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O Código Civil em xeque.

Considerações sobre o projeto de "Estatuto das Famílias"

02/01/2008 às 00:00
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No dia 25 de outubro de 2007, iniciou-se no Congresso Nacional o trâmite do Projeto de Lei no. 2285/07, de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, propondo a revogação de todo o Livro IV (Do Direito de Família) do Código Civil de 2002, além de uma série de outros dispositivos de direito material e processual ligados a este ramo do Direito, dispersos em outros documentos, tais como a Lei de Alimentos (Lei 5478/68) e o Código de Processo Civil (Lei 5.869/73).

O texto vem sendo chamado de "Estatuto das Famílias" e foi elaborado pela conjugação dos esforços de centenas de estudiosos das mais variadas áreas ligados ao Instituto Brasileiro de Direito de Família, associação civil que completou, neste ano de 2007, dez anos de evoluções e revoluções no âmbito do Direito de Família brasileiro. (o texto do Estatuto está em http://www.ibdfam.org.br/artigos/Estatuto_das_Familias.pdf).

A elaboração de estatutos segue uma tendência mundial ligada aos chamados microssistemas jurídicos, aplicados em contraponto às grandes codificações, cuja importância decresce a cada dia.

Segundo o professor português JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, no período das grandes codificações, um Código Civil não era apenas a matriz incontestada do direito privado. O Código constituía ainda, por força do papel transcendental há muito reconhecido ao direito civil na definição dos direitos fundamentais do indivíduo, o diploma básico de toda a ordem jurídica. Por isso,

"Os códigos civis, reconhecendo embora o princípio geral da autonomia privada, continham toda a disciplina básica dos fatos jurídicos respeitantes à vida privada dos indivíduos, desde o momento capital de seu nascimento (com a inscrição no registro e fixação da nacionalidade) até ao instante derradeiro da morte e da devolução sucessória dos seus bens." ("O Movimento de Descodificação do Direito Civil". In. "Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor Caio Mário da Silva Pereira". Editora Forense. Rio de Janeiro, 1984, pág. 503).

Hoje, no entanto, o jurista luso afirma que há um movimento de fuga dos Códigos, sobretudo por situações recentes criadas pela complexidade crescente das relações civis e da constitucionalização do Direito Civil.

A complexidade das relações civis está ligada ao aumento no número de "atores" pleiteando junto aos poderes estabelecidos uma atenção ao seu caso particular. Desta forma, crianças, adolescentes, idosos, mulheres espancadas ou simplesmente tratadas de forma desigual, consumidores, homossexuais e portadores de necessidades especiais, apenas para ficar em alguns exemplos, exigem dos agentes públicos uma intervenção cada vez maior (ou até mesmo acabam atuando como agentes públicos). Tal intervenção surge na forma de decretos, leis, estatutos, decisões judiciais, súmulas, e outros documentos, retirando do Corpus Iuris o "Dogma da Completude", no dizer de NORBERTO BOBBIO – ou seja, o grande Código não teria mais o condão de atender (sozinho) a todas as necessidades do homem comum.

A constitucionalização do Direito Civil (ou "publicização do Direito Privado") também é fenômeno recente, advindo da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar (Alemanha – 1919), ambas contendo normas de direito privado, o que causou uma "publicização do privado" e influenciou fortemente as cartas constitucionais do Brasil (1934), Alemanha (1949), Itália (1942) e França (1958).

O que ocorreu, em seguida, foi um incrível acúmulo de legislações ordinárias ou especiais e a sua conseqüente sistematização em microssistemas, dotados inclusive de aspectos processuais, sobretudo em razão do imobilismo dos grandes Códigos, pondo-os definitivamente em xeque.

ANTUNES VARELA (op. cit.) lembra que muitas matérias – das mais importantes do direito privado, do ponto de vista da sua aplicação prática –, tradicionalmente reguladas no Código Civil, saíram deste diploma para se fixarem em leis e regulamentos próprios. Ademais, acrescenta o mestre luso, tais leis especiais não mais se tratam de meras adaptações das normas gerais do Código Civil, passando deliberadamente a orientar-se pelos novos princípios programáticos definidos no texto constitucional.

