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Assédio moral no meio ambiente do trabalho

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02/01/2006 às 00:00
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5. Os valores morais

            É mister acentuar ainda que toda sociedade se baseia em valores que expressam desejos de ordem moral. Não podemos encontrar sequer uma única sociedade ou grupo social que não seja instituído por meio de regras morais, e que, em última instância, não seja pautado por essa determinação. Os seres humanos têm como convenção a estruturação de padrões que institucionalizam até mesmo a condição social das relações entre indivíduos:

            "A convencionalidade dos padrões de comportamento sempre impressionou a todos que pensam sobre seres humanos. Como é notório, alguns filósofos propõem neste contexto uma distinção de princípio entre os fatos do meio ambiente físico e os valores da orientação ética." [12]

            Em outras palavras, os filósofos se debruçaram sobre os aspectos constitutivos de uma ação dos seres humanos. De um lado, o fazer instintivo, natural, necessário e, de outro, a ação humana que nos remete a uma condição moral da atividade social e individual. Dentre muitos filósofos, os quais, na sua grande maioria se referiram a questões éticas, Kant tinha na ação ética um dos seus grandes problemas filosóficos. Assim:

            "Temos boas razões para aceitar, segundo princípios transcendentes, uma conformidade a fins subjetiva da natureza nas suas leis particulares, relativamente à sua compreensão para a faculdade de juízo humana e à possibilidade da conexão das experiências particulares num sistema dessa mesma natureza..." [13]

            Isto significa que há uma conformidade ética na condição humana, mesmo que em grande medida a natureza humana esteja submetida a um elemento fundamental que é a mudança. Sem dúvida, Heráclito tinha razão ao afirmar que tudo flui substancialmente na vida e na natureza. No entanto, é preciso salientar o fato de que esta mudança, para angústia da consciência, não é um elemento com o que se possa lidar confortavelmente, ao contrário, uma certa estabilidade se faz necessária.

            Daí é possível observar, até mesmo do ponto de vista histórico, o fato de que os valores éticos e morais mudam, mas que sua mudança não é experimentada com a velocidade observada em outros campos da sociedade, como os meios produtivos, a tecnologia, a técnica, etc.

            A sociedade necessita de estabilidade quanto aos seus valores éticos. Toda sociedade é estabelecida em conformidade com a ética, em outras palavras, não há sociedade sem ética e sem moral, uma vez que somos seres sociais constituídos de fundamentos morais, isto é, somos seres morais.

            De outro lado:

            "(...) é assim que, entre os seus muitos produtos, podemos esperar que sejam possíveis alguns contendo formas específicas que lhe são adequadas, como se afinal estivessem dispostos para a nossa faculdade do juízo." [14]

            Valores são fundamentais em qualquer agrupamento social, tornam-se imprescindíveis na medida em que regulam as relações humanas e promovem o processo de comunicação entre indivíduos e a coletividade. No entanto, os valores éticos são em parte uma escolha do processo social, estão relacionados à historicidade dos grupos, em estreita relação com suas experiências humanas, antropológicas e materiais. Assim, os valores são em parte uma escolha que exorta os sujeitos sociais a uma responsabilidade e a um compartilhar das mesmas escolhas, fundamentais para a compreensão ontológica dos próprios indivíduos no contexto em que estão inseridos.

            "Ainda que adotemos a distinção entre fatos e valores, creio que temos de reconhecer que é um fato sobre a vida humana que ela é vivida também e essencialmente num ambiente determinado por valores." [15]

            Ademais, há uma relação paradoxal entre indivíduo e coletivo. Os valores são em grande medida compartilhados pela coletividade, aceitos pelos indivíduos, no entanto, os indivíduos não são totalmente determinados pela coletividade, sua subjetividade faz com que a vontade individual também seja colocada no contexto das escolhas dos valores. Isto significa dizer que a imposição coletiva de valores éticos não é garantia de que os seus indivíduos obedeçam na sua integralidade, ao contrário, há um campo no qual nem mesmo a racionalidade pode impor um controle regulador das ações humanas.

