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Ações para obtenção de coisa (art. 461-a do CPC)

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02/10/2006 às 00:00
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6. Ação de restituição e comodato

6.1. A extinção do comodato

O contrato de comodato pode ter prazo determinado ou não. O prazo determinado pode ter sido expresso no contrato ou resultar da sua natureza e objetivo. Como diz o art. 581, primeira parte, do CC, "se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido".

Se o prazo é indeterminado , o comodante pode colocar fim ao contrato a qualquer momento, sem ter que apresentar motivo, por meio da chamada denúncia vazia. Contudo, no caso em que o prazo do comodato é o que se presume necessário para o uso concedido, não há como admitir a denúncia vazia, justamente porque o contrato possui prazo determinado – e não indeterminado.

Nessa hipótese, ou melhor, em qualquer situação em que o contrato possui prazo determinado, o comodante não pode, "salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada" (art. 581, CC). Como está claro, esta necessidade imprevista e urgente deve ser reconhecida pelo juiz.37 O caso é de denúncia cheia, isto é, motivada.

Não se trata de resilição, mas de declaração unilateral de vontade que deve ser motivada. A diferença é a de que a denúncia, ao contrário da resilição38, apenas interrompe a continuação, sem desconstituir o que "constituído estava e havia de continuar".39

Se o comodato possui prazo convencional, pode ser proposta ação de retomada tão logo o contrato tenha expirado o seu prazo, não sendo desnecessária denúncia prévia. Como já decidiu o STJ, findo o prazo certo do comodato, "não é necessário que o comodante promova a interpelação do comodatário para a restituição do bem, uma vez que, por tratar-se de obrigação a termo, a não devolução do imóvel no prazo avençado é motivo suficiente para constituir o devedor em mora".40

Porém, se o contrato não possui prazo convencional, e o comodante reputa esgotado o prazo necessário para o uso concedido, deve ser feita denúncia cheia, motivando-se o direito de retomada.

Isso porque, no caso em que o prazo não é convencionado, o comodante deve demonstrar que o prazo necessário para o uso concedido encerrou.

No caso de morte do comodatário, e sendo o comodato deferido apenas a esse, também deve ser feita denúncia cheia. O comodante motivará sua denúncia – que deverá ser endereçada ao herde iro do morto - com a alegação de que o uso era pessoal. Há, mais uma vez, mera declaração unilateral de vontade motivada, que coloca termo ao comodato.

Se essas denúncias não forem atendidas, terão que ser propostas ações pelos comodantes, quando então o demandado poderá afirmar que não houve a extinção do prazo concedido para o uso, ou o herdeiro alegar, por exemplo, que o comodato não era pessoal ao falecido.41

6.2. A admissão do uso da ação de reintegração de posse para a retomada da coisa objeto do comodato

Os tribunais têm admitido o uso da ação de reintegração de posse contra o comodatário que não entrega a coisa, apesar de devidamente notificado.

Como já decidiu, por exemplo, o Tribunal de Alçada de Minas Gerais, "a ação própria contra o comodatário que, constituído em mora, não entrega a coisa, é a de reintegração de posse".42

E o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "Reintegração de posse. Comodato. Notificação. Esbulho. Liminar. Se a prova dos autos evidencia contrato de comodato do imóvel por tempo indeterminado, com regular notificação da ocupante, sem que tenha sido devolvido o imóvel, resta injusta a posse da comodatária, justificando liminar concessiva de reintegração. Agravo de instrumento desprovido".43

6.3. As razões dessa admissão

É muito fácil constatar a razão pela qual a prática brasileira passou a admitir o uso da ação de reintegração de posse diante do não atendimento à notificação para a restituição da coisa entregue em comodato.

É que a ação de conhecimento que encontrava leito no procedimento comum, até o final de 1994, não viabilizava a tutela antecipatória e a sentença executiva. Portanto, é indiscutível que a prática passou a lançar mão da ação de reintegração de posse com os "olhos" nos benefícios outorgados pelo seu procedimento especial, especialmente por sua liminar.

