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A delação premiada e sua (in)compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio

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05/08/2007 às 00:00
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"E o que o traía tinha-lhes dado um sinal, dizendo: o que eu beijar é esse; prendei-o".
(Mateus, cap. XXVII, ver. 48)


RESUMO

Investiga-se acerca da (in)compatibilidade da delação premiada com o ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista as várias disposições normativas que o Direito brasileiro dedica ao valor confiança. O referido instituto emerge na ambiência de um mundo globalizado em que as fronteiras jurídicas são diminuídas e na qual ganha força o discurso da máxima eficiência, influenciando o Direito Penal, que passa a incorporar a idéia de celeridade, sendo cada dia mais açodado. Nesse contexto, insere-se a delação premiada, instituto que pretende deferir diminuição de pena ou perdão judicial aos criminosos que voluntariamente colaborarem com a elucidação do crime. Daí surge a tensão entre o instituto em questão e o valor confiança, vez que o incentivo à traição ofende este atributo tão importante para o convívio em sociedade.

Palavras – chave: ordenamento jurídico; confiança; delação premiada.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O homem só é considerado como tal se devidamente inserido no seu meio social, daí a corrente afirmação de que é um ser social. No entanto, para que haja integração entre as pessoas, mister se faz a presença da lealdade entre os sujeitos de uma relação.

Se em alguns tipos de relacionamentos humanos existem concessões ao dever de lealdade, como no de casais, que não raro mantêm matrimônios infiéis em nome da família e dos filhos, em outros relacionamentos, quando a lealdade é rompida por um ato de delação, essa atitude é radicalmente rechaçada pela sociedade. Tal rejeição é de tal magnitude que coloca, quase sempre, o delator em uma posição de estranho a qualquer grupamento humano, posto que não é bem recebido nem mesmo por aqueles que se beneficiaram com a sua informação, como bem observou Cervantes: "Ainda que agrade a traição, ao traidor tem-se aversão". (CERVANTES apud MOREIRA, 2006, p.1 ).

A própria noção de grupo é contrariada com a alcagüetagem, sendo certo que a repulsa ao traidor de uma agremiação qualquer visa preservar a mesma, posto que a sociedade ameaçada pela possibilidade de ter um delator entre seus membros não tem coesão, eis que no seu bojo não há sinergia para o atingimento de finalidades comuns, mas sim um conjunto de elementos desconfiando-se mutuamente, como afirma LA BOÉTIE em citação de Raphael Boldt, in verbis, "não pode haver amizade onde há desconfiança, deslealdade, injustiça. Entre os maus, quando se reúnem, é um complô e não uma companhia. Eles não se entretêm, entretemem-se. Não são amigos, mas cúmplices". (LA BOÉTIE apud BOLDT, 2006, p. 3).

Assim, o presente trabalho pretende debater acerca da (in)compatibilidade do favor premial com o ordenamento jurídico brasileiro, levando-se em conta o valor confiança que, malgrado o triunfo do instituto em questão, ainda é prestigiado por inúmeras legislações.

Para atender a esse objetivo, delinear-se-ão na introdução as motivações fáticas e ideológicas que abriram caminho para a instituição da colaboração premiada no Direito brasileiro, as quais se relacionam com o triunfo da economia globalizada, como o individualismo marcante, o excesso de informações, a velocidade da dinâmica social e a influência exercida pelos meios de comunicação.

Ainda na introdução, descrever-se-ão, em linhas gerais, os aspectos técnicos processuais do tema abordado, ou seja, as principais características do procedimento que concede o beneplácito em questão.

Em virtude da polêmica que divide os partidários da delação premiada e seus opositores, referir-se-ão questões de natureza axiológica, trazendo-se à baila os principais valores colidentes no que toca à delação premiada. Além disso, serão dedicadas algumas linhas do presente trabalho à corrente filosófica utilitarista, o que se fará apenas de maneira perfunctória, por não ser o objeto central deste trabalho.

O desenvolvimento cuidará dos aspectos delimitados para uma monografia de conclusão de curso de graduação, quais sejam: a compatibilidade do favor premial com o conjunto normativo brasileiro. Para tanto, utilizar-se-á a técnica de pesquisa indutiva, através da análise individualizada de institutos que prestigiam a confiança, como as garantias fidejussórias e as agravantes previstas para os crimes cometidos de emboscada ou com proveito da relação de confiança.