            Dessa forma, do ponto de vista moral, a ação dos indivíduos resvala constantemente no consenso coletivo, assim, pode-se determinar objetivamente a transgressão dos valores, ou a sua negação. É aí que certos comportamentos devem passar pelo crivo do juízo moral, uma vez que afeta a conjunto das regras ou fere os princípios conceituais que foram acordados pela coletividade.

            Sem um acordo e uma convencionalidade, a sociedade provavelmente perderia sua condição de sociedade, pois o pacto é um fundamento implícito em todos os grupamentos de seres humanos. É bem como imaginarmos que toda negativa aos valores acordados coletivamente seja considerada como uma transgressão moral, ou, em outro sentido, a negativa pode assumir uma conotação de imoralidade. Contudo, nem sempre os valores podem responder de forma justa às aspirações dos indivíduos, mas é preciso formular adequadamente as expectativas quanto à ação dos indivíduos, uma vez que toda atitude, seja natural ou moral, está diretamente relacionada aos demais membros da sociedade.

            Em face disso é possível estabelecer parâmetros, em todos os locais e em especial no meio ambiente de trabalho, quanto àquilo que pode ser ou não permitido. Certos valores podem se tornar um consenso a partir das condições do estado de natureza, conforme Kant apresenta, pois é daí que se promulgam valores que se tornam comuns. Com isto, a dor, a humilhação, a privação de toda ordem, a tortura e a precarização de certas condições que devem ser supostamente atendidas, são, em grande medida, valores que atingem a todos e são tanto em conformidade com a vontade coletiva quanto no que tange à vontade dos indivíduos sociais, em sua singularidade.

            Este pode ser o parâmetro com o qual se estabeleceriam juízos de valor a respeito da ação dos sujeitos sociais, em suas relações singulares, como é o caso do trabalho. Em certas circunstâncias especiais, o código moral parece não fazer efeito, uma vez que entra em cena a característica básica do humano em permanecer vivo a todo custo. No entanto, em condições aparentemente normais, os indivíduos, no intuito de preservação de sua integridade física e mental, são capazes de reconhecer a necessidade de certas regras que possibilitem uma convivência equilibrada, especialmente no que toca às forças que estão direta ou indiretamente envolvidas no processo laboral.

            Evidentemente que a ação moral se torna uma violência praticada por aqueles que imaginam possuir alguma forma de força, em detrimento àqueles que estão em condições inferiores ou indefesos diante da ação, os hipossuficientes. É preciso, então, haver mecanismos de proteção que favoreçam os menos protegidos em situações de fragilidade moral.


Considerações Finais

            O homem tornou-se o seu maior adversário. As guerras e a criminalidade denunciam abertamente este fato, mas o assédio moral sorrateiramente abala a base de pessoas no trabalho, sem que a mídia lhe dê o merecido destaque.

            O assédio moral é como um inimigo invisível que pouco se pune. Mas, tal estado de coisas pode ser mudado com consciência e solidariedade, caminho sugerido pela psiquiatra Hirigoyen.

            O assédio moral é nocivo à saúde do trabalhador e, consequentemente, à da sociedade. É como uma doença que se alastra e que se precisa combater e a arma é a Justiça, que também precisa da solidariedade das pessoas para que possa agir. Testemunhas são necessárias para que algum fato seja dado como verdade. A eficácia jurídica depende da sociedade, precisa de denúncias e de comprometimento.

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            O combate ao assédio moral pela Justiça é uma questão internacional, portanto, já há um espaço aberto para combatê-lo. Lembramos que a consciência, a percepção da realidade e a luta em grupo estão intrinsecamente ligadas à eficácia jurídica e que o Direito é que garante a estabilidade social e o direito dos indivíduos.


Referências Bibliográficas

            BARRETO, M. Violência, saúde, trabalho: uma jornada de humilhações. São Paulo: EDUC, 2001.

            BRASILIANO, Cristina Ribeiro. Assédio moral no trabalho: liame para doenças profissionais. Revista do Ministério Público do Trabalho, n.1. Brasília: LTr, 2005.

            CARTILHA do SINDICATO dos PETROLEIROS do RIO de JANEIRO, s/d.

            CASTRO, C. A. P. Sociologia geral. São Paulo: Atlas, 2000.