Perceba-se que, ao mesmo tempo em que se conferiu a ação de despejo à locação, deixou-se ao comodante somente a ação de procedimento comum. Porém, não é racional dar procedimento especial ao que aluga e procedimento comum ao que empresta. Se o locador possui direito à retomada da coisa, igual direito pertence ao comodante. Por isso, o comodante, para se livrar da inefetividade do procedimento comum, foi buscar solução ao seu problema no procedimento especia l reservado à reintegração de posse.44

6.4. A inadequação da reintegração de posse para o comodante retomar a coisa emprestada

Note-se que não é pelo fato de que o imóvel não foi devolvido, após a notificação do locatário, que passará a caber ação de reintegração de posse, e não mais ação de despejo. Aliás, discutiu-se intensamente sobre a admissão da reintegração de posse contra o locatário que abandona o imóvel e não entrega as chaves. Supondo-se que o abandono configuraria espécie de denúncia tácita, afirmava-se, baralhando-se o efeito da denúncia com a natureza da ação cabível para a retomada da coisa, que não teria sentido propor ação de despejo, uma vez que a locação já estaria desfeita.45

Os tribunais deram resposta parcialmente satisfatória ao equívoco. O Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, por exemplo, afirmando que o abandono não é causa de desconstituição, lembrou que a ação de despejo "não se presta apenas para obter a desocupação do imóvel locado.

Constitui-se em meio processual específico para obter o pronunciamento judicial de extinção da relação de locação, e, em conseqüência, obrigar o inquilino a desocupar o bem a ele locado".46

A suposição de que a ação de despejo é cabível porque o abandono não é causa de desconstituição, leva à conclusão de que essa modalidade de ação não deveria ser proposta se essa causa estivesse presente. Acontece que, ainda que tivesse sido feita a denúncia para o locatário abandonar o imóvel, não haveria como se admitir ação de reintegração de posse. Também no caso em que o locatário deixa de pagar o aluguel, e há cláusula resolutória expressa, pouco importa a resilição da locação. Ou seja, nada importa, para o efeito de ser cabível ação de despejo e não ação de reintegração de posse, o fato de ter ocorrido a desconstituição da locação. Não é porque ocorreu a desconstituição da locação que a ação de despejo deixará de ser invocável, para passar a ser adequada a ação de reintegração de posse. O cabimento da ação de despejo nada tem a ver com a prévia desconstituição do contrato. Melhor dizendo: não é porque houve denúncia, ou mesmo inadimplemento confortado por cláusula resolutória expressa, que, ao invés do despejo, será o caso de propor ação de reintegração de posse.

A ação de despejo é voltada a proteger a locação, e não a permitir a defesa da posse. O mesmo raciocínio deve ser empregado em relação ao comodato. O contrato de comodato exige, para sua efetiva proteção pelo sistema jurídico, ação de restituição da coisa emprestada. Sim, pois de nada vale deixar emprestar e não permitir retomar. Dizer que a ação voltada à proteção da posse é adequada à tutela do contratante é baralhar posse com contrato. Se há direito à retomada da coisa emprestada, o direito à ação encontra amparo no contrato e não na defesa da posse.

Perceba-se que não entregar a coisa emprestada é muito diferente que afirmar ser proprietário ou possuidor próprio, ou impróprio mas sem qualquer vínculo com o comodante.47 Se o comodatário afirma ser proprietário da coisa emprestada, a agressão é ao domínio, e desse modo deve ser proposta ação reivindicatória. Se o comodatário diz que a sua posse não tem relação alguma com a do comodante, aí sim seria adequada a ação de reintegração de posse.

Acontece que, quando se está diante de ação para fazer valer o comodato, não há motivo para o autor discutir domínio ou posse, mas apenas a existência e a eficácia do contrato 48. A ação de reintegração de posse, consoante declara o art. 927. do CPC, exige que o autor prove: i) a sua posse; ii) o esbulho praticado pelo réu; iii) a data do esbulho; e iv) a perda da posse. Portanto , se a reintegração fosse a ação adequada para o comodato, nela deveria ser discutida apenas a posse e o esbulho.