Para além da abordagem dos aspectos relacionados à lógica formal do conjunto normativo, examinar-se-á, também, o instituto à luz de princípios processuais penais como o da indivisibilidade, o da proporcionalidade e ainda da indisponibilidade da ação penal pública.

Ao fim, enumerar-se-ão os principais problemas decorrentes da incorporação do instituto em questão no direito e na práxis forense brasileira. Para corroborar as conclusões do autor, a abordagem tomará uma formatação menos abstrata e mais objetiva, com a indicação de alguns efeitos decorrentes da adoção do instituto.


2. A INFLUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO NO DIREITO PENAL MODERNO

A mundialização dos mercados importa não só no trânsito mais fácil de bens e pessoas, como também implica na diminuição das distâncias geográficas e na integração cultural e jurídica que se impõem com supressão de barreiras econômicas.

Isso porque, para um melhor fluxo de bens e pessoas, o mercado exige dos sujeitos (nações) que nele transacionam regras uniformes e proteção cosmopolita contra o marginalismo, posto que sem essa homogeneidade normativa e sem o combate integrado à criminalidade, estar-se-ia num ambiente de caos, ou seja, em uma torre de babel econômica.

Para figurar apenas um exemplo acerca da necessidade de combate unificado contra o crime, basta lembrar que a criminalidade não conhece limites de espaço, atuando através de aparatos tecnológicos para inúmeros fins ilícitos, como lavagem de dinheiro, articulações terroristas ou especulação financeira, o que demanda das estruturas dos Estados uma conjugação de esforços a fim de debelar tais práticas crescentes.

A respeito das citadas formas mais elaboradas de delinqüência, assim pontua Jesús-María Silva Sánchez:

(...) Surgem modalidades delitivas dolosas de novo cunho que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. A criminalidade, associada aos meios informáticos e à Internet (a chamada ciberdelinquência) é, seguramente, o maior exemplo de tal evolução. Nessa medida, acresce-se inegavelmente a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento de formas de criminalidade organizada. (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p.29).

Assim, surge a necessidade de integração estatal-jurídica para o combate desses "novos delitos", posto que o Direito Penal clássico, fundado no princípio da soberania e da territorialidade, não é capaz de pôr fim à nova criminalidade, que é transnacional e multilocalizada.

Por esse motivo, a globalização reclama do Direito Penal uma adequação que assegure uma resposta eficaz aos neo-delitos, que não raro será mais consentânea com a necessária tempestividade do que com a adequação científica, conforme doutrina Jesús-María Silva Sánchez, in verbis,

(...) A globalização dirige ao direito penal demandas fundamentalmente práticas, no sentido de uma abordagem mais eficaz da criminalidade, expressando de outra forma, a reflexão científica quanto a esse aspecto não surge como produto de uma aspiração intelectual de unidade ou reflexão teórica. (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 76).

Tem-se então a sinistra conformação da lógica jurídica à lógica da mundialização, esta última não centrada nas liberdades individuais ou no garantismo penal e sim no discurso da eficiência e eficácia, conforme salientado pela doutrina de Jesús-María Silva Sánchez. Vejamos:

O objetivo do Direito Penal da globalização é, como indicado no princípio, eminentemente prático. Trata-se de proporcionar uma resposta uniforme ou, ao menos harmônica à delinqüência transnacional, que evite a conformação de "paraísos jurídicos-penais". (SILVA SÁNCHEZ, 2002. p. 81).

Expressiva, sob tal aspecto, a doutrina de Luiz Flávio Gomes, in verbis,

Mas particularmente depois da segunda guerra mundial o que se percebe é a quase total flexibilização de todas as garantias penais e processuais. O pragmatismo eficientista é a nota do direito criminal nesta era da globalização. O que importa é que o sistema seja eficiente, que alcance seus resultados programados, ainda que com um alto custo em termos de cortes de direitos e garantias fundamentais. (GOMES, 2002, p. 24).

