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Direito e imaginário popular nos Estados Unidos

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Noticiários televisivos acompanham julgamentos e inquéritos em passo frenético. Multiplicam-se programas que julgam para o público da televisão. Clichês, vulgaridades; um festival quimérico de picuinhas. O direito é objeto de consumo, faz parte da cultura nacional.

            Nos Estados Unidos da América do Norte, não há questão política que não se transforme, cedo ou tarde, em discussão judicial [01]. A impressão é de Alexis de Tocqueville, juiz, cronista, viajante, estudioso francês que visitou os Estados Unidos em 1830. Subtraído o adjetivo político, o texto que segue faz o aggiornamento, a atualização do observador francês, invocando que nos Estados Unidos o cotidiano é plasmado pela experiência jurídica. Manchetes de jornais (headlines) indicam casos que o judiciário aprecia [02]. Noticiários televisivos acompanham julgamentos e inquéritos em passo frenético. Multiplicam-se juízes ad hoc de televisão que julgam para o público que acompanha programas estereotipados e preconceituosos. Clichês, vulgaridades; um festival quimérico de picuinhas. O direito é objeto de consumo, faz parte da cultura nacional. Há viciados há no acompanhamento de julgamentos. Partidos, facções e grupos dividem-se nos vereditos. Uma mania que a muitos contamina. O objetivo do presente excerto é sumária apresentação de casos célebres, com estações em nomes famosos, evidenciando judiciário e opinião pública no direito norte-americano, qualificando sútil relação entre direito e imaginário [03], aproximação que oxigena cultura popular, temperada por ciência política, literatura [04], história e sociologia.

            Ainda em 1805, discutiu-se o impeachment [05] de Samuel Chase [06], então juiz da Suprema Corte (associate Supreme Court justice). Foi a única vez em que o Congresso norte-americano valeu-se de prerrogativa constitucional para julgar juiz nas condições em que os fatos se deram [07]. A questão era fundamentalmente política e refletia conflito entre executivo e judiciário, mediado pelo legislativo. Suscita também prós e contras do modelo norte-americano de apontamento de juízes federais [08] pelo executivo, em todas as instâncias, o que matiza decisões judiciais em âmbito federal com o liberalismo dos democratas ou com o conservadorismo dos republicanos.

            Samuel Chase fora um dos signatários da declaração de independência em 1776, era um dos pais da pátria, um dos founding fathers. Conduzido à Suprema Corte por pressão de George Washington, Samuel Chase fazia oposição a Thomas Jefferson, presidente eleito em 1801. Jefferson já enfrentara a Suprema Corte logo no início de seu mandato, por ocasião do caso Marbury v. Madison. Naquela ocasião o juiz John Marshall evitara um confronto com o presidente, concebendo o controle de constitucionalidade (judicial review) [09]. Com isso, deixou de aplicar uma lei que beneficiava William Marbury, que então disputava com James Madison, secretário de estado, a propósito da indicação de Marbury como juiz federal, por parte do antecessor de Thomas Jefferson, o ex-presidente John Adams [10]. Moralmente derrotado pela decisão de Marshall, Jefferson decidira atacar a Suprema Corte por meio do Senado, onde possuia vinte e cinco votos, contra nove do partido contrário.

            Com base no artigo III, seção 1 [11], da constituição norte-americana, processou-se Samuel Chase por supostos crimes que ele teria cometido como juiz, ao julgar casos nos quais figuravam aliados de Jefferson. Fora capitulado em oito infrações; em uma delas, teria erroneamente definido o crime de traição (treason), em outra, teria feito comentários políticos para um grupo de jurados em Baltimore. As acusações eram infundadas, porém propiciaram devassa nos julgados de Samuel Chase, que fora defendido no Senado por advogados experientes, a exemplo de Robert Goodloe Harper. Em que pese a maioria que o presidente da república tinha naquela casa legislativa, não se conseguiu a condenação juíz, dada a fragilidade das acusações, pelo que a absolvição de Samuel Chase fora uma derrota para Thomas Jefferson, que talvez tentaria também obter o impeachment do juiz Marshall, se conseguisse a condenação de Chase [12]. O fundo político da arenga empolgou a opinião pública e marcou o judiciário norte-americano, cuja função meramente técnica é criticada pelos defensores do realismo jurídico, que percebem que o direito é experiência, e não lógica [13].