Acontece que a ação do comodante é fundada no contrato e, por isso, a contestação pode não apenas alegar sua inexistência ou ineficácia, como ainda afirmar que o motivo da denúncia não permite a extinção do comodato ou que o motivo invocado para a denúncia não corresponde à realidade. Como está absolutamente claro, a elucidação da afirmação de retenção indevida da coisa entregue em comodato é indissociável da análise do contrato. Em outras palavras, a cognição do juiz, nessa ação, não pode dispensar a discussão do contrato.

6.5. O objetivo que se esconde atrás do uso da ação de reintegração de posse contra o comodatário

Como já foi dito, o que levou os advogados a lançarem mão da ação de reintegração de posse em favor do comodante foram os benefícios do seu procedimento especial, fundamentalmente a possibilidade da concessão de liminar.

O pior é que se tentou fazer acreditar que essa liminar estaria na dependência somente da realização da denúncia e da não entrega da coisa. É evidente, contudo, que isso não basta para abrir ensejo à concessão da liminar.

Não há como negar que a cognição do juiz, na ação voltada à obtenção da coisa entregue em comodato, recai necessariamente sobre o contrato. A simples denúncia vazia, afirmando a existência de contrato por prazo indeterminado, não é, por si só, fundamento para a procedência, pois é possível que esse contrato não exista ou seja ineficaz. No caso de prazo determinado – convencional ou presumido -, o demandado evidentemente poderá discutir a alegada "necessidade imprevista e urgente". Na hipótese de denúncia que afirma o término do prazo necessário para o uso, o comodante também deverá – como na hipótese anterior -, desincumbir-se do seu ônus de provar o alegado.

Ao se pretender impor a idéia de que o esbulho, e por conseqüência a liminar, seria decorrência automática da denúncia ou da extinção do contrato, desejou-se conferir uma espécie de direito absoluto ao comodante e, ao mesmo tempo, encobrir o direito do possuidor negar a existência do contrato e dos motivos da denúncia. Ora, como o réu, no caso, tem o evidente direito de discutir o contrato e os motivos que o circundam, é óbvio que o esbulho não é decorrência automática da denúncia.

Com essa pretendida distorção, seria fácil simular a existência de comodato verbal para, com a afirmação de esbulho, propor ação de reintegração de posse e obter liminar.

6.6. A ação de restituição fundada no art. 461-A

Se o comodante tem o direito de pedir a restituição da coisa, e é importante eliminar o mau vezo de se negar a possibilidade da discussão do contrato para se conferir liminar de reintegração de posse, é preciso deixar claro que a ação de reintegração de posse não é adequada para a hipótese em que a retomada da coisa depende da discussão do contrato.

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Assim como a locação abre oportunidade para a ação de despejo – que nada mais é que ação de restituição da coisa locada - , o comodato deve viabilizar mera ação de retomada, em que também se admita a discussão do contrato e da sua extinção.

Atualmente, o art. 461-A fornece técnicas processuais capazes de permitir a construção de uma efetiva ação de restituição de coisa. Basta pensar na técnica antecipatória e na sentença que permite a efetivação da restituição sem que seja necessária a propositura de ação de execução.

O comodante, em razão das técnicas processuais instituídas pelo art. 461-A, tem a possibilidade de pedir a restituição da coisa emprestada por meio da técnica antecipatória e da sentença de executividade intrínseca. Porém, a tutela antecipatória dependerá da demonstração da existência do comodato e de sua extinção. No caso de comodato verbal e de denúncia cheia (necessidade imprevista e urgente e término do prazo necessário para o uso concedido), pouco importará, para efeito de tutela antecipatória, a mera alegação de não entrega da coisa.

Na realidade, os pressupostos da tutela antecipatória e da sentença de procedência, no caso que ora interessa, são intimamente ligados ao contrato. Como a ação de retomada da coisa entregue em comodato abre oportunidade para a sua ampla discussão, não há como pensar que essa ação de retomada possa ser vista como ação de reintegração de posse. Não se trata de opção teórica, mas da necessidade de afirmação dos reais limites de cognição da ação relativa ao comodato.

