A EXPANSÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO UM INDICADOR DA FALÊNCIA MORAL CONTEMPORÂNEA

22/11/2020 às 22:07
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O texto pretende uma abordagem do tema afeto à aplicação do princípio da insignificância na seara do direito penal, mostrando a tendência da jurisprudência atualizada e fazendo uma reflexão sob questões técnicas, sociais e morais que envolvem o assunto.

A EXPANSÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO UM INDICADOR DA FALÊNCIA MORAL CONTEMPORÂNEA

 

1. INTRODUÇÃO

Muito já se escreveu e se debateu a respeito do tema proposto, tanto em sede doutrinária quanto em nível jurisprudencial. A jurisprudência existente é farta, tendo sido o assunto explorado por todos os tribunais superiores do País. A maior parte da literatura publicada e disponível para estudo aborda a temática sobre o viés humanitário e garantista, sendo que alguns textos chegam a se assemelhar a estudos na área de filantropia e assistencialismo, tal a preocupação com caracterização da chamada “Insignificância”. Em comum, a grande parte do que já foi escrito defende a aplicação do princípio da insignificância de forma habitual no âmbito do direito penal.

Entretanto, raras são as vezes em que se aborda a questão da aplicação desse instituto sob a ótica principiológica da moralidade e da ética. Isto é, os aspectos morais e éticos, no que se refere às condutas outrora recriminadas pela sociedade e, consequentemente, positivadas pelo direito, não são abordados sob o ponto de vista dos bons costumes, da virtude e dos valores morais que o cidadão deve possuir e transmitir aos seus descendentes.

Afinal, antes de serem observados exclusivamente como fato jurídico, os chamados pequenos delitos ou irrelevantes penais – crimes nos quais se afasta a tipicidade pela aplicação do princípio da insignificância – são ocorrências relativamente comuns na sociedade e possuem características que devem ser observadas tanto pelo prisma legal, quanto pelo prisma social.

As justificativas que autorizam a classificação dos delitos como “de menor importância” ou “de bagatela” e que contribuem para a construção do pensamento que permite a aplicação desse instituto doutrinário na jurisprudência penal de forma trivial são as mais diversas. Nem todas são convincentes.

Tudo aquilo que já foi construído doutrinária e jurisprudencialmente para justificar o uso desse instituto nos mais diversos casos concretos levados à jurisdição do estado é de fato legítimo ou apenas tenta amenizar a incapacidade do próprio estado de gerir suas instituições de uma forma que cumpram o papel para o qual foram criadas, educando e corrigindo os rumos da sociedade em prol da sua evolução?

O presente trabalho tem o modesto objetivo de realizar uma abordagem não restrita a questões técnicas de aplicação do princípio da insignificância no âmbito do direito penal, mas também abordará aspectos morais, ainda que de forma sintética, devido à grande amplitude do tema.

 

2. DIREITO, MORAL E ÉTICA

A concepção do Direito entendida pelo jurista italiano Santi Romano, citado pelo saudoso Miguel Reale1 é excelente, pois, cansado de ver o Direito concebido apenas como regra ou comando, concebeu-o antes como “a realização de convivência ordenada”.

Considerando a teoria do mínimo ético, desenvolvida pelo jurista alemão Georg Jellinek, o Direito representa apenas o mínimo de moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver, embora nem tudo que é moral seja abrangido pelo Direito.

Assim, muitas obrigações morais devem ser revestidas de força coercitiva para que a sociedade não se afunde no caos, uma vez que nem todos querem cumprir espontaneamente aquilo que a sociedade entende como correto ou adequado.

Ocorre que o Direito é vasto e nem tudo aquilo que nele está contido se trata no campo da moral. Muitas normas jurídicas são simplesmente amorais, ou seja, existem por motivos que não abrangem preceitos éticos ou de ordem moral, como, por exemplo, regras processuais e tantas outras de aplicação puramente procedimental.

