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A relativização do direito de imagem:

limites da sua (in)disponibilidade

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26/08/2005 às 00:00
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4 A Relativização do direito de imagem

            Se é certo que o direito de imagem é um dos direitos de personalidade que possibilitam a exploração pecuniária, integrando o patrimônio do indivíduo, também é certo que essa exploração não pode se dar de qualquer forma.

            Baliza fundamental que se impõe como limite é aquela formada pelos preceitos éticos e morais existentes em determinada sociedade. Os bons costumes e a moral não podem ser violados, sob pena de ensejar a pretensão de indenização por parte daquele que se sentiu ofendido.

            A sociedade globalizada caminha para o domínio da informação dia após dia. Temos nossas vidas monitoradas por câmeras em lugares que sequer podemos imaginar. Somos monitorados em lugares públicos e a tendência é que se acentue cada vez mais este tipo de controle. É a sociedade do genial autor George Orwell se tornando realidade diante de nossos olhos. Tal como em "1984", não está longe de termos nossas vidas monitoradas e controladas. No mesmo sentido, a magnífica obra de Adous Huxley, "Brave new world", no qual um dos personagens centrais, ao escolher entre a falta de privacidade e a morte, preferiu esta àquela. Precisamos ser otimistas para que este quadro não se iguale àquele imaginado pelos geniais escritores.

            O brocardo jurídico ius et ars boni et aequi (o direito é a arte do justo e do belo) somente é válido diante da aplicação da razoabilidade no processo de elaboração e aplicação das leis. Para se estabelecer critérios, os mais objetivos possíveis, necessário é que se tenha a razoabilidade como norte.

            A democratização no país e a popularização do estudo do Direito, bem como seu aprofundamento, vêm contribuindo para que as ciências jurídicas tenham o desenvolvimento que a sociedade moderna exige. O fenômeno da teoria crítica do direito, nascido na Europa ganhou repercussão e se alastrou por outros continentes além do europeu.

            A postura positivista - normativista vem dando lugar à teoria pós-positivista, cujo elemento central é a valorização do ser humano e a redescoberta da importância dos princípios de direito. Neste sentido, novos valores são descobertos ou construídos, novas formas de interpretação vão sendo sedimentadas pelos tribunais e uma nova sociedade vai se amoldando.

            O espaço público e o privado, antes bem definidos de forma rígida, tem sido alvo de constantes mudanças e reavaliação. O direito privado, antes espaço intangível pelo Estado, agora vem sendo visto com nova visão, tendo em vista também as relações coletivas e o todo social no qual estão inseridas tais relações.

            Pode-se dizer que o indivíduo ganhou uma importância considerável após o advento destas teorias. O Direito está a serviço do homem e não o contrário. A imagem passou a ser um direito explorável financeiramente e isto gera efeitos diversos, seja no âmbito do indivíduo, que tende a ter sua privacidade mitigada, quanto no âmbito coletivo, pois a imagem é, também, uma manifestação cultural.

            O Direito Civil vem sendo palco destas transformações, uma vez que, o outrora conhecido como código defensor da "propriedade, da família e dos ricos", hoje em dia vem sendo conhecido por sua reformulação e interpretação à luz do Direito Constitucional. Agora o código esboça novas preocupações, no sentido de humanizar mais a sociedade a qual regula e tratar de maneira mais igual os jurisdicionados.

            É por todos sabido que a realidade cultural e jurídica de uma sociedade não muda facilmente. Para tanto, é necessário a conjugação de esforços de tantos setores quanto forem possíveis. Importa saber que tais esforços vêm sendo aplicados e muitos novos talentos irão surgir para humanizar cada vez mais nosso Direito.

            Sintetizando a idéia da constitucionalização do Direito civil, Leonardo Mattietto explica que

            "a renovação do direito civil brasileiro tem no chamado `direito civil constitucional´ o seu mais firme ponto de apoio. O reconhecimento da incidência dos valores e princípios constitucionais no direito civil reflete não apenas uma tendência metodológica, mas a preocupação com a construção de uma ordem jurídica mais sensível aos problemas e desafios da sociedade contemporânea, entre os quais está o de dispor de um direito contratual que, além de estampar operações econômicas, seja primordialmente voltado à promoção da dignidade humana." [11].

