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Abortamento de feto anencefálico e a inexigibilidade de conduta diversa.

A influência das circunstâncias concomitantes no comportamento humano

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01/02/2006 às 00:00
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5. ANENCEFALIA. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. APLICAÇÃO DO ARTIGO 43, INCISO III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

            Uma questão interessante poderia surgir: se nos casos de abortamento de feto com anencefalia não é exigível conduta diversa, não seria antieconômico esperar todo um processo para somente na sentença se absolver o agente ante a ausência de culpabilidade?

            Entendemos que a instauração de um processo penal nos casos de abortamento de anencéfalo não traz nenhuma utilidade. Na verdade, falta, ante o certo reconhecimento da inexigibilidade de outra conduta, uma das condições da ação, qual seja o interesse de agir.

            Como bem ensina Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery "existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade, do ponto de vista prático". (in Código de Processo Civil Comentado. 4ª edição. Revista dos Tribunais. 1999. Págs. 729/730)

            Nesse sentido brilhantemente ensina o mestre Guilherme de Souza Nucci (in Código de Processo Penal Comentado. 4ª Edição. Revista dos Tribunais. 2005. Págs. 159/160):

            "Esclarece, com precisão, o requisito do interesse, sobdividindo-o em três categorias – interesse-necessidade, interesse-adequação e interesse-utilidade – Maurício Zanoide de Moraes:. .. há interesse-utilidade sempre que houver um beneficio prático e jurídico ao autor da demanda, pois, devem ser considerados ‘os altos custos sociais, econômicos e políticos de uma ação penal’".

            Esse não deixa de ser o entendimento do professor Fernando Capez (in Curso de processo penal. Saraiva. Pág. 92), para quem "a utilidade do processo traduz-se na eficácia da atividade jurisdicional para satisfazer o interesse do autor. Se, de plano, for possível perceber a inutilidade da persecução penal aos fins a que se presta, dir-se-á que inexiste interesse de agir".

            Diante do exposto, constata-se que nos casos de anencefalia, ante a ausência de utilidade de qualquer prestação jurisdicional, deve o juiz rejeitar a denúncia oferecida pelo Ministério Público, com fundamento no artigo 43, inciso III, do Código de Processo Penal, haja vista estar ausente a condição da ação denominada interesse de agir. "É inútil a provocação da tutela jurisdicional se ela, em tese, não for apta a produzir a correção argüida na inicial" (Vicente Greco Filho. Direito Processual Civil Brasileiro. 11ª edição. São Paulo. Editora Saraiva. 1995. Pág. 81).

            Na verdade, tendo em vista a clara ausência de interesse de agir, frente à inutilidade do provimento jurisdicional, o Ministério Público não deverá ofertar a exordial. Como fiscal da lei, deve o MP zelar pela observância das condições da ação. Tendo em vista o princípio da economia processual, deve o Promotor de Justiça requerer o arquivamento do Inquérito Policial nos casos de abortamento de feto anencefálico.


6. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA O ABORTAMENTO NOS CASOS DE ANENCEFALIA.

            A figura da autorização judicial nos casos de anencefalia, cuja exigência, a imprensa nacional, tem emprestado tanto destaque, é algo absolutamente absurdo.

            No estágio atual do Direito Positivo, não existe comando legislativo que ampare, por qualquer ângulo que examinada a questão, autorização para a prática do abortamento nos casos de anencefalia. O Juiz que autoriza não pratica ato afeto à prestação jurisdicional, pela simples razão de inexistir, em tal caso, prestação jurisdicional a ser exercida. Carece o ato do juiz de conteúdo jurisdicional.

            Nesse sentido afirmam Geraldo Batista de Siqueira e outros (9) (in Aborto Eugenésico ou Eugênico e autorização judicial. Qualificadora na denúncia e concessão de liberdade provisória. Júri. Quesitação. Tese da excludente de culpabilidade. Admissibilidade. Publicada na Revista Síntese de Direito Penal e Processo Penal nº 4. Out-Nov/2000. Pág. 73):

            "A questão subseqüente reside na indagação: quem poderá emitir a autorização para a intervenção cirúrgica para livrar a gestante, libertando-a desse tipo de gravidez, assaz incômodo? Marido, pais, médico, juiz? A resposta, única a nosso ver, está em trabalho que apresentamos em Congresso Nacional do Ministério Público, aprovado por unanimidade: Aborto Humanitário – Autorização Judicial.

            A figura da autorização judicial, cuja exigência, a imprensa nacional, sempre a mingua de noticiário, com mais repercussão popular, tem emprestado tanto destaque nos mais variados recantos do país, é figura absolutamente alheia...".