A dificuldade reside, desta forma, na aplicação das regras jurídicas que possuem origem em valores sociais éticos, ou seja, aquelas que trazem em seu bojo valores correspondentes aos que o homem deve pautar sua conduta para bem viver em sociedade.

Vale lembrar que a interpretação axiológica das regras, assim como dos princípios está em constante evolução e, as alterações legislativas, muitas das vezes, não acompanham essas mudanças, fazendo aumentar a importância da jurisprudência nesse cenário.

Cabe ressaltar que, infelizmente, o contrário também acontece, quando alterações legislativas são levadas a efeito, motivadas por interesses de pequenos grupos com influência nas diversas Casas Legislativas ou, até mesmo, por pressões de organismos internacionais em um planeta cada vez mais globalizado e que não traduzem a vontade da maioria da população ou que não estão legitimadas nos valores e costumes estabelecidos pela sociedade brasileira.

Em resumo, pode-se dizer que a moral é aquilo que a sociedade preceitua como norma de comportamento do homem em sociedade, mas que não possui nenhum tipo de força coercitiva, por fazer parte do comportamento a ser exercido pelo homem espontaneamente para a garantia do seu próprio bem-estar. O Direito acaba por emprestar à moral a força necessária para o seu cumprimento obrigatório.

A ética, por sua vez, situa-se em um amplo campo valorativo e busca interpretar, analisar, dar significado e justificar as condutas do homem em coletividade sob o enfoque da moralidade, do direito, dos próprios costumes e das condutas consideradas lícitas ou ilícitas desenvolvidos ao longo da história.

A Introdução ao Estudo da Ciência do Direito permite fazer a distinção, com base em teorias de cunho filosófico, entre a ética, a moral e o direito, mas não se pode abandonar a ideia de que os três conceitos integram as relações sociais e, apesar de distintos, devem caminhar lado a lado, pois são integrantes da própria vida em sociedade.

Importante ainda, levar em consideração a teoria tridimensional do direito, comumente apresentada ao estudante de direito logo em seus primeiros momentos acadêmicos e desenvolvida por Miguel Reale2 que demonstra, em síntese apartada, ser o direito construído com base em componentes normativos, axiológicos e fáticos que devem ser harmonizados entre si.

 

3. PRINCÍPIOS

De Plácido e Silva3, em sua obra Vocabulário Jurídico, assim define: “Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito...”

O professor Canotilho4 esclarece que os princípios são normas jurídicas impositivas de uma otimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fáticos e jurídicos.

Os princípios são normas jurídicas de otimização, e como tal, podem e devem fundamentar decisões, nada obstante seu elevado grau de abstração. Segundo a doutrina predominante, não se confundem com as regras, que por sua vez também são espécies de normas jurídicas com grau de generalidade que permite (ou deveria permitir) a sua subsunção aos mais variados casos concretos, considerando-a válida ou inválida para cada situação em particular.

Ronald Dworkin, citado por Humberto Ávila5 em sua obra, explica:

“Para ele as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing), no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. No caso de colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão, mas somente contem fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade.”

 

4. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA


4.1 Origem

Sua origem remonta o Direito Romano. Com base em uma máxima minimus non curat pretor, alguns doutrinadores como Diomar Ackel Filho6 entendem que já era aplicada a insignificância no momento em que o Pretor Romano deixava de se deter com questões de pouca importância, com “pequenas causas”.

Outros entendem que essa origem do Direito Romano tinha um enfoque no direito privado e deve servir apenas como uma referência histórica. Sendo assim, as ideias dos filósofos iluministas é que seriam as responsáveis pela origem recente do conceito de insignificância.

Entretanto, a utilização no âmbito do direito penal foi efetivada no início do século XX, na Europa, com o aumento de casos de furtos e delitos de pequena monta como decorrência de guerras e da depressão econômica. É o que ensina Maurício Lopes7.