            O processo de relativização consiste na interpretação das regras segundo os princípios jurídicos e, no caso de choque entre as regras que não puder ser solucionado pelos critérios clássicos da hierarquia, temporalidade e especificidade, se recorre os princípios e os postulados jurídicos, tais como a ponderação de interesses.

            Ainda no caso de existir regra que regule uma dada situação, mas tal regra se revelar contrária ao ideal de justiça se aplicada ao caso concreto pelo método da subsunção, servem os princípios de direito para justificarem a não aplicação desta regra. Entretanto, esta solução não é pacífica, pois põe em risco um outro princípio/necessidade do Direito, que é a segurança jurídica. Portanto, ainda é tímida a doutrina neste ponto e poucos os que se aventuram por estes campos teóricos.

            Relativizar, portanto, o direito civil, significa dar nova forma de interpretação de suas regras, agora não mais voltada para a defesa inconteste da propriedade e do contrato. Trata-se de humanizar o Direito, tendo em vista que este serve de instrumento ao combate das injustiças sociais. Para tanto, serve-se o operador jurídico dos princípios constitucionais.

            O indivíduo tem direito à privacidade e a manter sua individualidade. A imagem deve ser reproduzida mediante autorização de seu detentor, sob pena de se por em risco a idoneidade moral do sujeito. Essa é a garantia mínima que o Direito pode estabelecer. A razoabilidade é necessária para que o dano em decorrência da má utilização do Direito de imagem não venha a ocorrer.

            Tal como a propriedade, que não pode mais ser exercida de modo absoluto estando sujeita a uma função social, o direito de imagem também não pode ser considerado absoluto, devendo seu exercício observar critérios éticos e morais.


5 Possível violação do interesse público e a ação do ministério Público

            Com a industrialização do país a população urbana cresceu de forma decisiva na segunda metade do século passado. Destarte, a vida passou a ser vivida no âmbito urbano, da cidade, e não mais no campo. Fato curioso neste estilo de vida é o anonimato da maioria e a criação de ícones que são imitados por todos.

            A imagem ganhou nova roupagem com o advento da televisão e a rapidez do computador. A velocidade com que viaja a informação é cada vez maior e assustadora. A divulgação da imagem ganhou contornos de coisa instantânea, ao alcance de todo o mundo, sem que tal afirmação constitua nenhum exagero nos dias atuais.

            Infelizmente, a mídia visual praticamente tomou o espaço do livro enquanto forma de entretenimento e informação. É muito mais confortável e até mesmo corriqueiro sentar-se diante da TV e comer sua porção individual de qualquer coisa. O prazer da leitura somente é sentido por uns poucos que insistem em ler e conversar, socializando e redescobrindo o novo nas palavras de um outro leitor.

            Vivemos no mundo da imagem e da TV. Como disse o poeta, "a favela é a nova senzala, correntes da velha tribo. E a sala é nova cela, prisioneiros das grades do vídeo" [12]. Prisão esta na qual quase todos nós estamos presos.

            Com a exceção de pouquíssimos programas, a maioria do conteúdo da televisão é de caráter nada informativo. Em alguns casos, chega-se mesmo à banalização da pessoa e ao seu aviltamento como ser humano.

            Por outro lado, é notório que a população brasileira é caracterizada por profundas desigualdades sociais. Soma-se a isso um nível de escolaridade geral baixo, acrescenta-se um tempero denominado exploração televisiva e pronto: temos um prato cheio para um show de bizarrices que nada acrescentará em nossas vidas, porém nos proporcionará algumas risadas, as quais não seriam obtidas se refletíssemos que por trás de uma comédia há uma tragédia.

