Artigo Destaque dos editores

A desconsideração da personalidade jurídica na execução trabalhista

Exibindo página 2 de 2
14/10/2006 às 00:00
Leia nesta página:

4. IMPOSSIBILIDADE DA PENHORA DE BENS DOS SÓCIOS

A última posição bate-se pela impossibilidade de aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, argumentando principalmente que, por não haverem figurado como partes na reclamação trabalhista originária (fase de conhecimento), os sócios não sofreram qualquer condenação naquele processo. Cabível, então, o provérbio jurídico "uma coisa feita entre uns não prejudica, nem beneficia, outros", retratado no artigo 472 do Código de Processo Civil, ou seja, "a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada".

A 2ª Câmara do extinto 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo concedeu a ordem de segurança, estabelecendo a inaplicabilidade da teoria da desconsideração, por ofensa ao artigo 20 do antigo Código Civil, que exige o devido processo legal25, nos seguintes termos: "A doutrina da superação ou desconsideração da personalidade jurídica traz questão de alta indagação exigente do devido processo legal para a expedição de um provimento extravagante, que justifique invadir a barreira do art. 20. do CC. Não é resultado que se alcance em simples despacho ordinatório da execução, do arresto ou do mandado de segurança, todos de cognição superficial".

O artigo 20 do antigo Código Civil estabelecia o seguinte: "As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros".

O Superior Tribunal de Justiça admitiu, outrossim, o mandado de segurança "para cassar ato judicial de arrecadação de bens em poder de terceiro, praticado em procedimento do qual não foi parte", visto que "não pode ser efetuada sem a declaração judicial de ineficácia do ato, em ação revocatória ou noutra ação"26.

Os demais defensores da mencionada corrente argumentam, ainda, que o artigo 596 do Código de Processo Civil proíbe penhora dos bens particulares dos sócios e que não há previsão legal exigida por referido dispositivo. Aplica-se, portanto, ao caso vertente o dispositivo legal do artigo 5º, II, da Constituição Federal.

O citado artigo da Lei Processual estabelece: "Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade".

A reportagem anteriormente mencionada no Espaço Jurídico Bovespa (nº 21) noticiou que "números de decisões judiciais que determinam uso de acionistas, cotistas e administradores para quitar débitos corporativos aumenta e base jurídica que deu origem a este tipo de procedimento é cada vez mais desprezada. Para obter alguma proteção, empresas optam até por seguro".

Aliás, não por outra razão consultorias empresariais oferecem até mesmo serviços de "proteção patrimonial".

A diferenciação do patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios é indispensável para a segurança e o bom andamento da política comercial, pois, segundo os especialistas, "nenhum empresário vai dar início a um negócio, se existir a ameaça de que, se incorrer em insucesso, poderá perder todo o patrimônio de sua vida" 27.

Complementa o autor da frase acima, afirmando que, persistindo tal insegurança, surgem duas possibilidades: a) o empresário não irá montar a empresa, o que é péssimo para a economia; b) vai querer o retorno dos riscos, encarecendo os serviços e os produtos.

Interessante destacar, ainda, o seguinte julgado: "O direito tem por escopo a estabilidade social e a Justiça; por função, a solução dos conflitos. O primeiro não se cumpre quando ferido o princípio da razoabilidade e a segunda falha quando, para resolver uma execução trabalhista, deixa de tutelar a boa-fé".28

Por fim, convém destacar a súmula nº 205 do TST (cancelada pela resolução nº 121/03, DJ 21.11.03), no sentido de que "o responsável solidário, integrante do grupo econômico, que não participou da relação processual como reclamado e que, portanto, não consta no título executivo judicial como devedor, não pode ser sujeito passivo na execução".


5. CONCLUSÃO

A Justiça do Trabalho foi uma das pioneiras no assunto, adotando a desconsideração da pessoa jurídica em vários julgados. No Brasil, "a teoria foi introduzida por Rubens Requião, numa conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná"29. Segundo a revista que aborda o fato, a teoria surgiu pela primeira vez na jurisprudência da Inglaterra, porém concretizou-se nos Estados Unidos.