4.2 Características Principais

O princípio da insignificância, também conhecido por princípio da bagatela, vem sendo habitualmente utilizado no Poder Judiciário por se tratar de instituto manejado por operadores do direito em todos os níveis (em particular as defensorias públicas brasileiras) com o objetivo principal de afastar a tipicidade material de crimes considerados de pequena monta, a partir dos seguintes pressupostos, adotados e cristalizados pela jurisprudência pátria:

  • Não causar prejuízo ao bem jurídico tutelado pelo direito ou ofensividade mínima ao bem jurídico tutelado.

  • Não caracterizar conduta reprovável do agente ou reduzida reprovabilidade da conduta do agente.

  • Não representar nenhuma periculosidade social.

  • Inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Segundo o antigo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto (HC 104.787/RJ, Dje nº 33 de 18 FEV 11), “o princípio da insignificância é vetor interpretativo do tipo penal, tendo por escopo restringir a qualificação de condutas que se traduzam em ínfima lesão ao bem jurídico nela albergado. Tal forma de interpretação insere-se num quadro de válida medida de política criminal, visando, para além da descarcerização, ao descongestionamento da Justiça Penal, que deve ocupar-se apenas das infrações tidas por socialmente mais graves.”

Os tribunais brasileiros entendem que, estando presentes os 04 requisitos acima, positivados e consolidados na jurisprudência pretoriana a partir do HC 84.412/SP, de relatoria do antigo Ministro Celso de Mello (DJe de 19 NOV 04), a atitude criminosa não possui o condão de ensejar um decreto condenatório estatal, pois afastada estaria a tipicidade material do fato criminoso.

A jurisprudência vem admitindo a aplicação desse princípio com frequência regular em diversos tipos penais como, por exemplo, aqueles que possuem como objeto jurídico tutelado o patrimônio. Nesses casos, a subtração de um bem de valor reduzido afasta (em muitos casos) a materialidade do tipo penal. Em outras palavras, o furto de um bem considerado pelos tribunais como de valor ínfimo é formalmente típico (se subsume formalmente ao tipo penal), mas acaba por ser considerado como materialmente atípico, pelas características acima descritas. Observe-se o acórdão bem esclarecedor do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

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PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TENTATIVA DE FURTO. LATA DE TINTA NO VALOR DE R$130,00. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DENÚNCIA REJEITADA. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o princípio da insignificância tem como vetores a mínima ofensividade da conduta, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2. Se é certo que o princípio da insignificância deve ser usado com parcimônia pelo julgador, visando sua não banalização e incentivo ao cometimento de pequenos delitos, não menos certo que sua aplicabilidade é casuística. 3. Com efeito, na hipótese em exame, embora a ação do recorrido - tentativa de furto qualificado - se amolde à tipicidade formal, que é a perfeita subsunção da conduta à norma incriminadora e à tipicidade subjetiva, não há como reconhecer presente a tipicidade material, que consiste na relevância penal da conduta e do resultado típicos em face da significância da lesão produzida ao bem jurídico tutelado pelo Estado. Isso porque o objeto do delito - uma lata de tinta avaliada em R$ 130,00 (cento e trinta reais) - possui valor ínfimo, não havendo qualquer notícia de que a vítima tenha logrado prejuízo, seja com a conduta do acusado ou com a consequência dela - mormente porque a res foi recuperada e restituída -, o que evidencia a dispensabilidade do prosseguimento da ação, pois o resultado jurídico, qual seja, a lesão produzida ao bem jurídico tutelado, mostra-se absolutamente irrelevante. 4. Ademais, o valor da res furtiva, diferentemente da forma como a jurisprudência vem entendendo em relação ao crime de descaminho, deve ser agregado a outros parâmetros de análise, adotando-se o valor de R$ 100,00 apenas como valor referência e não valor limite. Precedentes. 5. Agravo regimental não provido. (STJ – AgRg no REsp 1282906/SP. Rel Min Jorge Mussi - 2011)

 

Fundamental destacar que o ministro-relator afirmou que uma lata de tinta no valor de R$ 130,00, no ano de 2011, possuía valor ínfimo. Acredita-se não ser essa a realidade, mesmo que a caracterização do chamado “valor ínfimo” seja apenas para fins penais.