Não há uma corrente que predomine sobre o futuro das codificações, isto é, se restarão somente os microssistemas, se o Código permaneceria como um elemento sistematizador, ou se estaria destinado a ser um elemento harmonizador apenas para grandes blocos como os Códigos supra-nacionais da Comunidade Européia; contudo, o fato é que, na opinião deste articulista, não se coaduna com a realidade sócio-jurídica e política atual a edição de um código nos moldes oitocentistas, como fez o Brasil em 2002 [01].

Prova maior desta desnecessidade encontra-se na feliz observação do saudoso ORLANDO GOMES de que a idéia de recodificação já não prosperava em países como Itália e Alemanha. Aliás, quanto ao Direito Germânico, acrescentou o mestre que, ao ser alterado por leis que o mutilaram, deixou o BGB de ser a regulamentação omnicompreensiva do Direito Privado, passando a ser uma lei especial, se bem que a mais importante de todas ("A Caminho dos Micro-Sistemas". In. "Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor Caio Mário da Silva Pereira". Editora Forense. Rio de Janeiro, 1984, pág. 165).

No âmbito do Direito de Família brasileiro, não restam dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 balizou seus Princípios Gerais, ao igualar homens e mulheres e os filhos de qualquer natureza, ao reconhecer as entidades familiares monoparentais e extramatrimoniais, além de impor o estabelecimento de uma sociedade justa, solidária, livre de preconceitos e que busca a dignidade das pessoas humanas que a integram, algo que não se vê concretizado de forma efetiva no grande codex de 2002.

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Além disso, como lembram os juristas MARIA BERENICE DIAS e BELMIRO PEDRO WELTER, a consagração constitucional destes princípios constituem simultaneamente garantias constitucionais e direitos subjetivos. É o que chamam de princípio constitucional da "proibição de retrocesso social". É evidente, para ambos, que "nenhum texto do constituinte originário pode sofrer retrocesso que lhe dê alcance jurídico social inferior ao que tinha originariamente, proporcionando retrocesso ao estado pré-constituinte" ("Manual de Direito das Famílias", 3ª. Edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, pág. 59).

Dessa forma, se considerarmos que a era das codificações oitocentistas pertence ao passado, que os Princípios gerais do Direito de Família podem ser encontrados na Constituição Federal de 1988 e que os microssistemas já são uma realidade em nosso ordenamento (vide os Estatutos do consumidor, do idoso, das crianças e adolescentes), encontra-se aberto o caminho para a formulação de uma legislação especial para a família, esta importantíssima célula da sociedade – célula mater, na verdade –, independentemente da recente edição do Código de 2002, algo que vem ocorrendo também em outras nações do globo, desde a Revolução Russa de 1918, com a edição de "Códigos" ou "Estatutos da Família", como por exemplo em Cuba, Estado da Califórnia, Filipinas, Panamá, Costa Rica, Catalunha, além de vários países africanos, dentre outros.

Ou será que seria concebível, daqui a algumas décadas, a edição de um "Novíssimo Código Civil brasileiro", contendo em cinco mil artigos (ou mais!) toda a legislação civil, comercial, administrativa e societária?

O debate está aberto, sendo este estudo apenas uma pequena contribuição [02].


Notas

01 Para uma vista geral das teorias sobre o futuro das codificações, recomenda-se a leitura da obra "Da Codificação – Crônica de um Conceito", de Fábio Siebeneichler de Andrade, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 1997.

02 Veja um estudo nosso mais aprofundado em BASTOS, Eliene Ferreira; LUZ, Antônio Fernandes da. Família e Jurisdição II, Del Rey, Belo Horizonte, 2008, pp. 31/59.

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Sobre o autor
Cristian Fetter Mold

Advogado, Professor de Direito de Família e Sucessões, membro do IBDFAM.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOLD, Cristian Fetter. O Código Civil em xeque.: Considerações sobre o projeto de "Estatuto das Famílias". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1645, 2 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10803. Acesso em: 28 mar. 2024.

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