Cabe ressaltar, nesse contexto, que a economia mundializada demanda a valorização de alguns tipos de delitos e a descriminalização ou abrandamento de pena em relação a outros, na medida em que a repressão a determinados crimes interessar ou não a ela. Nesse sentido, acentua o doutor Luiz Flávio Gomes que:

Se o processo de globalização implica o livre trânsito de mercadorias, a livre circulação de moedas, mobilização de capital estrangeiro etc., é mais do que natural (dentro do processo de globalização) que alguns crimes se transformem em relíquias, em coisas do passado. Todos os delitos que perturbam o "bom" desenvolvimento do processo de globalização econômica tendem a configurar exemplos de arqueologia jurídica. (GOMES, 2002, p.19).

2.1 A dessolidarização da sociedade

A tecnologia a que contemporaneamente se tem acesso é peça fundamental na configuração de uma sociedade submersa em informações que muitas vezes se contrapõem e, por isso, são banalizadas. É que, nos dias atuais, não só o acesso às informações foi facilitado, mas também a difusão destas de modo desbragado, promovendo a democratização da comunicação e colaborando para o descrédito do que é noticiado, uma vez que não há fonte segura.

Esse fenômeno é manancial de incertezas e inseguranças, especialmente por conta da perda de referenciais cognitivos e teóricos, os quais são diluídos em um imenso acervo de informações desconexas.

A apontada perda de referenciais cognitivos contribui em grande medida para a dessolidarização das relações, especialmente porque as pessoas já não têm como confiar em única fonte: lêem três jornais para tentar extrair a informação mais próxima da realidade, consultam três médicos para obterem um diagnóstico de sua saúde, mas, ainda assim, consultam a Internet como se esta fosse um oráculo. No entanto, quanto mais fontes são consultadas, menos segura é a resposta extraída da pesquisa.

A incerteza é generalizada na sociedade da informação, sendo que se faz sentir até mesmo nas ciências. Um bom exemplo são as inúmeras experiências estudando os efeitos do café sobre a saúde, ora tratado como um elixir, ora tratado como veneno, como se pôde comprovar através da pesquisa das expressões "café faz bem" e "café faz mal", realizada em dez de julho de dois mil e seis no site de pesquisas Google: para a primeira, registraram-se 220 (duzentas e vinte) ocorrências; para a segunda, 152 (cento e cinqüenta e duas).

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Cabe lembrar também da força cada vez mais pujante dos boatos propalados via Internet e dos golpes eletrônicos, de tão graves efeitos que as empresas e órgãos de governos passaram a advertir os seus visitantes da existência de falsas correspondências eletrônicas, como se vê no site da Receita Federal brasileira: "Alerta: Mensagens eletrônicas (e-mails) falsas em nome da Receita Federal" (www.receita.fazenda.gov.br, acesso em 10/07/2006).

Esse quadro gera um clima de desconfiança nos indivíduos, pois, diante de tantas incongruências do mundo hodierno, é cada vez mais difícil saber o que ou quem pode ser referência confiável.

Nesse contexto de incertezas, há o que já se convencionou chamar de darwinismo social [01] agravando ainda mais o distanciamento entre as pessoas. Fatores como o crescente desemprego aliado à grande mobilidade do quadro funcional das empresas, bem como o incentivo à competição – fenômeno próprio da lógica neoliberal - são essenciais na conformação de uma sociedade cada vez mais desagregada e individualista.

Neste ponto, cabe breve digressão para citar jargões introjetados no inconsciente popular pela exaustiva repetição, como "seja um vencedor", "não fique para trás", "chegue lá", "seja o melhor".

Esse clima de competição e dessolidarização interessa aos mercados, conforme se conclui da leitura de Jesús-María Silva Sánchez, in verbis: "A lógica do mercado reclama indivíduos sozinhos e disponíveis, pois estes se encontram em melhores condições para a competição mercadológica e laborativa" (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 34). É nesse contexto das sociedades de massas que o individualismo e a competição predatória ganham robustez, produzindo um ambiente de individualismo generalizado, muito bem identificado por Maria de Lourdes Souza:"a sociedade já não é uma comunidade, mas um conglomerado de indivíduos atomizados e narcisisticamente inclinados a uma íntima satisfação dos próprios desejos e interesses". (SOUZA, 1999, p. 1).

O incentivo ao ato de delação e aceitação desta como um ato socialmente tolerado liga-se aos fatores acima elencados, posto que tanto a banalização das informações quanto a competitividade – marca dos tempos hodiernos – importam na depreciação de valores ligados à harmonização social, como a compaixão, solidariedade e lealdade.