Além das características já citadas, fala-se em descongestionamento do sistema prisional, em interpretação mais humana e moderna do direito penal, em prisões brasileiras desumanas e verdadeiras “escolas de criminalidade”, em visão extremamente legalista do direito, em prestígio ao princípio da tolerância, em descarcerização, dentre outros argumentos que efetivamente guardam pouca ou nenhuma relação direta de causa e efeito entre uma conduta criminosa e a necessária reprimenda do estado, legítimo detentor do ius puniendi, além de demonstrar o distanciamento real no qual se encontram os bem remunerados decisores nos tribunais superiores, da violenta realidade social das grandes cidades brasileiras.

Quando se trata de porte para consumo de drogas, em regra, a jurisprudência do STF e do STJ consolidou entendimento que não se aplica o princípio da insignificância, pelos motivos abaixo expostos:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO CABIMENTO.

1. A jurisprudência de ambas as Turmas Criminais deste Superior Tribunal de Justiça tem posicionamento assente no sentido de que o crime de posse de drogas para consumo pessoal é de perigo abstrato ou presumido, que visa a proteger a saúde pública, não havendo necessidade, portanto, de colocação em risco do bem jurídico tutelado, de tal forma que não há falar em incidência do postulado da insignificância em delitos desse jaez, porquanto, além de ser dispensável a efetiva ofensa ao bem jurídico protegido, a pequena quantidade de droga é inerente à própria essência do crime em referência.

2. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no REsp 1581573/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 11/10/2016, DJe 09/11/2016)


 

Em relação aos crimes capitulados na Lei nº 10.826 de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm e define crimes, houve recente mudança de entendimento no STJ e no STF, no sentido de permitir a aplicação do princípio da bagatela para alguns dos crimes nela previstos. Segue um exemplo característico dessa alteração:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DE POSSE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO. APREENSÃO DE POUCOS CARTUCHOS. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. APREENSÃO DAS MUNIÇÕES EM CONTEXTO DE TRÁFICO DE DROGAS. QUANTIDADE DE ESTUPEFACIENTES QUE AFASTA A ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE, NA ESPÉCIE, CONSIDERANDO AINDA O FATO DE A VEXATA QUAESTIO TER SIDO AVENTADA EM REVISÃO CRIMINAL NA ORIGEM.

1. A Sexta Turma desta Casa, alinhando-se ao Supremo Tribunal Federal, passou a admitir a aplicação do princípio da insignificância aos crimes previstos na Lei n. 10.826/2003, esclarecendo que a ínfima quantidade de munição apreendida, aliada à ausência de artefato bélico apto ao disparo, evidencia a inexistência de riscos à incolumidade pública. Precedentes.

….

(AgRg no REsp 1841973/AP, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020)

 

4.3 Posicionamento do Supremo Tribunal Federal

Seguindo a sanha pelo aumento do uso do princípio da insignificância, o STF aplicou o instituto pela primeira vez aos crimes ambientais em 2012, concedendo habeas corpus em favor de um pescador criminoso. Segue a Ementa da decisão, em sede do HC 112.563-SC, de relatoria do Min Ricardo Lewandowski:

EMENTA: AÇÃO PENAL. Crime ambiental. Pescador flagrado com doze camarões e rede de pesca, em desacordo com a Portaria 84/02, do IBAMA. Art. 34, parágrafo único, II, da Lei nº 9.605/98. Res furtivae de valor insignificante. Periculosidade não considerável do agente. Crime de bagatela. Caracterização. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Absolvição decretada. HC concedido para esse fim. Voto vencido. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, à luz das suas circunstâncias, deve o réu, em recurso ou habeas corpus, ser absolvido por atipicidade do comportamento.

Interessante registrar que a ação constitucional acima, proposta pela Defensoria Pública da União (DPU), foi inicialmente rejeitada pelo Relator, entretanto, o Min César Pelluso, seguido pelo Min Gilmar Mendes concederam o habeas corpus para absolver o pescador criminoso, que fora pego com camarões em época de defeso para fins de reprodução da vida marinha.