De qualquer forma, se tudo isso for levado em consideração, permitindo-se a discussão de todas as alegações que o comodatário pode fazer na ação voltada à retomada da coisa, não importará o rótulo atribuído à ação, se despejo, comodato, imissão de posse ou reintegração de posse.49 O que interessa é que, por meio de tal ação, pede -se a restituição da posse com base na extinção do comodato.50 Portanto, como não há mais qualquer motivo para o uso do procedimento de reintegração de posse, e como o uso desse procedimento pode escamotear a necessidade da discussão do contrato, a ação do comodante, a partir de agora, deverá se fundar no art. 461. -A.


7. Ação de restituição e leasing

7.1. O uso distorcido da ação de reintegração de posse

Em relação ao leasing51 também ocorreu a distorção do uso da ação de reintegração de posse, e aí com a evidente finalidade de propiciar liminar ao credor às custas do direito do devedor discutir a abusividade das cláusulas contratuais.

Com efeito, imaginou-se, para viabilizar a possibilidade do credor obter liminar de reintegração de posse, duas situações: i) que, diante da cláusula resolutiva expressa, o simples inadimplemento das prestações seria suficiente para caracterizar a resolução do contrato, e então abrir margem para a reintegração de posse; ii) ou que, em face do inadimplemento, o credor deveria notificar o devedor para caracterizar a mora e tornar ilegítima a posse sobre a coisa objeto do leasing, quando então surgiria como oportuna a ação de reintegração de posse.

Contudo, a ação de reintegração de posse, por ser ação destinada à proteção da posse, não serve para o caso de leasing, em que o direito à restituição da coisa depende, como é óbvio, da desconstituição do contrato e, assim, de ampla oportunização da discussão dos seus termos.

Portanto, quer se admita a cláusula resolutiva expressa ou a necessidade de notificação, o inegável é que a retomada exige, como pressuposto lógico, a desconstituição do contrato, e desse modo o oferecimento de espaço para a sua ampla discussão.

7.2. A tese de que a existência de cláusula resolutiva expressa dá ensejo para a reintegração de posse, independentemente da inexistência de notificação

Há julgados do STJ que entendem que a existência de cláusula resolutiva 52 expressa, nos contratos de leasing, é suficiente para, em caso de inadimplemento, determinar a sua resolução.

O inadimplemento, diante dessa cláusula, operaria a resolução do contrato, de modo que, a partir daí, a posse sobre o bem objeto do leasing tornar-se-ia ilegítima, sendo então cabível a ação de reintegração de posse.

Com efeito, em acórdão relatado pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, a 3ª Turma do STJ assentou que, "contendo o contrato de arrendamento mercantil cláusula resolutiva expressa, dispensável é a notificação prévia".53

7.3. A tese que exige a notificação

Porém, a 4ª Turma do STJ, em acórdão relatado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar, entendeu que "a notificação prévia da arrendatária é requisito para a ação de reintegração de posse promovida pela arrendadora".54 A mesma Turma, mas desta vez em acórdão relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, assim concluiu:

"Civil e Processual Civil. Contrato de Leasing. Cláusula Resolutiva Expressa. Ação de Reintegração na Posse. Interpelação Prévia ao Devedor. Necessidade. Constituição em Mora. Ausência. Impossibilidade Jurídica do Pedido. Art. 267, CPC. Recurso Provido. I – A ausência de interpelação prévia ao devedor, para a sua constituição em mora, nos contratos de arrendamento mercantil (leasing), enseja a impossibilidade jurídica do pedido de reintegração na posse do bem".55

Antes dessas duas decisões, a 4ª Turma do STJ, em acórdão relatado pelo Ministro Barros Monteiro, já tinha afirmado que "constitui requisito para a propositura da ação reintegratória a notificação prévia da arrendatária, mencionando-se o montante do débito atualizado até a data do ajuizamento e fornecendo-se desde logo os elementos necessários para a sua determinação final".56

7.4. As razões escondidas atrás da discussão a respeito da necessidade de notificação

A cláusula contratual que entende bastante o inadimplemento do devedor para a resolução do leasing, e por isso dispensa a notificação prévia, objetiva retirar do consumidor a possibilidade de pagar as prestações devidas ou de discutir o contrato, o qual pode trazer encargos eivados de ilegalidades. Essa cláusula é notoriamente desfavorável ao consumidor, e portanto abusiva e nula.