            DRUCKER, P. Sociedade Pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1998.

            FARIA, J. E. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento na transformação social. São Paulo: EDUSP, 1988.

            GUEDES, M. N. Terror psicológico no trabalho. São Paulo: LTR, 2003.

            HIRIGOYE, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

            HIRIGOYE, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral, tradução de Rejane Janowitzer, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

            HELOANI, R. Gestão e organização no capitalismo globalizado/História da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

            MENDONÇA, Wilson. Como deliberar sobre questões morais? In FABRI, Marcelo (org.), DI NAPOLI, Ricardo B., ROSSATO, Noeli. Ética e Justiça. Santa Maria, RS: Palloti, 2003.

            KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de juízo. 2. ed., Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

            ZIMMERMMANN, Silvia Maria; SANTOS, Teresa Cristina Dunka Rodrigues dos e LIMA, Wilma Coral Mendes de. O assédio moral no mundo do trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, n.1. Brasília: LTr, 2003.


Notas

            01 Marie-France HIRIGOYEN é médica psiquiátrica francesa, autora do livro "Harcèlement Moral: la violence perverse au quotidien", traduzido por Maria Helena Hübner, Assédio moral: a violência perversa no cotidiano, Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2000.

            02 Marie-France HIRIGOYEN. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral, tradução de Rejane Janowitzer, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 17.

            03 O que é assédio moral no trabalho. Disponível em www.assediomoral.org, Acesso em 8 ago. 2005.

            04 Disponível em www.assediomoral.com.br. Acesso em 24 de agosto de 2004.

            05 Vide texto integral no site: http://www.assediomoral.org/site/legisla

            06 A Dra. Margarida BARRETO fez a pesquisa para sua dissertação de mestrado em Psicologia Social, defendida em 22 de maio de 2000, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob o título: Uma jornada de humilhações.

            07Atualmente existem mais de 80 projetos de lei em diferentes municípios do país. Vários projetos já foram aprovados e, entre eles, destacam-se: São Paulo, Natal, Guarulhos, Iracemápolis (pioneiro), Bauru, Jaboticabal, Cascavel, Sidrolândia, Reserva do Iguaçu, Guararema, Campinas, entre outros. No âmbito estadual, o Rio de Janeiro, que, desde maio de 2002, condena esta prática. Existem projetos em tramitação nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná, Bahia, entre outros. No âmbito federal, há propostas de alteração do Código Penal e outros projetos de lei.

            08 Inclusive muitas empresas têm realizado uma série de atividades, através de vários projetos e programas de incentivo ao bem-estar de seus funcionários, como ginástica, técnicas orientais, etc, o que, independentemente de serem ações que buscam um melhor aproveitamento da mão-de-obra e uma redução dos acidentes de trabalho e conseqüentes custos, não deixam de apresentar um saldo positivo na saúde física e mental do trabalhador.

            09 Art. 2º da Resolução n. 1.488/98 do C.F.M.

            10 "Burn Out", expressão inglesa: aquilo que deixou de funcionar, derivado de gíria de rua e significa aquele que se estragou pelo uso.

            11 Art. 20 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991.

            12 Wilson MENDONÇA. Como deliberar sobre questões morais? IN FABRI, Marcelo (org.), DI NAPOLI, Ricardo B., ROSSATO, Noeli. Ética e Justiça. Santa Maria, RS: Palloti, 2003, p. 15.

            13 Immanuel KANT. Crítica da faculdade de juízo. 2. ed., Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 203.

            14 Idem, Ibidem, p. 203.

            15 Wilson MENDONÇA. Como deliberar sobre questões morais? p. 15.

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Sobre a autora
Mara Vidigal Darcanchy

doutora e mestre em Direito das Relações Sociais - Direito do Trabalho pela PUC/SP, especialista em Direito do Trabalho pela USP, especialista em Didática do Ensino Superior pela USJ/SP, pesquisadora científica, professora universitária da graduação e pós-graduação e cursos preparatórios para concursos, consultora jurídica

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DARCANCHY, Mara Vidigal. Assédio moral no meio ambiente do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 913, 2 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7765. Acesso em: 8 mai. 2024.

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