Sustentaram os ministros defensores da liberdade, que uma dúzia de camarões não causaria desequilíbrio ao meio ambiente, em que pese estar em período de defeso. Espera-se, sinceramente, que os demais pescadores não tenham lido a decisão à época, sob pena de extinção da espécie na região, caso todos resolvessem capturar suas ‘INEXPRESSIVAS” cotas de camarões no período proibido, sob o manto de um Salvo Conduto Pretoriano.

Seguindo a evolução da jurisprudência consolidada do STF, é certo que os crimes patrimonias, dentre outros que se subsumem aos quatro primordiais requisitos cuidadosamente construídos para caracterização do crime bagatelar, promovem a absolvição do acusado, desde que o esse agente não cometa os crimes reiteradamente. É o que mostra a decisão a seguir:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA NO CASO. CONTUMÁCIA DELITIVA. REPROVABILIDADE DA CONDUTA. ORDEM DENEGADA.

.

3. Para se afirmar que a insignificância pode conduzir à atipicidade é indispensável, portanto, averiguar a adequação da conduta do agente em seu sentido social amplo, a fim de apurar se o fato imputado, que é formalmente típico, tem ou não relevância penal. Esse contexto social ampliado certamente comporta, também, juízo sobre a contumácia da conduta do agente.

4. Não se pode considerar atípica, por irrelevante, a conduta formalmente típica, de delito contra o patrimônio, praticada por paciente que em outros dois processos já teve reconhecida a atipicidade de sua conduta em face do pequeno valor dos bens subtraídos, além de responder a três ações penais pela prática de crimes da mesma espécie.

5. Ordem denegada. (STF. HC 114.462/RS. Rel Min Teori Zavascki, 2ª Tu, 11 MAR 14)

Cabe aqui destacar que a decisão acima, tendo denegado a repetitiva súplica da DPU, teve como voto divergente o Min Gilmar Mendes, que entendeu, já em 2014, pela concessão da ordem, tendo ficado vencido naquela ocasião.

A questão da reiteração delitiva como forma de impedir a aplicação do crime bagatelar soa como consectário lógico do bom senso e da ordem pública a qualquer homem médio. Afinal, sabendo que pode furtar diversas vezes sem ser repreendido ou punido, o agente criminoso se valerá disso como um modus vivendi, a partir de um incentivo do próprio Estado.

Fácil e lógico concluir que a aplicação da insignificância em reiteração criminosa contribuiria sobremaneira para a insegurança jurídica e para a insegurança pública propriamente dita.

Entretanto, o tempo passou, e a busca pela aplicação do princípio da insignificância aumentou. Em 2020, o HC 181.389-SP, desta vez conduzido ao STF pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e com relatoria do Ministro Gilmar Mendes, confirma a alteração de posicionamento do Tribunal Constitucional Brasileiro, tendo sua votação sido concluída por unanimidade.

Segue, imediatamente abaixo, trechos fundamentais do voto do Min Relator Gilmar Mendes, seguido por unanimidade dos membros

...

...nas instâncias inferiores, o princípio da insignificância não foi aplicado em razão da reincidência do paciente e do fato de o furto ter sido cometido no período noturno.

Destaca-se que, no julgamento conjunto dos HCs 123.108, 123.533 e 123.734 (Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 1º.2.2016), o Plenário desta Corte firmou o entendimento segundo o qual, no delito de furto, a reincidência não impede, por si só, a possibilidade de atipicidade material.

Nesta Segunda Turma, tenho-me posicionado, juntamente com Sua Excelência o Ministro Celso de Mello, no sentido da possibilidade de aplicação do princípio da bagatela em casos a envolver reincidentes.

...

Levando em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o recorrente possuir antecedentes criminais.