Tal cláusula, ao determinar a resolução do contrato em razão do não pagamento das prestações, deseja abrir oportunidade para a retomada automática da coisa. É por isso que a defesa da cláusula resolutiva expressa está atrelada à idéia de que a ação em que o credor postula a coisa não é a sede própria para se discutir vícios no contrato.

Note-se que o STJ, ao aceitar a cláusula resolutiva expressa, sustenta que a liminar de reintegração de posse independe da discussão do contrato. Com efeito, a 3ª Turma do STJ já teve a oportunidade de frisar que "se o tribunal limita a discussão unicamente à questão da possibilidade de reintegrar-se a credora liminarmente à posse do bem, quando no contrato há cláusula resolutiva expressa, impertinentes, para esta via, se afiguram as discussões sobre a demudação do contrato de arrendamento mercantil em compra e venda em razão da cobrança antecipada do valor residual garantido".57

Diante da clara ligação entre cláusula resolutiva expressa e impedimento do conhecimento de discussões relativas ao contrato, é evidente que o objetivo dessa cláusula é o de permitir a retomada do bem em face de simples retardamento no pagamento. Afirma -se, simplesmente, que, "contendo o contrato cláusula resolutiva, realizada a condição, torna-se injusta a posse de quem recebeu o bem, desnecessária a notificação prévia ".58

Isso, porém, não tem procedência alguma, pois significa a possibilidade de o credor retomar o bem sem dar ao devedor a oportunidade de pagar as prestações ou discutir o inadimplemento.

Repelindo a tese de que a cláusula resolutiva expressa seria suficiente para dar origem à reintegração de posse, o STJ já afirmou que, no leasing, "a arrendatária tem o direito de ser previamente notificada para exercer o direito de purgar a mora ou de se defender ou de exercer defesa preventivamente contra a pretensão recuperatória prometida pela arrendadora. Se não for assim, a arrendatária ficará submetida a graves conseqüências pela simples demora, sem que lhe oportunize demonstrar a inexistência de mora (art. 963, CC de 1.916; art. 396, CC de 2.002), ou o oferecimento da prestação devida (art. 959, CC de 1.916; art. 401, CC de 2.002)".59

Demais, o art. 54, §2º, do CDC, é expresso ao afirmar que a cláusula resolutória somente pode ser admitida, nos contratos de adesão, quando for alternativa. Com isso se quer dizer que cabe ao consumidor escolher entre a resolução e a manutenção do contrato. Nessa direção, a cláusula contratual que obrigar o consumidor a renunciar a esse direito de escolha é manifestamente abusiva, enquadrando-se na moldura do art. 51, I, do CDC.

Se o devedor tem o direito de manter o contrato, pagando as prestações em atraso, tem ele, por conseqüência lógica, o direito inafastável de discutir as cláusulas contratuais na ação destinada à retomada do bem. Se o entendimento fosse o de que o não pagamento opera a resolução do contrato, ao devedor restaria pagar para não ver o contrato resolvido . Isso seria absurdo. Não há como pensar que a obrigação de pagamento possa ser considerada alternativa à não resolução do contrato. O devedor tem o direito de apresentar defesa para impedir a retomada do bem.

Porém, a existência desses direitos não depende da necessidade da notificação. Como é óbvio, não é porque a notificação é desnecessária que o devedor não poderá purgar a mora até a contestação ou apresentar defesa relativa a vícios do contrato. Quando o STJ afirma a necessidade de notificação, sua preocupação é visível e justa: sustenta-se a necessidade da notificação para conferir ao devedor oportunidade de purgar a mora, eliminando-se, assim, a possibilidade de retomada do bem em razão do simples atraso no pagamento das prestações.