            Em 1850 um escândalo sacudiu Boston, à época local de moral vitoriana, calvinista, elitista. A cidade é separada de Cambridge pelo rio Charles. Em Cambridge localiza-se a universidade de Harvard, de muito prestígio. Lá John Webster lecionava química e mineralogia na faculdade de medicina. Webster convivia com pessoas das classes altas de Massachusetts, a exemplo de Oliver Wendell Holmes (pai do famoso juiz da Suprema Corte norte-americana) e de Henry Wadsworth Longfellow (festejado poeta). Porém Webster vivia de minguado salário de professor. Endividou-se com um senhor chamado George Parkman, membro de rica família de Boston. Porque não conseguia receber de Webster os quatrocentos dólares de que era credor, Parkman foi até o devedor, que o teria assassinado. Parkman teria ameaçado Webster, a quem disse que usaria de sua influência para afastá-lo da faculdade. Webster teria desmembrado o corpo de Parkman, queimado partes do mesmo no laboratório onde trabalhava, escondendo as demais partes em vários locais. Um assistente de Webster, horrorizado, encontrou pedaços do corpo do morto. No julgamento os advogados de Webster insistiram que as partes encontradas não comprovavam o crime, pois não poderia se precisar se realmente os restos mortais (remains) eram de Parkman. Médicos opinaram pela primeira vez na história do judiciário norte-americano. Criterioso modelo científico fora utilizado de modo a comprovar-se a culpa de Webster além de qualquer dúvida (beyond a reasonable doubt). Webster acabou confessando o crime com o objetivo de obter a boa vontade do governador estadual, que poderia livrá-lo da pena de morte, impondo punição menos severa. Mas não houve clemência. Em 30 de agosto de 1850 Webster foi enforcado, colocando fim num dos mais sensacionais escândalos que balançou a sociedade de Boston e a América vitoriana [14].

            E foi também em Massachusetts que em 1921 julgou-se o rumoroso caso Sacco e Vanzetti [15]. Os fatos iniciam-se com simples homicídio e desdobraram-se em causa internacional na qual o mundo acreditou que Massachusetts executara dois homens inocentes por causa de suas idéias radicais [16]. Os Estados Unidos receberam forte contingente de imigrantes italianos. A ideologia anarquista acompanhara muitos desses imigrantes, ativistas políticos que continuaram a pregação contrária a qualquer forma de organização política, com base em Mikhail Bakunin, entre outros. A reação nos Estados Unidos fora muito violenta e desde meados da década de 1910 perseguiram-se anarquistas italianos, que foram deportados. É nesse contexto de preconceito, de ódio e de embate político que a opinião pública em torno do caso deve ser entendida, também fora dos Estados Unidos, dadas as dimensões internacionais que o julgamento alcançou.

            Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram acusados de terem assassinado Frederick Parmenter e um guarda chamado Alessandro Berardelli. Teriam roubado cerca de quinze mil dólares, dinheiro que seria usado pelos proprietários para pagamento de operários de uma fábrica de sapatos. Ninguém efetivamente presenciou os fatos, porém algumas testemunhas falaram que dois italianos seriam os culpados. Suspeitou-se de um tal de Mike Boda, em cujo carro encontraram-se livros sobre comunismo, além de material subversivo. O carro estava com Sacco e Vanzetti. Sacco portava uma pistola calibre 32 com nove balas. Vanzetti carregava um revólver 38. Com Sacco encontrou-se uma nota redigida em italiano, que pregava a luta pela existência. Apurou-se a origem das armas, que não estavam regularizadas. Vanzetti invocou que no momento dos fatos encontrava-se vendendo enguias. Sacco afirmou que trabalhava em uma fábrica de sapatos, quando os crimes teriam ocorrido. Porém outras acusações havia e certa histeria da promotoria suscitou mais episódios. Organizou-se comitê internacional para a defesa de Sacco e Vanzetti. No entanto, por causa do desencontro de informações dadas pelos réus (quanto a preço e procedência das armas), além de similitudes entre munição dos acusados e balas assassinas, o júri condenou os italianos. Protestos surgiram em vários lugares, na França, Itália, Bélgica, Suíça; a embaixada norte-americana em Paris fora cercada por manifestantes. O célebre jurista norte-americano Felix Frankfurter (mais tarde juiz da Suprema Corte) saíra na defesa dos réus em inflamados artigos [17]. O governador de Massachusetts apontou comissão para avaliar a lisura do julgamento. A decisão foi mantida, inclusive com opiniões de Oliver W. Holmes, Jr. e Harlan F. Stone, juízes da Suprema Corte. Em 23 de agosto de 1927 Sacco e Vanzetti foram executados. Cinquenta anos depois, Michael Dukakis, então governador de Massachusetts, reabilitou os dois italianos. Porém, durante o julgamento os fatos inflamaram a opinião pública. Conservadores de extrema direita sustentaram o ódio e a intolerância. Liberais e anarquistas qualificam o episódio como imperdoável erro judiciário, a apontar desilusões no sonho americano.