Por isso, reputo mais coerente a linha de entendimento segundo a qual, para incidência do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa e não os atributos inerentes ao agente, sob pena de, ao proceder-se à análise subjetiva, dar-se prioridade ao contestado e ultrapassado direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato. Ou seja, reincidência ou maus antecedentes não impedem, por si sós, a aplicação do princípio da insignificância. (STF – Ag Reg em HC 181.389/SP. Min Rel Gilmar Mendes. 2ª Tu. 14 ABR 20).

 

4.4 Posicionamento da Justiça Militar da União

Na seara da Justiça Castrense Federal, pode-se dizer que as interpretações contemporâneas são semelhantes à jurisprudência estabelecida pelo STF. Entretanto, a aplicação do princípio da insignificância em crimes militares é extremamente parcimoniosa pelo Superior Tribunal Militar (STM), sob pena de incentivo à desordem nas organizações militares de uma maneira geral.

No que se refere aos crimes contra o patrimônio, em especial o furto, o próprio Código Penal Militar (CPM) prevê expressamente a aplicação do princípio da insignificância no seu art. 240, §1º, que versa sobre o “furto atenuado”. De toda forma, a questão é passível de aplicação no contexto dos crimes militares, tendo os julgadores da Corte Militar Superior brasileira o constante dever de analisar repetitivos e cansativos pedidos de absolvição de criminosos por insignificância. Seguem alguns exemplos:

EMENTA: APELAÇÃO. DPU. FURTO. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADOS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 1. O militar que encontra objeto perdido, dentro da Organização Militar, tem obrigação de reportar o fato aos superiores hierárquicos e envidar esforços para que o proprietário seja localizado, sob pena de praticar o delito de furto. 2. O furto praticado por militar dentro da caserna não atinge apenas o patrimônio da vítima, mas, também, a disciplina e a hierarquia. Portanto, não há inexpressiva ofensividade ao bem jurídico tutelado, o que impede a aplicação do Princípio da Insignificância. Recurso conhecido e não provido. Decisão unânime. (Superior Tribunal Militar. Apelação nº 7001154-77.2019.7.00.0000. Relator(a): Ministro(a) ARTUR VIDIGAL DE OLIVEIRA. Data de Julgamento: 10/06/2020, Data de Publicação: 30/06/2020)

 

EMENTA: APELAÇÃO. DEFESA. FURTO. AUTORIA E MATERIALIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. FURTO ATENUADO. RESTITUIÇÃO DA RES ANTES DA INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. CRIME TENTADO. 1. A confissão do Apelante, feita ainda em sede de IPM, faz prova da autoria, desde que haja compatibilidade e consonância com as demais provas judiciais. 2. O furto praticado por militar dentro da caserna não atinge apenas o patrimônio da vítima, mas, também, a disciplina e a hierarquia. Portanto, não há inexpressiva ofensividade ao bem jurídico tutelado, o que impede a aplicação do Princípio da Insignificância. 3. Para configuração do furto atenuado, a restituição da res furtiva deve ser efetivada de forma voluntária, não se perfazendo quando o objeto for apreendido por ação da autoridade policial militar. 4. Durante o tempo em que a res furtiva permanece escondida na mochila de campanha do réu, há sua retirada da esfera de posse e disponibilidade da vítima e o ingresso na livre disponibilidade do agente, consumando-se o crime de furto. Recurso conhecido e não provido. Decisão unânime. (Superior Tribunal Militar. Apelação nº 7001158-17.2019.7.00.0000. Relator(a): Ministro(a) ARTUR VIDIGAL DE OLIVEIRA. Data de Julgamento: 06/02/2020, Data de Publicação: 20/02/2020)

No que tange aos crimes de consumo de drogas para uso próprio, a doutrina, assim como a jurisprudência, são amplamente majoritárias no sentido de rechaçar a possibilidade da adoção do crime bagatelar na Justiça Militar da União, pois, além de atingir a saúde pública, o referido delito também possui como objeto jurídico, reflexamente, o dever militar e os próprios princípios constitucionais norteadores das instituições militares, que são a hierarquia e a disciplina. Vejamos a sensata conclusão de Ricardo Vergueiro Figueiredo8:

“No nosso entender, o princípio da insignificância não deve ter aplicação na âmbito da Justiça Militar da União, quando a situação fática envolver substâncias entorpecentes, caso contrário, certamente restarão sucumbidos os princípios jurídico-constitucionais que sustentam as Forças Armadas, quais sejam, da hierarquia e de disciplina, previstos no já mencionado artigo 142 da Constituição Federal.”