Entretanto, o não atendimento da notificação não seria suficiente para caracterizar o direito de retomada do bem, justamente porque o devedor pode purgar a mora até a contestação60, bem como se defender alegando que o contrato possui vícios ou que as prestações exigidas são abusivas.

Se o devedor pode purgar a mora até a contestação e discutir amplamente os termos do contrato, não há necessidade de notificação. A ação de restituição que viabiliza a purga da mora e a discussão do contrato não exige prévia constituição em mora. A notificação somente seria necessária se o entendimento fosse o de que seria cabível ação de reintegração de posse. É que o esbulho, fundamento dessa ação, apenas se configuraria com constituição em mora, operada pela notificação.

Como é evidente, o problema não está na necessidade ou não da notificação, mas sim na inadequação da ação de reintegração de posse. Se a constituição em mora não é pressuposto da ação de restituição, o objetivo da notificação pode ser alcançado com o exercício da ação, quando se dará ao devedor a oportunidade de purgar a mora. Por essa razão, a petição dessa ação deve ser considerada imperfeita quando não descrever o valor da dívida atualizada até a data do ajuizamento e fornecer os elementos necessários para a sua apuração. O réu, desejando purgar a mora, deverá requerer ao juiz, no prazo da contestação, que seja fixado prazo para o pagamento da dívida, podendo desde logo propor data para tanto.

7.5. O STJ entende que o arrendatário, na ação de reintegração de posse relativa a contrato de leasing, pode discutir a legalidade e a abusividade das cláusulas contratuais

Ao se pensar na necessidade da discussão do contrato na ação denominada de "reintegração de posse", há, na verdade, ação de restituição da coisa fundada na desconstituição do contrato.

O STJ tem afirmado que o réu pode discutir, na ação de reintegração de posse decorrente de contrato de arrendamento mercantil, a validade das cláusulas geradoras do débito que deu ensejo à demanda.61 Ou ainda que, "na ação de reintegração de posse de bem objeto de arrendamento mercantil, afigura-se possível ao réu alegar, na defesa, contrariedade à lei ou ao contrato".62

Ora, se é possível discutir o contrato, é claro que a restituição da coisa depende de juízo sobre a sua desconstituição. Isso quer dizer que não há como aceitar a posição que sustenta o cabimento de liminar de reintegração de posse como decorrência automática do não pagamento, exista ou não notificação.

Ao se conferir ao réu oportunidade para discutir o contrato, descabe pensar em tutela antecipatória antes da apresentação da contestação ou quando esta apresenta alegações –obviamente revestidas de seriedade – relativas ao contrato.

7.6. Se a cognição da ação em que é pedida a restituição da coisa objeto do comodato abarca a discussão do contrato, a ação não é de reintegração de posse, mas simplesmente ação de restituição fundada no art. 461-A

O uso da ação de reintegração de posse, diante do leasing, deriva de uma mera opção de técnica processual do credor. Acontece que a principal característica da ação de reintegração de posse não decorre do seu procedimento especial, mas sim do fato de que a sua cognição deve ficar limitada à questão possessória. Recorde-se que, passado mais de ano e dia, a aç ão de reintegração de posse, mesmo antes da introdução do art. 461-A no CPC, não perdia a sua característica essencial, mas apenas o seu procedimento especial (a sua forma processual especial).

Na ação rotulada de reintegração de posse pelo credor do leasing há postulação de recuperação da coisa. Mas esse tipo de postulação também existe na ação reivindicatória e na ação de despejo, sem que essas possam ser consideradas possessórias. O que faz que uma ação possa ser dita de reintegração de posse não é o seu pedido (de recuperação da coisa) e muito menos o seu procedimento, mas sim o seu fundamento.