            A ausência de culpabilidade, ante a inexigibilidade de conduta diversa, nasce com a conduta, ou seja, é congênita. Não é necessário que o Magistrado atue, no exercício da atividade jurisdicional, para que a conduta do agente deixe de ser censurável. A ação ou omissão não é culpável frente à prévia inexigibilidade de outra conduta. Portanto, desnecessário é se recorrer ao Estado-Juiz para a prática do abortamento nos casos de anencefalia. Não há respaldo jurídico para a figura da autorização judicial.


7. CONCLUSÕES.

            "o jurista penetra num campo mais dilatado, procura apanhar as correntes diretoras do pensamento jurídico e canalizá-las para onde a necessidade social mostra insuficiência do Direito positivo".(Clóvis Bevilaqua. Teoria Geral do Direito, Rio de Janeiro: 1980, p. 44).

            1. Não se pode justificar o abortamento por ser o produto da concepção um condenado à morte (o que realmente é). O risco criado, indubitavelmente, é proibido. Se há vida, mesmo que inviável extrauterinamente, não há como admitir que uma conduta que visa destruí-la seja permitida. A vida, mesmo que inviável, é protegida juridicamente. A atual Constituição Federal, bem como o nosso Código Penal, não amparam somente o bem jurídico vida viável.

            2. Na verdade, nobre leitor, é na culpabilidade que encontramos uma saída satisfatória para a interrupção da gestação em casos de anencefalia.

            Como lembra Heitor Costa Júnior, "não se duvida hoje que a autodeterminação humana está limitada pelas circunstâncias". Na célebre lição de Ortega y Gasset "eu sou eu e as minhas circunstâncias" (O direito penal e o novo Código Penal brasileiro. A reforma da parte geral do Código Penal Brasileiro. Porto Alegre. 1985. Pág. 51).

            Como se vê, a conduta típica deve ser praticada em situação em que seja lícito exigir do agente, individualmente considerado no seu momento histórico, comportamento diferente. Não basta o cometimento de um fato típico e antijurídico para que surja a reprovação da conduta, é imprescindível que o agente, nas circunstâncias do fato, e em face de sua situação pessoal, tenha a possibilidade de realizar outra conduta.

            As condições que envolvem o abortamento de feto com anencefalia são totalmente anormais, de maneira que anormal também é o ato volitivo. Não se pode exigir do agente uma conduta determinada quando as circunstâncias concomitantes pressionam em sentido contrário. Se, em razão de determinada situação fática, há um vício de vontade, não pode o autor de uma infração penal ser considerado culpado, pois não agiu com vontade livre e desimpedida. Todas as vezes que o processo psíquico de motivação estiver contaminado pelas condições anormais do meio, deixa de haver vontade livre, e o agente não será considerado culpado por sua conduta. É Inexigível outra conduta, não incidindo o juízo de reprovação.

            Não se pode exigir que a gestante carregue um ser que, logo ao nascer, perecerá

.

            No que tange ao médico que realiza o abortamento, também não se pode exigir conduta diversa. Tal profissional da saúde não pode ser compelido a prolongar o sofrimento emocional da gestante.

            "O comportamento conforme ao Direito não pode ser exigido de maneira absoluta, mas tem de condicionar-se ao poder do sujeito, físico ou moral, de acordo com a situação total do momento". (Aníbal Bruno. Direito Penal, Parte Geral, 1967, t. II,p. 97/98).

            3. Ante a clara ausência de culpabilidade é inútil qualquer prestação jurisdicional no sentido de proferir uma sentença condenatória. Inevitavelmente se irá reconhecer a ausência de culpabilidade. Diante da inutilidade da prestação jurisdicional, não deve o Magistrado receber a denúncia (art. 43, inciso III, do CPP).

            Tendo em vista a evidente ausência de interesse de agir, frente à inutilidade do provimento jurisdicional, o Ministério Público não deverá ofertar a exordial. Como fiscal da lei, deve o MP zelar pela observância das condições da ação. Tendo em vista o princípio da economia processual, deve o Promotor de Justiça requerer o arquivamento do Inquérito Policial nos casos de abortamento de feto anencefálico.


NOTAS:

            1. Dr. Carlos Gherardi. Doctor en Medicina. Profesor Regular de Medicina Interna de la Facultad de Medicina – UBA – Jefe de Clínica de Terapia Intensiva del Hospital de Clínicas. Director del Comitê de Ética del Hospital de Clínicas y del Comitê de Bioética de la Sociedad Argentina de Terapia Intensiva. Dra. Isabel Kurlat. Médica. Directora de la Unidad Acadêmica de la carrera de Médico especialista em Neonatología. Jefa de la División de Neonatología del Hospital de Clínicas (UBA). Secretaria del Comitê de Ética del Hospital de Clínicas.