            Em outro campo ideológico encontra-se Al Capone [18], famoso gangster, cuja vida instiga imaginações. Sua trajetória cruza-se com as autoridades do imposto de renda norte-americano. Seria exemplo clássico e pedagógico de que o crime tributário não compensa. Criado no Brooklyn (em Nova Iorque), Capone mudou-se aos vinte e um anos para Chicago, onde ajudou um tio, que gerenciava um bordel. Cinco anos mais tarde, Capone comandava imensa rede de cinco mil chantagistas. Pagava salários de mais de trezentos mil dólares por semana para seus empregados, que militavam no mundo do crime. Capone não tinha piedade dos rivais, que eliminava por motivos de somenos. Chantageava policiais e políticos; a impunidade era a marca de seus reiterados crimes. As autoridades começaram a investigar a vida tributária de Capone. Ele não tinha conta bancária, não possuia propriedades em nome próprio. Capone pagava com dinheiro vivo tudo o que comprava. Não deixava rastros. O agente federal Frank J. Wilson listou transações pessoais do gangster, que não encontravam justificação de receita prévia, verdadeira fratura exposta, no jargão da fiscalização tributária. Ternos caríssimos, contas de telefone, carros de luxo, casas e barcos na Flórida surgiram em cenário de pouquíssimas explicações plausíveis. O agente Elliot Ness investigou a atuação de Capone à frente da produção e comercialização de bebidas alcóolicas, atividades então proibidas, por força de emenda constitucional. Intimidado, Capone propôs confissão de culpa (plea bargaining) em troca de punição menos severa. Autoridades federais não aceitaram a barganha e Capone foi condenado a onze anos de prisão e a pagar multa de cinquenta mil dólares [19]. De Chicago (onde foi preso) Capone foi removido para penitenciária em Atlanta. De lá foi transferido para Alcatraz, em São Francisco, na Califórnia, prisão de segurança máxima. Capone foi mais tarde hospitalizado (em 1938) apresentando avançado estado de sífilis. Foi libertado em 1939 e viveu na Flórida até 1947, ano de sua morte. Passou seus últimas dias atormentado por imaginários pistoleiros, tomado por avançada demência. Al Capone permanece junto a opinião pública como referência de que não há impunidade contra os agentes do imposto de renda. Manobra-se sua imagem como sustentáculo de premissa puritana que nos dá conta de que a vida fora da lei seria um apocalíptico convite ao sofrimento [20].

            A opinião pública norte-americana empolgou-se também com o julgamento de Bruno Richard Hauptmann, em 1935 [21]. Era um imigrante alemão, que em setembro de 1934 pagou com uma antiga nota de dez dólares compra de combustível que fizera num posto de gasolina. Intrigado com a nota, fora de circulação, o frentista anotou a placa do veículo e contatou a polícia. As autoridades constataram que se tratava de nota utilizada no pagamento do resgate (ransom) do filho de Charles Lindbergh [22], episódio que chocara a nação, em 1932. É que embora o preço tenha sido pago, o bebê fora assassinado barbaramente. Além disso, tratava-se do filho de um ídolo nacional. Lindbergh é herói da aviação. Em maio de 1927 voou de Nova Iorque a Paris, cruzando o Atlântico em passeio solitário.

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            Na casa de Hauptmann a polícia encontrou cerca de quatorze mil dólares, em notas antigas, que teriam sido utilizadas para o pagamento do resgate da criança, Charles Jr.; cinquenta mil dólares fora o valor entregue por Lindbergh. O jornal New York Times calculou os bens de Hauptmann em cerca de quarenta e nove mil dólares. Lindbergh garantiu que a voz de Hauptmann fora a mesma que ouvira na noite em que pagara o resgate. Quem duvidaria do mito dos ares ? Encontrou-se entre os objetos de Hauptmann pedaço de papel com o telefone de John Condon, professor aposentado que conduzira as negociações entre Lindbergh e o suposto sequestrador. A polícia evidenciou semelhanças entre a caligrafia do acusado e bilhetes recebidos por Lindbergh. Fragmento de escada encontrada na casa de Lindbergh na noite do sequestro parecia pertencer a escada guardada na garagem da casa de Hauptmann.