            O direito de imagem tem a peculiaridade de ser disponível, vale dizer, seu titular pode dispor dele e usá-lo como o objetivo financeiro. No entanto, certas condições expõem sobremaneira o ser humano ao ridículo que merecem ser repreendidas pelo ordenamento jurídico. Mormente quando de um lado temos uma grande empresa e do outro lado temos um cidadão humilde.

            Uma coisa é uma pessoa que freqüentou as melhores escolas, leu Shakespeare e viajou para outros países, dispor de sua imagem. É claro que ela não irá se expor a situações ridículas em rede nacional para conseguir algum dinheiro. Outra coisa, completamente diferente é um cidadão humilde, muito mal alfabetizado, ou outro com alguma deficiência física ou algo do gênero, ser exposto na mesma rede nacional para o deleite macabro de milhares de pessoas.

            O que as duas pessoas têm em comum? Ambas são pessoas humanas e têm dignidade. Daniel Sarmento observa que "a dignidade não é reconhecida apenas às pessoas de determinada classe, nacionalidade ou etnia, mas a todo e qualquer indivíduo, pelo simples fato de pertencer à espécie humana" [13]. Disso ambas não podem dispor. Trata-se de um direito indisponível que visa à valorização do ser humano. Deste modo, a TV não deveria submeter a situações ridículas pessoas que, por absoluta carência, vêem nesta possibilidade a chance obter alguma vantagem.

            Poder-se-ia objetar tal idéia com o argumento de que o direito de imagem é disponível e o seu titular pode fazer uso dele como bem entender. Porém, não nos parece ser o melhor atendimento, tendo em vista a premente necessidade de valorização do ser humano e, também, a aproximação, sempre que possível, do Direito à ética.

            O interesse privado e o interesse público em questão fazem surgir a indagação: onde está a violação ao interesse público?

            Entendemos que a TV deve ter um papel educativo fundamental na vida da população, pois é inegável que o livro é preterido por quase todos. A formação de cidadãos e a conseqüente cidadania não pode ser obtida através de programas "freak show". Além disso, a especificidade da situação, qual seja, a necessidade financeira de um lado e a exploração por parte da TV, de outro lado, nos faz pensar que a atuação do Ministério Público se faz necessária para corrigir tais situações. Não nos parece razoável, nem justo, que grandes e poderosas empresas do ramo da TV explorem pessoas portadoras de deficiências físicas ou até mesmo exponham ao máximo a privacidade das pessoas.

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            A nova ordem constitucional, no seu artigo 127 assevera que "o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos direitos sociais e individuais indisponíveis".

            Portanto, dentro desta nova feição institucional, deixou o Ministério Público de ser órgão do Poder Executivo, defensor dos interesses stricto sensu do Estado para defender a sociedade e guardar o interesse público de modo geral. Sua legitimidade decorre da Constituição e da Lei Complementar 75, como se vê.

            Dispõe o artigo 129 da CRFB: São funções institucionais do Ministério Público:

            II- zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

            III- promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;"

            No mesmo sentido dispõem os artigos 1º e 2º da Lei Complementar 75 de 1993:

            "Art. 1º O Ministério Público da União, organizado por esta Lei Complementar, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis.

            Art. 2º Incumbem ao Ministério Público as medidas necessárias para garantir o respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Constituição Federal."

            O regime democrático somente se perfaz com cidadãos conscientes se seu espaço e função na nação. O cidadão alienado é o cidadão perfeito para qualquer outro regime, menos o democrático. A participação no processo decisório é deveras importante, pois democracia é o governo da maioria do povo, e quando esta maioria do povo não se manifesta, temos algo que se aproxima da tirania.

            Com isso, não se está aqui querendo que a televisão somente ofereça óperas ou programas relacionados à história mundial ou do nosso país. Os extremos sempre pecam pelo exagero de seu posicionamento. Longe de nós querermos uma sociedade de filósofos e intelectuais mas, conforme salienta o inigualável mestre Paulo Dourado de Gusmão,

            "quando a irracionalidade predomina, quando as opiniões e o saber não resultam de profunda reflexão, de meditação, de leitura e releitura dos clássicos e das obras fundamentais, mas de mensagens da TV e do rádio, ou de jornais; quando o homem se torna manipulável pelos meios de comunicação de massa, detidos pelo Estado ou pelas grandes empresas privadas; quando todo o seu passado é uma ou duas décadas posto à prova, a Filosofia é, mais do que nunca, indispensável, principalmente na sociedade de consumo em que o homem é meio, e não fim, manipulado pela mídia" [14].