Evidentemente que a matéria não se encontra pacificada no âmbito da Justiça do Trabalho30, tratando-se de medida excepcional e extrema, que depende de prova da má-fé, abuso, ilicitude, inidoneidade etc..

Trivial, outrossim, que, para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, buscando uma decisão justa para o pagamento do crédito trabalhista de natureza alimentar e superprivilegiado, será necessária a dilação probatória e a obediência aos princípios do contraditório e da ampla defesa, nos termos do artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal.

Após o transcurso dos procedimentos legais (citação, indicação de bens, penhora etc.), poderá ser adotada a medida por decisão fundamentada, sem esquecer que a execução será feita pelo modo menos gravoso ao devedor (art. 620. do CPC).

Cediço que o princípio do devido processo legal garante às partes litigantes o direito de ação e de defesa, igualdade entre as partes, publicidade dos atos processuais, contraditório e ampla defesa, fundamentação das decisões judiciais etc.. O princípio é comentado com exatidão por José Celso de Mello Filho.31

Trivial, ainda, que o Juiz deverá analisar as provas e os objetivos de forma proporcional, confrontando, portanto, os interesses dos litigantes, no caso em pauta, principalmente os princípios da proteção tutelar (natureza alimentar) e o devido processo legal.

Ademais, salvante melhor juízo, não há que se falar em ofensa ao princípio do devido processo legal, visto que o suposto prejudicado pela desconsideração da pessoa jurídica terá oportunidade de produção de provas, por ocasião dos eventuais embargos e eventual recurso (agravo de petição) para a defesa da suposta ilegalidade. Convém lembrar ainda que, caso ocorra ofensa ao patrimônio ou direito líquido e certo de terceiros, poderão os interessados utilizar outros meios de defesa, como, por exemplo, os embargos de terceiro, cautelar, declaratória, correição parcial ou o respectivo mandado de segurança.

Não há que se falar, ainda, na falta de amparo legal para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, levando-se em conta que há aplicação subsidiária do direito comum existente na falta de dispositivo específico na Consolidação das Leis do Trabalho, nos termos do artigo 8º, parágrafo único, c.c. o artigo 769, ambos da CLT.

Trata-se de excelente avanço jurisprudencial e doutrinário, consolidado pelo atual Código Civil (art. 50) e Código do Consumidor (art. 28), sempre na busca da efetividade processual, celeridade, moralização do processo de execução e recebimento do crédito alimentar. Segundo Rubens Requião32: "a personalidade jurídica não constitui um direito absoluto, mas está sujeita e contida pela teoria da fraude contra credores e pela teoria do abuso de direito", motivo pelo qual baseia-se, para a aplicação da teoria da desconsideração, na fraude e no abuso (responsabilidade subjetiva). 33

Sobre o assunto (ausência de legislação) convém destacar: "Não bastam apenas os dispositivos legais, pois existem milhares de maneiras de cometer injustiça sem quebrar uma única lei." Reitere-se: "Se o elemento humanitário não devesse ser sempre observado, nem precisaríamos de juízes. Bastariam computadores aplicando mecanicamente as normais legais", conforme reportagem da Folha de São Paulo, citada anteriormente (nº 22).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A posição intermediária, analisando todos os fundamentos e decisões anteriores, é a melhor solução para o caso vertente, no sentido de permitir a desconsideração da personalidade jurídica como exceção à regra, após a produção de todas as provas necessárias, desde que demonstrados todos os artifícios, abusos e injustiças praticados pelo devedor.

A primeira corrente, que não permite a desconsideração, é retrógrada, pois não permite o avanço do direito para acompanhar a modernidade. A terceira corrente, por outro lado, no sentido de que é sempre possível desconsiderar a personalidade jurídica, independentemente da comprovação de má-fé, é também radical e proporciona a instabilidade jurídica, pois extrapola os princípios legais.

Em homenagem ao princípio da razoabilidade, diante do trabalho realizado pelo empregado e não recebimento do crédito alimentar, o correto é aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica como exceção à regra, buscando todas as provas concretas dos abusos e injustiças, como, por exemplo, má-fé, dolo, abuso ou confusão do patrimônio, proporcionando assim a mutação do direito e a efetividade da Justiça.

O posicionamento adotado é prudente, cauteloso e homenageia a finalidade processual da pacificação social, proporcionando credibilidade ainda maior ao já festejado órgão especializado da Justiça do Trabalho.