            William Randolph Hearst [23], magnata da imprensa sensacionalista [24], contratou advogados para a defesa de Hauptmann, em troca de direitos exclusivos para a venda da história do acusado. Hauptmann explicou em juízo a origem do dinheiro. Afirmou que um cidadão alemão de nome Isidor Fisch, ao retornar para a Alemanha para tratamento médico, deixara em seu poder alguns pertences. Entre eles, uma caixa de sapato. Alguns anos após a partida de Isidor, Hauptmann teria aberto a caixa e encontrado cerca de quarenta mil dólares. Como Isidor devia-lhe sete mil e quinhentos dólares, Hauptmann sentiu-se legitimado para usar parte do dinheiro. A defesa demonstrou que a prova referente a escada era insuficiente. Escadas como aquelas havia por toda parte. O júri no entanto pendeu para a condenação de Hauptmann. O governador de Nova Jérsei (que poderia comutar a pena) teria visitado o condenado na prisão, dizendo-se não convencido da culpabilidade de Hauptmann. Porém a opinião pública clamava pelo herói, exigia a punição de Hauptmann, que foi eletrocutado em 3 de abril de 1936. Em 1991, a viúva de Hauptmann, então com noventa e dois anos de idade, continuava lutando para reabilitar o nome do marido. Exigia indenização e apresentava robusta prova de que o FBI e polícia teriam fraudado as provas, conduzindo os jurados a condenarem Hauptmann. E por fim, quanto ao dinheiro do resgate, ela ainda insistia, fora deixado por Isidor Fisch [25].

            Em 1947 o nome de Charles Chaplin, célebre comediante inglês radicado nos Estados Unidos, frequentou o noticiário por causas de problemas legais. Chaplin era o conhecido pequeno vagabundo (little tramp) do cinema mudo. Produziu, dirigiu e encenou clássicos como Luzes da Cidade, Tempos Modernos, O Grande Ditador. Sua vida particular era espionada pelos guardiães da moralidade, que tinham em mira os inúmeros casamentos do ator, assim como frequentes relacionamentos do mesmo com mulheres mais novas, a exemplo de Paulette Goddard e especialmente Oona O’Neill. Tempos Modernos outorgou-lhe fama de simpático ao pensamento socialista; o filme denuncia implacavelmente a exploração e a coisificação do trabalhador industrial. Isso não passou despercebido ao macartismo, ao movimento de caça as bruxas. Chaplin deixou os Estados Unidos e viveu na Suíça, onde morreu em 1977 aos oitenta e oito anos de idade. O Grande Ditador satiriza Hitler e o nazismo. Inesquecível a deliciosa cena na qual o ditador brinca com uma imensa bola, que representa o mundo. Formidável o momento em que Hitler e Mussolini conversam; ao ditador italiano reservou-se uma pequena cadeira, um banquinho, que indicava desconforto e pequenez. Era como Hitler via o mundo, segundo Chaplin.

            Konrad Bercovici era roteirista (screenwriter) de Chaplin, com quem manteve longa e afetuosa relação de amizade. Todavia, logo após a proibição da exibição do Grande Ditador na Alemanha [26], Bercovici ajuizou ação contra Chaplin em Nova Iorque, alegando plágio. Bercovici teria concebido o filme, preparado excertos do roteiro, desenhado cenários. Exigiu como compensação seis milhões e meio de dólares. Muita gente acompanhava o julgamento pela imprensa. Celebridades de Hollywood prestaram depoimentos. Chaplin defendeu-se dizendo que jamais vira o roteiro (script) de Bercovici. Disse também que não tinha nenhum acordo verbal com o autor da ação. Chaplin insistiu que todos os contratos que firmara até então eram escritos. Bercovici reduziu o pedido para quinhentos mil dólares e depois para trezentos e cinquenta mil. Chaplin negociou junto a corte em nome próprio e reduziu o astronômico pedido inicial a noventa e cinco mil dólares. Com o acordo, desfez-se o júri. A opinião pública ganhou mais elementos para fofocas. O julgamento marcou momento de ira contra Chaplin que mais tarde, perseguido por suas idéias supostamente socialistas e por sua afeição por moças de tenra idade, deixará os Estados Unidos pela Europa, onde viveu e morreu, cercado pelo respeito e pela admiração devidos aos gênios.