2.2 A necessária aceleração imposta pela modernidade

Ao lado desses fatores, a economia mundializada tem como caracter identificador a velocidade. Para exemplificar, pode se dizer que uma alta na bolsa de valores de Hong-Kong é sentida na América do Sul em poucos minutos. Entretanto, a celeridade não é marca exclusiva do mercado de ações e se faz sentir em toda dinâmica social, como nas comunicações, nos transportes, nas ciências e no próprio tratamento da delinqüência.

Destarte, a intensa e acelerada circulação de bens, informações e pessoas proporcionada pela economia impõe seu ritmo acelerado à política e mesmo à ciência. Nessa ordem de idéias, é interessante observar que a velocidade é, em geral, economicamente quantificável e não raro essencial, considerando-se que a regra é o perecimento cada vez mais acelerado dos bens.

Assim, uma informação não divulgada pela imprensa logo após o seu acontecimento é algo sem nenhuma utilidade no mundo das comunicações. Do mesmo modo, pouco adianta conhecer da evasão de ativos estatais quando esse já ocorreu, haja vista o dificílimo processo de repatriação desses recursos, em geral abrigados em paraísos fiscais.

Igual raciocínio vale para as pragas que assolam o mundo moderno, tais como as enfermidades, as epidemias e o terrorismo. O combate a esses problemas só é útil na medida em que suas causas sejam combatidas prontamente. Tem-se, desse modo, um razoável argumento em favor da aceleração do processo que, quanto mais rápido, menos garantista e preocupado com a constitucionalidade de suas leis é.

A esse propósito, cabe salientar os ensinamentos de Aury Lopes Júnior: "A noção de eficiência é amplamente difundida no mercado, de modo que as ações devem ser eficientes para obtenção de resultados no processo" (LOPES, 2005, p. 35) para mais a frente arrematar com a doutrina de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

Se acrescentarmos a esse quadro o fator tempo (...) A premissa neoliberal de Estado mínimo também se reflete no campo processual, na medida em que a intervenção jurisdicional deve ser mínima, tanto no fator tempo (duração do processo), como também na ausência de um comprometimento maior por parte do julgador. (COUTINHO apud LOPES, 2005, p.35).

2.3 O papel da mídia na configuração de um novo Direito Penal

A sociedade brasileira normalmente desconhece o fato de que o controle penal é exercido em uma parcela muito diminuta das situações que comportariam a atuação punitiva do Estado. Dessa ignorância decorre uma série de problemas que culminam, quase sempre, na edição de novas leis repressoras.

Isso porque significativa parte da população crê cegamente que a simples vigência de novas leis é capaz de estancar a crescente violência. A lei nova, entretanto, não tem o condão de resolver um problema tão complexo rapidamente, como se fosse um remédio milagroso, pois, como se disse acima, o aparato repressor do Estado incidirá em uma parcela muito ínfima da realidade social, sendo improvável que mais leis contribuam para a minoração dos índices de violência. Por esse motivo, é equivocada a idéia do senso comum que associa segurança à prática legiferante.

À citada falsa noção, soma-se o fato de que os indivíduos, ao vislumbrarem uma lesão a um bem penalmente protegido, põem-se em geral no lugar da vítima e, por isso, aderem facilmente à idéia de que o Direito Penal não é um instrumento de garantia de direitos individuais, tendo a função meramente repressora. A propósito, negar direitos elementares aos delinqüentes em nome da segurança é o que ocorre nos casos de linchamento, em que muita vez a escala de valores fundamentais é adaptada para os valores do mercado, como quando se prioriza o patrimônio em detrimento da incolumidade física. Esse tipo de acontecimento seria improvável caso as pessoas soubessem se enxergar também no lugar do delinqüente.

É esse cenário o ambiente fecundo para a propagação de idéias conservadoras, em especial as que ignoram direitos aos delinqüentes. Assim, a sensação de pânico já presente na sociedade é exacerbada freqüentemente pela mídia, que reproduz a violência a milhares de espectadores e introjeta na consciência coletiva a doutrina de um Direito Penal comprometido somente com o desejo de vingança da vítima e descomprometido com as garantias fundamentais do acusado, conforme preleciona Luis Flávio Gomes:

Para alcançar a meta da efetividade, profundas alterações estão ocorrendo na área do processo penal, quase sempre orientadas à aceleração do procedimento, agilização da instrução e rapidez da Justiça, com o corte de direitos e garantias fundamentais para facilitar a operatividade da intervenção penal. (GOMES, 2002, p. 32) (grifo nosso).