Ora, o fundamento da imaginada ação de reintegração de posse relativa ao leasing é o inadimplemento do contrato, e não a posse ou o esbulho. Mas, se o inadimplemento do contrato fosse capaz de originar ação de reintegração de posse, o não pagamento do aluguel, em face da locação, também deveria dar base para a reintegração de posse, e não para a ação de despejo.

Note-se que o direito à recuperação da coisa não basta para fundar ação de reintegração de posse.

Abrindo-se oportunidade para a discussão do contrato, a ação – por se fundar na sua desconstituição - é de restituição da coisa – nos moldes da ação de despejo.

Como não é difícil concluir, a ação de reintegração de posse era utilizada em razão da inexistência de procedimento, voltado para a recuperação da coisa, dotado de técnica antecipatória e sentença de executividade intrínseca. Ou seja, o que se desejava, com o uso da ação de reintegração de posse, eram apenas os benefícios do seu procedimento especial, esquecendo-se que essa ação possui cognição restrita à questão possessória.

Hoje há procedimento adequado para o exercício da ação de recuperação de coisa. Trata-se da forma processual instituída pelo art. 461-A, que estabelece, para a efetividade da restituição da coisa, a técnica antecipatória e a sentença de executividade intrínseca.

Assim, a partir de agora, o credor do leasing, sem ter que apresentar notificação, deverá propor ação de restituição da coisa com base no art. 461-A. Nessa ação, será possível ao devedor purgar a mora com a apresentação da contestação, ou, em outro caso, discutir amplamente o contrato.

A tutela antecipatória não pode ser concedida antes de se dar ao réu a oportunidade de apresentar contestação e purgar a mora. Além disso, havendo impugnação das cláusulas contratuais, revestida de seriedade, não será o caso de se deferir a tutela na forma antecipada.63 Se não for assim, o inadimplente será tratado como esbulhador sem poder explicar o motivo pelo qual não pagou.64

Por outro lado, embora a tutela antecipatória, nesse caso, não exija o perigo – uma vez que o direito à retomada, quando evidente, traz em si a urgência -, a verdade é que essa presunção de urgência deve ser balanceada, diante das circunstâncias do caso concreto, em face das necessidades do réu. Nesse sentido, em voto de grande sensibilidade jurídico-social, o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira observou que, no caso de bem essencial ao desempenho da atividade econômica da empresa devedora, podendo a retirada imediata acarretar até mesmo a completa paralisação de suas funções, é de se admitir que ele fique em depósito com o arrendatário até solução definitiva do mérito. De acordo com o Ministro Sálvio, "se a conseqüência da antecipação dos efeitos da sentença for excessivamente drástica, melhor que a situação permaneça no estado em que se encontra".65

7.7. O uso da multa para compelir o devedor a entregar a coisa objeto do leasing

Antes da introdução do art. 461-A no CPC, os tribunais já se deparavam com pedidos de imposição de multa para obrigar o devedor a entregar o bem objeto do leasing. Negava-se a possibilidade da imposição da multa com base no fundamento de que "o arrendatário inadimplente tem a obrigação de dar coisa certa em relação ao arrendante" e que o CPC "somente prevê multa diária para o descumprimento das obrigações de fazer ".66

Atualmente, entretanto, o óbice que não permitia a imposição da multa para dar efetividade às sentenças relativas à entrega de coisa já não mais existe. Agora, diante dos termos do §3º do art. 461-A, é expressamente possível invocar a multa - que antes estava disciplina da expressamente apenas em relação às obrigações de fazer e de não fazer - para atender às sentenças que determinam a restituição do bem entregue ao arrendatário.

Em tais casos, a multa é fundamental quando o devedor não informa a localização do bem.

Como a forma de satisfação do direito do credor depende da localização do bem, a multa pode ser imposta para pressionar o devedor a indicar a sua localização. Até porque o devedor não tem extinto o seu dever de entregar a coisa simplesmente pelo fato dessa não ter sido localizada. O seu dever perdura até o momento da obtenção da coisa por parte do credor.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. Ações para obtenção de coisa (art. 461-a do CPC). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1188, 2 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8844. Acesso em: 15 mai. 2024.

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