            Em 1949 os norte-americanos tomaram conhecimento de que os russos também possuíam a bomba atômica. Nova onde de histeria toma conta da nação, que se ergueu contra o perigo vermelho [27]. A guerra fria transforma mais uma vez o país, que vê inimigos e traidores por toda a parte. O julgamento de Julius e Ethel Rosenberg, que foram condenados a morte e executados na cadeira elétrica, acusados de espionagem e de venda do segredo que conduziu a bomba atômica russa, é o mais ilustrativo exemplo jurídico desse momento [28]. Em 1950 Klaus Fuchs foi preso na Inglaterra. Tratava-se de um cientista nuclear alemão que trabalhara no projeto norte-americano para construção da bomba atômica, o American’s Manhattan Project [29]. Ele foi condenado a quatorze anos de prisão ao confessar que passara informações aos soviéticos. Nos Estados Unidos prendeu-se Harry Gold, que teria trabalhado para Fuchs, levando as informações aos espiões russos. Chegou-se a David Greenglass e a seu cunhado Julius Rosenberg. Greenglass confessou que fora convidado a espionar para os russos por Julius Rosenberg e sua mulher, Ethel. O FBI conseguiu ligar vários amigos do casal Rosenberg a rede russa de espionagem. Greenglass disse ter obtido dos Rosenberg descrição da bomba atômica usada em Nagasaki. Desenhos foram encontrados e após esvaziamento da sala do tribunal, exibidos aos jurados, como o segredo da bomba atômica, o que certamente causara impressão nos julgadores leigos. Subitamente surgiram inúmeros indícios que incriminavam o casal. Um fotógrafo testemunhou (descobriu-se depois que ele mentiu) que o casal lhe pedira fotos de passaporte. Deduziu-se que pretendiam fugir do país. Foram condenados a pena de morte. Pedidos de clemência vieram do mundo todo. O Papa Pio XII, Albert Einstein e demais personalidades tentaram em vão sensibilizar as autoridades norte-americanas. O presidente Eisenhower negou perdão. A Suprema Corte recusou-se a apreciar novos pedidos. Não obstante protestos e indignação o casal foi eletrocutado em 19 de junho de 1953.

            Em corte temporal e conceitual, o presente excerto observa que outro importante componente do imaginário popular, pelos efeitos reais, a violência policial, fora também detectado em março de 1991, quando em Los Angeles alguns policiais ordenaram que um homem chamado Rodney King parasse seu carro [30]. King teria se recusado a sair do veículo e por isso os policiais teriam usado cacetetes para obrigá-lo a deixar o automóvel. Ao que consta, Rodney King não tinha oferecido resistência. Teria sido agredido por três policiais enquanto outros tantos a tudo assistiam, sem tomar nenhuma atitude. Os policiais não sabiam que um cineasta amador filmava o episódio e que o filme seria a base da acusação contra as autoridades. Os policiais insistiam que cumpriam o dever e que foram obrigados a agir com energia, dada a resistência de Rodney King. O caso transcende do trivial, dada a condição de King : ele é afrodescendente. Além disso, havia rumores que os policiais o chamaram de nigger, palavra ofensiva, nos dias politicamente corretos em que vivemos [31]. É difícil a composição de um corpo de jurados que contenha pessoas de cor e que reflita circunstância desprovida de preconceito, o que é problemático no modelo judiciário norte-americano [32]. Por outro lado, é impossível o controle de fatores externos, a influenciarem a decisão de jurados [33]. Qualquer esforço de racionalidade parece distante do direito na vida real [34]. Absolvidos os policiais, a cidade de Los Angeles enfrenta uma rebelião (riot) de proporções só vistas na década de sessenta [35], quando a movimentação pelos direitos civis estava na ordem do dia [36], e nomes como Martin Luther King, Jr., George Wallace e Malcom X eclipsavam a nação [37]. Conflitos de rua resultaram em mais de cinquenta mortes e prejuízos que orçam em mais de um bilhão de dólares. O governo federal intervém e os policiais foram em seguida processados por desrespeito a direitos civis de Rodney King. Em 1993 dois dos policiais envolvidos foram condenados a trinta meses de prisão cada um deles. Os episódios são dramáticos e comprovam que a convivência entre diferentes grupos raciais [38] é ainda uma utopia, enquanto a violência policial atesta um tempo difícil, de radicalismo, de incompreensão.

            Samuel Chase, John Webster, Sacco, Vanzetti, Capone, Hauptmann, Chaplin, Rosenberg e Rodney King ilustram lista que poderia ser acrescida por Chesmann (o bandido da luz vermelha), Hoffa, Manson, Angela Davis, Patricia Hearst, Oliver North, Noriega, Mike Tyson, O.J. Simpson e tantos outros conhecidos ou anônimos, que fazem da vida do país uma incansável busca de culpados, reais ou não, fascínoras ou bode expiatórios, lombrosianos ou freudianos [39], que comprovam que a atitude do homem médio em face da lei é um misto de desconfiança, temor, ódio, paixão, curiosidade. Estudar o direito norte-americano sem esse aviso simbólico é privar o jurista do dúvida socrática que promove a revelação do mundo.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e imaginário popular nos Estados Unidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1471, 12 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10138. Acesso em: 19 abr. 2024.

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