A inaplicabilidade da pena do art. 171-A do Código Penal quando envolver security tokens

05/06/2023 às 15:45
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Após o fim do período de vacatio legis e com a consequente entrada em vigência da Lei nº 14.478/22, novas regras aos criptoativos deverão passar a ser observadas dentro da esfera penal. O mencionado diploma legal altera o Código Penal com acréscimo do art. 171-A, tipificando fraude que envolve ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros:

“Art. 10. O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte art. 171-A:

“Fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros

Art. 171-A. Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.””

Acredita-se que a justificativa para confecção desse tipo penal foi feita para cominar práticas popularmente conhecidas como Pirâmide, contudo não há nada que delimite a conduta a essa prática criminosa, podendo ter uma abrangência muito maior a outras modalidades de Esquemas Ponzi e fraudes típicas de ambiente virtual.

A pena mínima começa em 4 (quatro) anos com máxima de 8 (oito) anos, suficiente para pena privativa de liberdade, e na dosimetria o Juízo pode aplicá-la em tempo que não está num extremo ou noutro. Quando se trata de um ativo virtual (p.ex.: um criptoativo) que ao mesmo tempo possui características de valor mobiliário, emerge a discussão se há aplicabilidade do referido dispositivo, ou se há sua aplicabilidade com majorante.

Ainda não há jurisprudência ou doutrina tecendo entendimento sobre o tema, até porque a Lei nº 14.478/22 ainda não saiu da vacatio legis, mas ainda tentamos fazer uma estimativa de como serão seus desdobramentos pelo ordenamento jurídico até então vigente. No art. 3º da novel Lei há a definição do que são ativos virtuais:

“Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos:

I - moeda nacional e moedas estrangeiras;

II - moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013;

III - instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e

IV - representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros.”

O direito é claro no sentido de que ativo virtual não pode ser valor mobiliário ao mesmo tempo “para os efeitos desta Lei” (G.N). Mas como ficaria a competência para regular os security tokens, que são criptoativos híbridos, ou seja, ativos virtuais com características de um valor mobiliário previsto no rol do art. 2º da Lei nº 6.385/76? Deveria tratá-lo como uma quarta figura ou como valor mobiliário?

A CVM, até então, não está enquadrada “para os efeitos desta Lei”, pois ainda não foi eleita entidade incumbida de regular a atividade que envolve ativos virtuais, portanto ainda pode disciplinar regras de criptoativos com caracterísitcas de valores mobiliários por entender que são predominantemente essa espécie de ativo, apesar de, repita-se à exaustão, ser uma figura distinta das outras três previstas no art. 3º da Lei nº 14.478/22 que limita a definição de cada espécie de ativo.

O Parecer de Orientação CVM nº 40/22 já prevê em seu item 2 que todo criptoativo quando tratado como valor mobiliário, ao ser ofertado publicamernte, está sujeito à regulação atinente:

“Nesse contexto, embora a tokenização em si não esteja sujeita a prévia aprovação ou registro na CVM, caso venham a ser emitidos valores mobiliários com fins de distribuição pública, tanto os emissores quanto a oferta pública de tais tokens estarão sujeitos à regulamentação aplicável.”

Partindo deste prisma, o criptoativo pode até ter características de valor mobiliário antes mesmo de ser posto à oferta pública, entretanto só poderá ser efetivamente posto em circulação publicamente após já estar revestido da regulamentação para tanto. Para isso, deverá ser apresentado requerimento junto à CVM consultando se é hipótese que dê ensejo à registro ou se cabe dispensa.

No momento de examinar o requerimento, a CVM observará se o projeto pode ser subsumido à norma prevista no art. 2º da Lei nº 6.385/76, considerando que o ativo do inciso IX precisa passar pelo Howey Test, que submeterá o projeto de criptoativos à análise dos atributos de um valor mobiliário na espécie CIC (Contrato de Investimento Coletivo), que são eles 1) investimento econômico, 2) formalização de instrumento jurídico entre investidor e ofertante, 3) caráter coletivo do investimento, 4) expectativa de benefício econômico, 5) esforço de empreendedor ou de terceiro, e 6) ofertado publicamente.

Pelo raciocínio ora levantado, conclui-se que para um criptoativo ser enquadrado no art. 2º, inciso IX da Lei nº 6.385/76, antes é necessário que seja exarado ato da CVM que defina-o expressamente como valor mobiliário. Logo, não há que se falar em violação ao art. 171-A do Código Penal, pois nessa hipótese somente poderá ser atribuído ao criptoativo a qualidade de security token após o arbítrio da CVM.

É bem possível que os donos do projeto, convictos que o token não preenche elementos suficientes de valor mobiliário, lancem-no em oferta pública sem os devidos registros, o que provavelmente acarretará em stop order e multa por parte da CVM após verificada sua presença em uma denúncia anônima ou fiscalização de rotina. Assim, não teria havido o dolo, e o estelionato é essencialmente doloso.