            2. "Art. 3º - A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina".

            3. A expressão "sistema" é pouco utilizada pela doutrina nacional. Porém, afigura-se mais acertada. Na definição de Kant, sistema é a "unidade dos múltiplos conhecimentos sobre uma idéia" ou "uma totalidade de conhecimentos ordenada sob princípios" (apud Claus Roxin. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal). "Sistema penal, portanto, indica um conjunto de teorias intrinsecamente relacionadas, desenvolvidas durante determinado período da evolução da dogmática penal" (André Estefam. Direito Penal 1. Parte Geral. Coleção Curso e Concurso. Editora Saraiva. 2005. Pág. 45). As idéias do finalismo deram origem às teorias finalista da ação e normativa pura da culpabilidade.

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            4. Para aqueles que vêem a tipicidade sob o aspecto formal (dimensão fática) e material (dimensão axiológica), a ausência de risco proibido excluiria o aspecto material da tipicidade.

            5. Geraldo Batista de Siqueira e Marina da Silva Siqueira (Aborto, anencefalia: Autorização judicial ou consentimento da gestante. Revista Síntese de Direito penal e processual penal n. 32. Jun-jul 2005. Pág. 9): "Aquele que, em razão de anencefalia, ocorrente na gestação da mulher, interrompesse ou concorresse para a interrupção do estado gravídico realizaria um aborto, ainda que permitido? Não é a resposta em face do substrato material, que é a vida, não existir ".

            6. Com o sistema finalista – Hans Welzel – o dolo e a culpa deslocou-se para o fato típico, dando ensejo à teoria normativa pura da culpabilidade.

            7. René Ariel Dotti, Damásio de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete, Luiz Flávio Gomes, Fernando Capez etc.

            8. Hans Welzel, Johannes Wessels, Hans-Heinrich Jescheck, Lackner e Kühl, Winfried Hassemer, Claus Roxin. No Brasil adotam idêntica visão: Heleno Cláudio Fragoso, Cezar Roberto Bitencourt, Franciso de Assis Toledo, José Pierangeli, Luiz Regis Prado.

            9. Mozart Brum Silva, Reinaldo Edreira Martins, Miguel Batista de Siqueira Filho e Kênia Dorneles. Aborto Eugenésico ou Eugênico e autorização judicial. Qualificadora na denúncia e concessão de liberdade provisória. Júri. Quesitação. Tese da excludente de culpabilidade. Admissibilidade. Publicada na Revista Síntese de Direito Penal e Processo Penal nº 4. Out-Nov/2000. Pág. 73)


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            3. Bitencourt, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 3ª edição. Editora Saraiva. 2005.

            4. Bevilaqua, Clóvis. Teoria Geral do Direito, Rio de Janeiro: 1980.

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            6. Capez, Fernando. Curso de Direito Penal parte especial. Volume 2. 5ª edição. Editora Saraiva. 2005.

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            8. Estefam, André. Direito Penal 1. Parte Geral. Coleção Curso e Concurso. Editora Saraiva. 2005.

            9. Fragoso, Heleno Cláudio Lições de direito penal. RJ: Forense. 1995.

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            21. Marques, Frederico. Manual de Direito Penal. V. II. Editora Saraiva.

            22. Martins, Ives Gandra da Silva. O Supremo e o homicídio uterino. Artigo publicado no Jornal do Brasil de 15.07.2004.

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            24. Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 4ª Edição. Revista dos Tribunais. 2005.

            25. Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte especial – arts. 121 a 183. Volume 2. 4ª edição. Editora Revista dos Tribunais. 2005.

            26. Siqueira, Geraldo Batista de; Outros. Aborto Eugenésico ou Eugênico e autorização judicial. Qualificadora na denúncia e concessão de liberdade provisória. Júri. Quesitação. Tese da excludente de culpabilidade. Admissibilidade. Publicada na Revista Síntese de Direito Penal e Processo Penal nº 4. Out-Nov/2000.

            27. Teles, Ney Moura. Direito Penal: parte geral. 2ª edição. Volume 1. São Paulo: Atlas, 1998.

            28. Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 3ª edição.

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Sobre o autor
Eduardo Gomes de Queiroz

advogado criminalista, pós-graduado pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus, pós-graduando em Direito Criminal pelo Instituto de Ensino Luiz Flávio Gomes (IELF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Eduardo Gomes. Abortamento de feto anencefálico e a inexigibilidade de conduta diversa.: A influência das circunstâncias concomitantes no comportamento humano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 943, 1 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7770. Acesso em: 3 mai. 2024.

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