            Cumpre esclarecer que o objetivo é proporcionar maior qualidade e inteligência à programação televisiva, tendo em vista que a TV, nos dias atuais é um espaço público.

            Como as regras que regulam tais situações são poucas e não muito diretas, deve o membro do Parquet se utilizar, mormente, do princípio da dignidade humana em sua pretensão perante o Poder Judiciário. Nestes casos, a proteção conferida pela Constituição e o Código Civil, devem ser alegadas embasadas no princípio citado.

            As lesões perpetradas pelas redes de televisão às pessoas que se expõem ao ridículo transcendem do nível individual ao nível dos direitos coletivos lato sensu, desafiando a ação do órgão ministerial. A qualidade da programação televisiva é, hoje em dia, um verdadeiro interesse difuso, passível de ser protegido por meio das ações coletivas, estas ao nível judicial, ou por termos de ajustamento de conduta, no âmbito infra-judicial.

            Neste sentido, louvável a ação civil pública do Ministério Público Federal que foi proposta para forçar as emissoras a exibirem programas adequados ao horário e a classificação etária permitida [15]. No caso, apesar de não se discutir a respeito do direito de imagem, tal como foi proposto no presente artigo, vislumbrou-se o início da discussão a respeito do espaço público que representa a TV, o que por si só já representou um grande avanço.

            Aprofundando e tornando mais específica a discussão, agora em perfeita sintonia com o que aqui se defende, foi a ação civil pública de número 2002.38.00.040996-6, ajuizada perante a 5 Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais, também proposta pelo louvável Ministério Público Federal. Ambas as ações foram propostas pelo procurador Fernando de Almeida Martins.

            Nesta última ação, o ilustre procurador da república, dentre outros pedidos, requereu:

            "seja julgado procedente o pedido, condenando-se a concessionária-ré na obrigação de não mais transmitir, no curso dos programas "Canal Aberto" e "Repórter Cidadão", quaisquer cenas de violência, em especial com armas de fogo, cenas com sangue, assassinatos, estupros, troca de tiros, crimes passionais, exploração de sexualidade, de dramas familiares, aberrações físicas, em aviltamento da dignidade da pessoa humana, e, fudamentalmente, toda e qualquer exploração de crianças e de adolescentes, sob pena de ser imposta multa cominatória, no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), por cena exibida contrariamente à decisão de que se cuida (considerando-se o notório poder econômico da suplicada e evitando-se, assim, a inocuidade da medida), a qual se reverterá ao Fundo de que trata a Lei n. 7.347" [16].

            Ao Poder Judiciário cabe a sensibilidade para receber tal tipo de demanda e dar a ela o tratamento que merece, de acordo com os mais nobres ideais de justiça e proteção dos hipossuficientes e no resguardo do interesse público violado. O Judiciário não pode permitir que a pessoa seja reduzida "a nada" em espaço público, ainda que esta pessoa forneça autorização para tal. Deve fazer cessar, tão logo seja provocado, a exploração vilipendiadora do ser humano pelas emissoras de TV, aplicando multas de valor considerável, capazes de coibir prontamente a exibição desses programas.

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Sobre o autor
Felipe Silva da Conceição

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Advogado chefe do núcleo trabalhista da Companhia de Desenvolvimento de Nova Iguaçu. Aluno da Escola de Magistratura Trabalhista do Rio de Janeiro - EMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONCEIÇÃO, Felipe Silva. A relativização do direito de imagem:: limites da sua (in)disponibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 784, 26 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7171. Acesso em: 29 abr. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado sob a orientação da professora Patrícia R. Serra Vieira, coordenadora do curso de Mestrado em Direito da Universidade Cândido Mendes e professora da graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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