Neste diapasão, a maioria da doutrina e da jurisprudência afirmam ser inconcebível que um militar habilitado a usar instrumentos e artefatos de guerra capazes de causar morte e destruição e treinado para atuar em condições de rigor psicológico acentuado, possa fazer uso de substância entorpecente, por mínima que seja sua quantidade, sob pena de prejudicar não apenas a ordem nos quartéis, mas também a atividade de cumprimento de suas destinações constitucionais expondo a perigo civis e os próprios companheiros de farda.

EMENTA: APELAÇÃO. DPU. PORTE DE ENTORPECENTE PARA CONSUMO PRÓPRIO NO INTERIOR DA UNIDADE. CONDUTA TÍPICA POR FORÇA DO ART.290 DO CPM. ALEGADA INCOMPATIBILIDADE DA PENA DE PRISÃO. USUÁRIO DE DROGAS. INCOMPATIBILIDADE COM A CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE E DE VIENA. TESE REFUTADA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA DA LEI Nº 11.343/06. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. DESPROVIMENTO. MANUTENÇÃO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. DECISÃO POR UNANIMIDADE. Pedido de absolvição firmado em tese de inconstitucionalidade do art. 290 do CPM à luz das Convenções de Nova Iorque e de Viena, sob o argumento de que os referidos tratados possuem status de norma constitucional. Matéria não conhecida como preliminar por se tratar do fenômeno da receptividade de norma infraconstitucional, devendo, portanto, ser analisada como questão de mérito. A imposição de sanção penal ao usuário de entorpecentes, no âmbito da caserna, não diverge do entendimento do Supremo Tribunal Federal, o qual considera que o art. 290 do CPM se revela harmonioso com a Constituição da República e, assim, é aplicável ao usuário de drogas. Prevalência do princípio da especialidade da norma penal castrense para afastar a aplicação das penas alternativas da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. A ofensa aos valores intrínsecos à vida na caserna desautoriza a aplicação do princípio da insignificância calcado na ínfima quantidade de entorpecente. O bem jurídico tutelado pelo Código Penal Militar não se restringe à saúde pública, mas também à segurança das instituições militares, tendo em vista o uso e o manuseio de armas e de equipamentos de alto poder destrutivo, situação que expõe a perigo inevitável os integrantes da Organização Militar, diante de pessoa tomada pelos efeitos da maconha ou de qualquer outra substância entorpecente. Autoria e materialidade comprovadas. Apelo desprovido. Decisão unânime. (Superior Tribunal Militar. Apelação nº 7001150-40.2019.7.00.0000. Relator(a): Ministro(a) WILLIAM DE OLIVEIRA BARROS. Data de Julgamento: 05/03/2020, Data de Publicação: 18/03/2020)

 

5. CONCLUSÃO

Qual a diferença moral entre furtar um óculos adquirido no comércio ambulante por R$ 15,00 e furtar (nas mesmas condições) outro óculos, aparentemente semelhante, cujo preço gira em torno de R$ 5.000,00? E a diferença entre uma bicicleta com valor de mercado em torno de R$ 100,00 e outra pertencente a um atleta profissional no valor de R$ 10.000,00, sendo que ambas, aos olhos do agente criminoso, são semelhantes e valem a mesma coisa.

O desvalor de um furto ou do uso de substâncias proibidas em pequena quantidade, deveria realmente ser considerada insignificante em matéria penal? É isso que a nossa sociedade entende como correto? Ou a sociedade acha que esse tipo de criminoso não tem mais “jeito” e deve ficar impune?