Note-se, embora a concepção acima pareça atrasada, é o pensamento ao qual se filia a maior parte da população – eleitores. Desta feita, o legislador, pretendendo atender aos anseios de um eleitorado cada vez mais assustado, e, consciente de que uma resposta legislativa será reconhecida nas urnas, passa a propor leis novas ao sabor de paixões momentâneas, em geral logo após um evento de grande comoção nacional, ignorando a razão. Nesse contexto, insere-se o instituto da delação premiada.


3. CARACTERÍSTICAS DO INSTITUTO

Já adotada na Itália e nos Estados Unidos, a delação premiada é regulada no Brasil por diversas leis: a lei de n° 8.072/90 (Leis dos Crimes Hediondos), a de n° 9.034/95 (Lei do Crime Organizado), a de nº 9.080/95 (acrescentou dispositivos à Lei dos Crimes de Colarinho Branco), a de nº 9.269/96 (acrescentou o art. 159, § 4º ao CP), a de nº 9.613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro), a de n° 9.807/99 (Lei de Proteção das Vítimas e Testemunhas) e a de n° 10.409/02 (Nova Lei de Tóxicos), além da atenuante genérica já inserta no artigo 65, inciso II, alínea b, do Código Penal e da previsão da lei nº 10.149/00, curiosamente intitulada de acordo de leniência.

Embora o legislador penal brasileiro tenha se utilizado de várias leis e vários nomes para referir-se ao instituto em questão, em essência não há grandes disparidades, pois as particularidades são apenas formas diferenciadas de tratar um mesmo item essencial ao favor premial, que são: a denúncia espontânea/voluntária, utilidade da mesma e concessão de benefícios penais.

A denúncia, no nosso modo de ver, não poderá ser tida como espontânea, quando é sabido e consabido que a lei concede benesses aos delatores. Isso porque o ato espontâneo é desinteressado e, portanto, não objetiva qualquer utilidade. Assim, se o réu puder prever que o seu ato de delação resultará em uma redução de pena, estará agindo com o escopo de obter um favor legal e não de prestar um serviço à Segurança Pública.

Por outro lado, observa-se a utilidade pelo preenchimento de requisitos objetivos delineados pelas diversas leis que tratam do tema. Estes referem-se à facilitação da investigação, libertação do seqüestrado, localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime, identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa, à localização da vítima com a integridade física preservada, à recuperação total do produto do crime. Vejamos cada uma das definições em quadro comparativo:

Lei nº

Descrição

Definição de utilidade

8.072/90

Lei dos Crimes Hediondos.

"O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços" (art. 8º, parágrafo único).

9.034/95

Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.

"Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços), quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria"(art. 6º).

9.080/95

Acrescenta dispositivos à lei que define os crimes contra o sistema financeiro nacional e também à lei que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.

"Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços" (art.1º).

9.269/96

Dá nova redação ao § 4° do art. 159 do Código Penal.

"Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços"(art. 1º).

9.613/98

Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF.

"A pena será reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços) e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime"(art. 1º, § 5º).

9.807/99

Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.

"Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:

I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;

II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada;

III - a recuperação total ou parcial do produto do crime" (art. 13).

10.149/00

Altera e acrescenta dispositivos à Lei 8.884/94 que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e dá outras providências.

"A União, por intermédio da SDE, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte:

I - a identificação dos demais co-autores da infração; e

II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação" (art. 2º).

11.343/06

Estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.

"O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços" (art. 41).

Os benefícios penais, que identificam o prêmio pela delação, assumem também vários formatos, que variam da redução da pena de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), podendo até mesmo ser concedido o perdão judicial.

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Sobre o autor
Heider Silva Santos

pós-graduando em Ciências Penais pela Unisul/LFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Heider Silva. A delação premiada e sua (in)compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1495, 5 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10244. Acesso em: 20 abr. 2024.

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