Deste modo, não gera incidência do art. 171-A em razão de o ato da CVM que reconhece o criptoativo como valor mobiliário só ser exarado a posteriori, e pelo princípio da irretroatividade da Lei penal o indivíduo não pode ser responsabilizado penalmente por uma conduta que até então não poderia vir a ser definitivamente caracterizada como crime deste tipo.

Assim, aplica-se o princípio da subsidiariedade, haja vista o direito penal se tratar da última ratio para tutelar um bem jurídico, incorrendo somente em sanção administrativa (stop order, multa, inabilitação temporária para administrar companhia, etc), ou então aplica outro tipo penal que não tenha o aspecto de especialidade que o art. 171-A do CP possui.

Pelo julgamento da dispensa de registro do criptoativo como valor mobiliário ficar submetido ao crivo da CVM, entende-se que não há muita previsibilidade para que o indivíduo saiba se estará praticando alguma fraude típica de ativos virtuais ou de valores mobiliários, não merecendo este ser condenado por uma conduta que não há certeza se efetivamente pode ser tida como crime.

Não traria segurança jurídica nenhuma se o indivíduo praticasse a conduta e, somente após, o Poder Público dizer se é crime ou não, até porque no direito penal as elementares e o verbo nuclear do tipo são definidas da maneira mais literal possível para que não fique vago e dê margem à interpretação, como é feito em um Howey Test, principalmente no mercado financeiro paralelo, que é de criptoativos e envolve tecnologias muito complexas que nem mesmo os próprios usuários entendem bem, mas somente os programadores compreendem por serem eles que desenvolvem os softwares e entendem linguagem de T.I.

É necessário o dolo específico, qual seja, o elemento subjetivo com o fim especial de praticar a fraude com ativo próprio de ambiente virtual, se prevalecendo muitas vezes de carência na aptidão técnica da maioria dos usuários de identificar detalhes, como uma backdoor em um software ou uma funcionalidade de um smart contract, que torne vulnerável a ataques hacker.

Quando envolver a tecnologia blockchain, que é onde se faz a custódia de criptoativos e escrituração de transações, há golpes que envolvem uma aptidão técnica maior e, portanto, haverá uma majoração da pena. Mas e quando for a figura híbrida do security token? É aí onde paira a dúvida, pois há fraudes que só são possíveis em um ativo virtual, mas que estarão na qualidade de valor mobiliário e submetido às regras de ambos. Confuso, não?

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Por ser uma figura híbrida, antes do ato da CVM reconhecendo como security token, ele é tratado como ativo virtual, mas após o ato passa a ser oficialmente considerado valor mobiliário também, o que, a cada um, são aplicadas regras distintas, segundo o art. 3º da Lei nº 14.478/22, e assim um compliance empresarial poderia ser inteiramente desconfigurado, além dos donos do projeto serem surpreendidos com uma persecução penal imerecidamente.

Pelo texto da novel Lei, ativo virtual e valor mobiliário não se confundem, por isso que entende-se que a CVM ainda poderá disciplinar os ativos híbridos mesmo após sua entrada em vigência. Se a CVM fosse eleita a entidade regulatória para ativos virtuais pelo ato do Poder Executivo, então criaria uma confusão gigantesca, pois todo o ato normativo exarado pela Comissão que verse sobre security tokens seria tacitamente revogado (a exemplo, o Parecer de Orientação nº 40/22) e haveria uma reforma densa nessas fontes e em suas interpretações no plano concreto.

Um outro cenário é a CVM não ser a entidade eleita e esta poder continuar disciplinando security tokens, que então, nesse caso, dependerá de ato reconhecendo o criptoativo como um valor mobiliário, e isso somente poderá ser feito após pedido de consulta para registro ou dispensa, por isso urge a necessidade de edição de norma prévia com aplicabilidade própria para o tema.

Avisando de antemão, é muito improvável que a CVM seja a entidade reguladora, sendo mais fácil criar uma nova entidade (ou até mesmo um órgão atrelado diretamente ao Poder Executivo) para se incumbir dessa atribuição naquilo que concerne a ativos virtuais. Até lá, o art. 171-A do CP não se aplica na hipótese de security token.

Mesmo que o mais sensato seja sempre apresentar pedido de consulta à CVM para lançar um projeto, deveria ser criada alguma legislação específica mais firme para o caso em tela evitando intempéries, pois é claramente uma figura híbrida e, pelo princípio da legalidade, somente a lei em strictu sensu tipifica crime; e com isso não há nem mesmo lei penal em branco, pois se esse quarto elemento não está elencado no tipo do 171-A, então nem mesmo um ato prévio da CVM poderia suprir essa lacuna.

Conclui-se, portanto, que quando se tratar de security tokens não pode ocorrer, em hipótese alguma dentro dos ditames do 171-A, a supressão da liberdade de locomoção, que é um dos bens mais caros para nossa sociedade, tudo em razão de o Poder Público ser ineficaz em conseguir satisfazer uma demanda devido a seu parco conhecimento e experiência em criptoativos.

Sobre o autor
Yuri Nogueira Maimone

Bacharel em Direito pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais no Rio de Janeiro (IBMEC/RJ). Advogado especializado em criptoativos, smart contracts, blockchain e Web3 no geral. Sócio do escritório Maimone & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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