Sendo assim, todos possuem autorização do Estado (na pessoa do Poder Judiciário) para FURTAR algo de alguém, desde que esse bem seja considerado de ínfimo valor pelos bem remunerados julgadores dos tribunais superiores brasileiros?

E quanto à subtração de objetos pessoais detentores de alto valor sentimental para o proprietário e que nunca mais poderão ser substituídos? Tal atitude é inexpressiva? Trata-se apenas de um pequeno desvio de conduta que não merece reprimenda penal, devendo apenas ser tratado na longa e muitas vezes ineficaz esfera cível?

Comunga-se, nesse trabalho, o entendimento de que as mazelas dos sistemas estabelecidos e que não recebem os devidos investimentos do poder público, não justificam grande parte dos delitos considerados bagatelares. Isto é, o fato do sistema carcerário ser ineficaz e suas condições impossibilitarem a aplicação da Lei de Execuções Penais de forma eficiente não justificam a aplicação da insignificância como solução para os mais diversos desvios de conduta.

Entende-se que o cidadão que busca a todo custo manter sua dignidade pelos valores do trabalho e da livre iniciativa e preocupa-se em educar seus descendentes no caminho da moral e da correção, seja um empregado ou um empreendedor, não deve arcar com a responsabilidade da ineficiente máquina administrativa.

Para tanto, deve o poder público investir em estabelecimentos que permitam a recondução de infratores à sociedade e ainda em Penas alternativas que realmente surtam efeitos punitivos e educativos nos considerados pequenos infratores. Penas estas que possam ser cumpridas e fiscalizadas de forma a contribuir para a sociedade e educar aqueles condenados por crimes considerados pequenos. Mas nunca uma simples absolvição, baseada em uma teoria de direito penal utilizada como instrumento de política criminal.

A pena deve atender suas características de reprimenda pelo delito, mas também de educação. Há muito já ficou demonstrado que a pura vingança por um ilícito não é suficiente para resolver a delinquência. Além do caráter penalizador, a sanção deve ter seu viés educativo, de forma a influenciar o infrator a não cometer novamente o desvio de conduta.

A sociedade brasileira clama por justiça e não deseja, em regra, conceder a esses pequenos delinquentes um salvo conduto, tornando a prática dos pequenos delitos em ilicitudes convenientes. No Brasil, são eles que aterrorizam boa parte da sociedade.

Por fim, conclui-se que o princípio da insignificância deve ser aplicado pelo Poder Judiciário pátrio com o objetivo maior de evitar decisões injustas, mas com muito critério e muita parcimônia, impedindo a vulgarização e a banalização do instituto, bem como incentivo ao cometimento de pequenos delitos.

O objetivo do poder público sempre deve ter como prioridade garantir ao cidadão de bem os direitos constitucionais primordiais como o ir e vir, a liberdade, a garantia da segurança e da ordem pública preconizada pelo estado, dentre outras garantias, tudo em detrimento daqueles que escolhem o caminho sempre mais fácil e mais curto da prática delitiva. Em suma, o estado deve proteger os cidadãos cumpridores de normas, daqueles que optam por infringir deliberadamente as regras a todos imposta.

 

1 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 02

2REALE, Miguel. Op cit. p 60.

3 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.

4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. 5ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 2008. p. 165.

5ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p 27.

6 FILHO, Diomar Ackel. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. Revista Jurisprudencial do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Vol 94. São Paulo: TJSP, 1988. p 72 a 77.

7 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

8 FIGUEIREDO, Ricardo Vergueiro. Hierarquia e Disciplina, Vigas Mestras das Forças Armadas, Verdadeiros Princípios Jurídico-Constitucionais. Revista Direito Militar, Florianópolis, ano VIII, nº 46, março/abril de 2004, pág 09.

 

Sobre o autor
Eduardo Biserra Rocha

Assessor para Assuntos Jurídicos no Exército. Bacharel em Direito pela UFRJ. Especialista em Direito Público pela UGF. Especialista em Direito Militar pela UCB. Especialista em Administração Pública pela UNESA.

Informações sobre o texto

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