 (artigo 293).

Pois bem! A propósito dos pressupostos assentados no artigo 170 da lei civil brasileira como indispensáveis à conversão substancial do negócio jurídico, enumera-os o eminente professor JOSÉ DA SILVA PACHECO da seguinte forma:

"Para a incidência do artigo 170 do novo Código Civil exige-se a conjunção dos seguintes elementos: 1º) que haja um negócio nulo; 2º) que o negócio nulo contenha os requisitos necessários de outro negócio jurídico, e que esses requisitos necessários sejam apropriados a produzir efeitos jurídicos para satisfazer, razoavelmente, os interesses das partes; 3º) que o fim a que as partes tinham em vista leve à convicção de que elas teriam querido este novo contrato, em lugar daquele, que originariamente fizeram, se houvessem previsto a sua nulidade" [04]

Aproveitando-nos da didática sistematização do emérito jurista JOSÉ DA SILVA PACHECO, passamos a examiná-la, em cada um de seus itens.

Em primeiro lugar, diagnostica o dispositivo legal a necessidade de apuração da gravidade do vício que inquina o negócio de inválido, subsumindo-se o artigo 170 tão-somente às hipóteses objetivas de nulidade.

Dedicando nossas homenagens àqueles que admitem a conversão também quanto aos negócios anuláveis (citamos, a guisa de exemplo, os destacados professores PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO [05]), estamos com o já citado professor PACHECO, para quem, a partir do advento do Novo Código Civil, perderam campo os debates em torno da aplicação da medida saneadora em foco, por força da expressa injunção legal.

E não se cuida de examinar o texto legal segundo a franciscana – quando isolada – exegese gramatical. Não! Buscamos, na realidade, o sentido da norma enquanto elemento inserto em uma ambiência povoada de dispositivos reguladores de meios de solução de invalidades, em ordem a concluir que, para as nulidades relativas, previu o Código de 2002 a convalidação dos negócios jurídicos (artigos 172-176), e para as absolutas, trouxe o valioso expediente da conversão (artigo 170).

Conquanto nulo o negócio jurídico originário em função da ausência dos requisitos essenciais à sua constituição válida (por exemplo, compra e venda de bem imóvel de valor elevado por meio de instrumento particular), pode ele conter elementos bastantes à celebração de um outro ajuste (v.g., um compromisso de compra e venda de bem imóvel, que dispensa a forma pública), o qual, se na essência corresponde a negócio jurídico diverso, atende, quanto aos fins, àqueles objetivados pelos negociantes (no caso, o negócio jurídico dirigido à transmissão da propriedade imobiliária).

De sorte que a descoberta, no negócio inválido, de requisitos suficientes à configuração de outro, válido e servil à vontade das partes, consubstancia-se no segundo requisito legal arrolado pelo ilustre professor de quem colhemos em empréstimo a sistematização.

Por fim, encerra o dispositivo legal um requisito de natureza subjetiva, que se infere da expressão "quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o [negócio jurídico válido] teriam querido, se houvessem previsto a nulidade". Não impelindo o intérprete a um impossível juízo de certeza, autoriza-lhe a norma positivada suponha (recorrendo a um juízo de probabilidade), a partir da apreciação do desiderato propulsor da celebração do acordo, que aceitariam as partes o novo negócio jurídico, soerguido em meio aos entulhos da edificação de vontades desmoronada.

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Assim, em vista da impossibilidade de se extrair o teor dos pensamentos alojados secretamente na mente dos negociantes, como não se pode depreender da mente do homicida seu "animus necandi", permitiu a lei, de forma sensata, o recurso às circunstâncias e finalidades do negócio inválido, de maneira a se descortinar o provável escopo de manutenção pelos celebrantes, posto sob outra modalidade, de relação jurídica apta ao mesmo fim (nas palavras dos doutos portugueses, vontade hipotética ou conjectural).

Estudados os seus pressupostos, arriscamos formular uma singela conceituação de conversão substancial do negócio jurídico, rotulando-a de expediente legal por meio do qual, em homenagem ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, se aproveitam os elementos que, embora insuficientes para a consumação válida do ajuste originariamente querido pelas partes, são bastantes para a celebração de outro, consentâneo com o desejo que impulsionou os negociantes ao encontro jurídico de vontades, segundo se infere das circunstâncias e fins do negócio nulo.

Ao lado do exemplo copiosamente empregado a propósito do tema, a saber, o da conversão da compra e venda de imóvel por instrumento particular em compromisso de compra e venda, os cultos professores PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO apontam outros dois exemplos, extremamente pertinentes:

"(...) a nota promissória nula por inobservância dos requisitos legais de validade é aproveitada como confissão de dívida; a doação mortis causa, inválida segundo boa parte da doutrina brasileira, converte-se em legado, desde que respeitadas as normas de sucessão testamentária, e segundo a vontade do falecido (...)" [06]

No trabalho de pesquisa de subsídios para a abordagem do tema a que nos propusemos, observamos, notadamente na pesquisa por precedentes judiciais, que, a despeito da grande utilidade do expediente da conversão substancial do negócio jurídico, se afigura ainda demasiadamente tímido o emprego desse mecanismo sanatório de nulidade, merecendo a matéria, pensamos, maior difusão nos meios jurídicos e sociais, de forma a alertar o aplicador do Direito e a sociedade a respeito de sua magnificência.

Sim, porque – nunca é demais repisarmos – consiste a conversão em aparato de conservação de negócios jurídicos, prestigiando, em última análise, as expectativas jurídicas, sociais e econômicas que os circundam, e salvaguardando a boa-fé daqueles que esperavam a celebração válida do acordo, parte ou terceiros.

Finalizamos este artigo transcrevendo as belíssimas e irretorquíveis palavras do prestigiado jurista ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, esboçadas na apresentação do trabalho monográfico de JOÃO ALBERTO SCHÜTZER DEL NERO, intitulado "Conversão Substancial do Negócio Jurídico", segundo quem:

"A conversão, instituto posto a meio caminho entre as exigências formais do Direito e as exigências substanciais da Justiça, é figura que atenua as exigências do direito estrito, permitindo, conforme o princípio da conservação dos negócios jurídicos – tomado em sua acepção mais ampla – o aproveitamento de atos realizados". [07]


Notas

01 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, vol. 4, §§ 374 a 379.

02 ESPÍNOLA, Eduardo, Manual do Código Civil, vol. III, parte 1º, 1923, §119, pp. 493 e ss.

03 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. A Conversão dos Negócios Jurídicos: seu interesse teórico e prático, p. 17-22, Ed. Revista dos Tribunais.

04 PACHECO, José da Silva. Da Conversão em Face do Novo Código Civil, in COAD, Informativo, Boletim Semana 41, 2003, p. 611-613, publicado no endereço eletrônico http://www.gontijo-familia.adv.br/tex134.htm

05 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Vol. I, Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 398.

06 Ob. Cit., p. 400.

07 DEL NERO, João Alberto Schützer. Conversão Substancial do Negócio Jurídico. Ed. Renovar, 2001, in apresentação de Antônio Junqueira de Azevedo.

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Sobre o autor
Maurício Pereira Doutor

Juiz Substituto do Estado do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOUTOR, Maurício Pereira. Da conversão substancial do negócio jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1693, 19 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10966. Acesso em: 28 mar. 2024.

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