Notas

1 A desconsideração da personalidade jurídica: limites para sua aplicação, Alexandre Couto Silva, RT. 780/47.

2 2º TACivSP, 10ª Câm. Ap. 60069-0/3, rel. Juiz Marcos Martins, v.u., 29.08.2001.

3 Acórdão 1332-2003-111-15-00-2, TRT 15º região, agravo de petição, 6ª turma, 12ª câmara, Juíza Relatora Olga Aida Joaquim Gomieri, sessão de 01/03/2005.

4 Acórdão 00385-2002-032-15-00-8, TRT 15º região, agravo de petição em embargos de terceiro, Juíza Relatora Fany Fajerstein, publicado em 04/06/2004.

5 Curso de Direito Comercial, volume 2, 8º edição, São Paulo, Saraiva, 2005, pág. 31.

6 Acórdão 0044087-2004, TRT 15º região, agravo de petição, Juiz Relator Nildemar da Silva Ramos, publicado em 19/11/2004.

7 Acórdão 011594-2004, TRT 15º região, agravo de petição, Juíza Relatora Elency Pereira Neves, publicado em 16/04/2004.

8 Acórdão 036321-2003, TRT 15º região, agravo de petição, publicado em 21/11/2003, voto não disponível diante do segredo de justiça.

9 Decisão 545348-1999, TST, publicada em 27/03/2001, Relator Ministro Ronaldo José Lopes Leal.

10 Decisão 727179-2001, TST, publicada em 13/11/2001, Relator Ministro João Oreste Dalazen.

11 Nelson Mannrich, Professor de Direito do Trabalho da USP e Mackenzie, sócio do Escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich & Aidar Advogados e Consultores Legais.

12 Valentin Carrion, Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, 30ª edição, Editora Saraiva, pág. 736.

13 Os direitos trabalhistas na falência e concordata do empregado, LTr 1996, pág. 105, citado na obra anterior.

14 Agravo de petição nº 00192-2005-383-04-00-7, rel. Hugo Carlos Scheuermann, TRT 4º Região.

15 Fernando Tardioli, Escritório Correia a Silva & Mendonça do Amaral Advogados, Folha de São Paulo, caderno Dinheiro, página B 1, 08 de janeiro de 2006.

16 Apelação cível nº 34710/05, Rel. Des. Jorge Luiz Habib, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

17 Juan Daniel Pereira Sobreiro, Juiz de Direito, processo nº 319/04, Comarca de Ibaiti, Estado do Paraná.

18 Mandado de segurança nº 478099/98, TST, relator Ministro João Oreste Dalazen.

19 Ação rescisória nº 531319/99, TST, relator Ministro Ives Gandra Martins Filho.

20 1º TACIVIL – 8ª Câm.- AI nº 869.588-4, v.u.).

21 www.bovespa.com.br, reportagem "Justiça amplia uso de patrimônio de sócio para pagar dívidas de empresa".

22 Folha de São Paulo, 29 de novembro de 2005.

23 RT. 708/257, "A consciência moral do Juiz", Desembargador José Renato Nalini.

24 Ação rescisória nº 545348/99, TST, rel. Ministro Ronaldo Leal.

25 RT. 657/120, rel. Juiz Sena Rebouças.

26 RT. 725/147, rel. Min. Cláudio Santos.

27 Fábio Ulhoa Coelho, item 21.

28 AASP 2476, TRT 2º região, 7º turma, rel. Juíza Catia Lungov.

29 RT. 768/350 e 410/12.

30 Provimento 1/2006, Ministro Rider Nogueira de Brito, Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho, boletim AASP 2464.

31 A tutela judicial da liberdade, José Celso de Mello Filho, RT. 526/291.

32 Curso de Direito Comercial, 1º volume, Editora Saraiva, 1998, págs. 349. e 351.

33 RT. 780/53.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Paulo Mazzante de Paula

advogado, especialista em Direito Processual Civil, professor de Direito do Trabalho das Faculdades Integradas de Ourinhos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Paulo Mazzante. A desconsideração da personalidade jurídica na execução trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1200, 14 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9043. Acesso em: 19 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos