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A ação penal privada e os institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais

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08/08/2005 às 00:00
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5 INSTITUTOS DESPENALIZADORES DA LJE

5.1 O acordo civil e o aumento dos casos de representação

Com o acordo civil previsto no art. 72 da Lei n.º 9.099/95, autor do fato e vítima podem imediatamente compor os danos civis decorrentes do crime. Nos crimes de ação penal condicionada à representação e ação penal privada o acordo civil implica na renúncia do direito de queixa ou representação, com a extinção da punibilidade; já nos crimes de ação penal pública incondicionada, conquanto não seja abolido o direito punitivo, permite-se que a questão civil da reparação seja, sem demoras, resolvida no seio do processo penal, em clara homenagem à vítima (ofendido) que outrora teria de se socorrer de uma outra relação processual se quisesse pleitear indenização civil.

Para Roberto Podval (2002, p. 1867), a busca da conciliação deve ser vista como alternativa dos dissabores de um processo criminal e é, sem sombra de dúvidas, salutar, não só para o próprio réu, como também para a vítima. O réu terá a possibilidade de não se ver processado criminalmente, ônus bastante pesado, especialmente para is criminosos ocasionais. Já a vítima, que é verdadeiramente castigada em nosso processo clássico (desde a espera nas Delegacias de Polícia, sempre abarrotadas de serviços e pessoas a serem atendidas, passando por idas e vindas das audiências, até o final do processo, em que tudo que lhe resta é um título executivo a ser posteriormente executado no juízo cível), agora, com a conciliação, terá a sua disposição uma forma mais rápida e efetiva de reparação dos danos.

O acordo civil, por sua vez, não é ilimitado pela LJE, podendo ser realizado tantas vezes quantas queiram as partes, o que, ao ver de alguns (Ib., Ibid., p. 1867), privilegia o réu com mais capacidade econômica, em ofensa ao princípio da isonomia.

Para Pellegrini et al. (1999, p. 136), mais uma vez, a lei se mostra plenamente conhecedora das modernas tendências da Vitimologia, que tendem a substituir cada vez mais a sanção penal pela reparação dos danos causados ao ofendido. Se a vítima se compôs com o autor do fato em relação à reparação dos danos civis, dele obtendo a desejada satisfação, não mais se justifica o ajuizamento da ação penal nas infrações penais de menor potencial ofensivo. Professa, ainda, que a ausência de posses econômicas do autor do fato poderá ser suprida engenhosamente, por proposta do juiz, através de fiança, hipoteca judicial, desconto em folha de pagamento, etc.

Assim, a crítica endereçada por Podval (2002, p. 1867) ao instituto do acordo civil é rebatida por Ada Pellegrini et al. (1999, p. 136) para quem todos os métodos e formas de pagamento devem ser admitidos (e até sugeridas) pelo juiz do feito, com o escopo de evitar que a composição civil do art. 72 represente apenas mais um benefício aos criminosos mais favorecidos economicamente.

Na mesma senda, a sujeição do crime de lesão corporal leve (art. 129, caput, CP) à ação penal pública condicionada à representação é não só uma barreira de contenção como também mais uma maneira de conferir à vítima o juízo de oportunidade e conveniência sobre a instauração da ação penal. Com feito, se não exercido o direito no prazo de seis meses (embora haja prazos distintos em leis especiais), há a decadência do direito de representação e a conseqüente extinção da punibilidade, tudo, como já se disse, ficando a critério do maior interessado na responsabilização do autor das lesões – a vítima.

Atente-se para o que diz Ada Pellegrini et al. (1999, p. 213):

Sem retirar o caráter ilícito do fato, isto é, sem descriminalizar, passa o ordenamento jurídico a dificultar a aplicação da pena de prisão. De duas formas isto é possível: a) transformando-se ação pública em privada. b) ou transformando-se a ação penal pública incondicionada em ação condicionada. Sob a inspiração da mínima intervenção penal, uma dessas vias despenalizadoras (a segunda) foi acolhida pelo art. 88 da Lei n.º 9.099/95.

Vale dizer que com a edição da Lei n.º 10.406/02 (Código Civil), a idade para representar passa a ser de apenas dezoito anos. Conforme têm entendido os tribunais, o prazo só começa a contar para o ofendido menor de dezoito a partir do momento em que atinge a maioridade, embora o fato tenha ocorrido anteriormente. Enquanto o ofendido for menor de idade, o direito de representação poderá ser exercido por seus representantes legais, dentro do mesmo prazo, tendo como termo inicial o momento do conhecimento de quem seja o autor da infração. São independentes, pois, os direitos do ofendido e de seus representantes (vide Súmula n.º 594 do Supremo Tribunal Federal).

Pode-se, então, seguramente concluir que tanto o acordo civil, com a renúncia ao direito de queixa ou representação, como a transformação da ação penal do crime de lesão corporal simples, de pública incondicionada para condicionada à representação, estão em consonância com a busca pela efetividade processual referida por Scarance Fernandes (2002, p. 198), na medida em que ambas promovem a via alternativa da conciliação com a finalidade de evitar a instauração formal do processo e valorizam a figura da vítima no processo criminal, sendo, pois, típico corolário do modelo consensual de justiça.

5.2 A transação penal

A transação penal, da forma como foi disciplinada pela LJE, consiste na proposta de substituição da pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos como forma de evitar a instauração da ação penal. O benefício é concedido a quem o aceitar e atender os seus requisitos objetivos e subjetivos. É típico dos crimes de menor potencial ofensivo, ao contrário da suspensão condicional do processo que, como se dirá, embora figure na LJE, é instituto com aplicação generalizada a todos os crimes cuja pena mínima não exceda um ano de duração (art. 89).

A aceitação da proposta de imediata substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos é o resultado de concessões mútuas das partes – o Ministério Público transige com sua pretensão punitiva e o acusado com o seu direito de tentar se ver absolvido, com o escopo de evitar a formação do processo (PELLEGRINI et al., 1999, p. 121).

A constitucionalidade do instituto em questão já sofreu vários ataques, fundamentalmente porque com ele se permitiria a aplicação de pena sem processo, com possibilidade de haver conversão da pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade, ferindo o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88), bem como se vulneraria o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF/88), na medida em que o acusado seria obrigado a reconhecer sua culpabilidade.

Com relação ao primeiro argumento, argüi-se que a própria Constituição autorizou a transação penal. Desta forma, inexistindo normas constitucionais originárias inconstitucionais, deve o intérprete harmonizar os valores contrapostos segundo critérios de proporcionalidade.

Ademais, a aceitação da transação penal não traz quaisquer conseqüências para a ficha criminal do autor do fato, pois não gera reincidência nem maus antecedentes, mantendo-se o registro apenas para evitar a concessão de novo benefício no lapso de tempo de cinco anos mencionado pelo art. 76, § 4º da LJE. Evitar o processo pela aceitação da proposta de aplicação imediata da pena restritiva de direitos pode ser, e na maioria dos casos o é, estratégia de defesa.

Contra a alegação de violação da presunção de inocência, opõe-se o fato de que a formação do título judicial decorrente da transação homologada é não só constitucionalmente admitida como decorrente da livre manifestação do acusado, que, de resto, sempre tem o direito de não concordar com a proposta e preferir ser processado.

Quanto à pena sem prévio processo e à possibilidade de conversão da pena restritiva de direitos em pena restritiva de liberdade prevista no art. 85 da LJE, diz-se que, atualmente, o regime da execução da pena de multa, com as alterações produzidas pela Lei n.º 9.268/96, foi profundamente modificado. A pena de multa agora é dívida de valor e se o réu, notificado a pagar pelo Juízo das Execuções Penais, não o fizer voluntariamente, será executado pela Fazenda Pública sob o rito da Lei de Execuções Fiscais junto ao juízo competente (Lei n.º 6.830/80), em que a conversão em pena privativa de liberdade é inadmissível. Como o art. 85 condiciona a conversão aos termos da lei, na inexistência de lei que a autorize, não há mais esse perigo atualmente, caindo por terra a argumentação neste ponto.

Já com relação às demais espécies de pena restritiva de direitos, o Superior Tribunal de Justiça vem firmando entendimento segundo o qual a homologação da transação penal é título judicial formado a partir da anuência do réu, implicando, desde logo, na aplicação de pena e que, por isso, gera coisa julgada formal e material. A sentença homologatória da transação tem caráter condenatório impróprio (não gera reincidência, nem pesa como maus antecedentes, no caso de outra superveniente infração), abrindo ensejo a um processo autônomo de execução, que pode – legitimamente – desaguar na conversão em pena restritiva de liberdade, sem maltrato ao princípio do devido processo legal (STJ – RHC n.º 8198/GO).

Assim, por exemplo, não se apresentando o infrator para prestar serviços à comunidade, como pactuado na transação (art. 76, da Lei nº 9.099/05), cabe ao Ministério Público a execução da pena imposta, devendo prosseguir perante o juízo competente, nos termos do art. 86 daquele diploma legal (STJ - Resp n.º 203583/SP).

No Superior tribunal de Justiça, portanto, malogrou a tese segundo a qual o descumprimento da sentença homologatória de transação penal ensejaria apenas o retorno dos autos ao Ministério Público para o oferecimento da denúncia (STF - RE n.º 268319/PR). Este procedimento remanesce apenas para os casos em que a homologação ainda não foi realizada – como fazem diversos magistrados que esperam a comprovação do cumprimento da pena alternativa para, só depois, homologar a transação penal, o que vem recebendo o beneplácito da jurisprudência (STJ – HC n.º 24624/SP).

A transação penal, deve-se dizer, nasce com a flexibilização do princípio da obrigatoriedade da ação penal, que cede passo à discricionariedade regrada, explicada por Fernando Capez (2002, p. 560) nos seguintes termos:

[...] no lugar do tradicional e inflexível princípio da legalidade, segundo o qual o representante do Ministério Público tem o dever de propor a ação penal pública, só podendo deixar de fazê-lo quando não verificada a hipótese de atuação, caso em que promoverá o arquivamento de modo fundamentado (art. 28, CPP), o procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais é informado pela discricionariedade acusatória do órgão ministerial. Com efeito, preenchidos os pressupostos legais, o representante do Ministério Público pode, movido por critérios de conveniência e oportunidade, deixar de oferecer denúncia e propor um acordo penal com o autor do fato, ainda não acusado. Tal discricionariedade, contudo, não é plena, ilimitada, absoluta, pois depende de estarem preenchidos os requisitos legais, daí ser chamada pela doutrina de discricionariedade regrada.

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A lei dos juizados, portanto, mitigou a obrigatoriedade da ação penal pública, possibilitando o não oferecimento da denúncia quando o autor do fato se alinhe às exigências legais. A realização da proposta, contudo, não é direito subjetivo do réu, decorre da titularidade da ação penal e, por isso, exige a participação do Ministério Público, entendimento extraído da recente Súmula n.º 696 do Supremo Tribunal Federal, verbis:

Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.

Em um dos acórdãos que deu origem à referida súmula, o Min. Sepúlveda Pertence, que liderou a divergência, assim pontuou:

A regra é a obrigatoriedade da ação penal pública; é estar o promotor vinculado a formulá-la, sempre que presente a viabilidade de direito e de fato da acusação.

A suspensão condicional do processo, como outros instrumentos da Lei 9.099, é mecanismo – perdoe-se a palavra da moda – de "flexibilização" da obrigatoriedade da ação penal, no caminho do que se tem chamado Direito Penal ou Justiça Criminal transacional. Por isso mesmo, se tem dito que a obrigatoriedade da ação penal cedeu, nas hipóteses em que admitida a suspensão condicional do processo, a um regime de discricionariedade regrada, ou discricionariedade mitigada do Ministério Público.

Mas não posso fugir, com todas as vênias, à opção legislativa que, no art. 89 da L. 9099, caracterizou o instituto como transação processual-penal, a partir de proposta do Ministério Público.

Posso chegar, para não consagrar o arbítrio, até a dispensar a espontaneidade ou a originalidade da proposta. O que não posso, num instituto claramente definido como mecanismo da Justiça Criminal transacional ou pactuada, é subtrair da formação desse acordo, é expulsar dessa transação uma das partes do processo, a parte acusatória, o Ministério Público, ao qual, literal e expressamente, a lei teria dado mais, porque lhe reservou a iniciativa da proposta.

[...]

Desse modo, desde as leituras dos autores que se têm debruçado sobre o tema – a partir daqueles que foram a fonte material do Projeto Michel Temer, ou seja, Ada Grinover, Antônio Magalhães Comes Filho, Antônio Scarance Fernandes – e malgrado e lúcida divergência de Luiz Flávio Gomes, o quarto dos autores da obra que dedicaram aos Juizados Especiais Criminais –, o alvitre pelos três primeiros sustentado da aplicação analógica e construtiva a hipótese do art. 28 do Código de Processo Penal, a meu ver, é o que serve melhor à compatibilização entre o papel insubstituível do Ministério Público na suspensão condicional do processo, a independência funcional de cada um dos seus membros e a unidade que se quer da instituição, que, aí, sim, pode fazê-la, com muito maior legitimidade, o agente criativo e não arbitrário de uma política penal, que, nos limites da lei, seja variável conforme as circunstâncias de tempo e de espaço a considerar.

Certo, o mecanismo do art. 28 do Código foi pensado para funcionar no quadro diverso do princípio da obrigatoriedade da ação penal, que reclama seja o arquivamento das peças de informação fundado em razões objetivas, judicialmente controláveis, de tal modo que, dissentindo delas o Juiz - malgrado não possa subsistir-se ao Promotor e formular ele próprio a denúncia - deva submeter o caso à decisão definitiva da chefia do Ministério Público.

Não obstante, para respaldar o apelo à analogia, o que aproxima as duas hipóteses é que também na de recusa, que há de ser motivada, do Promotor, à suspensão do processo – quando legalmente admissível, à luz dos requisitos de sua viabilidade jurídica, impostos pelo caput art. 89 da L. 9099 - a fórmula do art. 28 do Código é a que permite submeter a manifestação isolada do Promotor do caso ao crivo dos órgãos de manifestação da unidade do Ministério Público, que, no sistema das novas leis orgânicas, é cada vez menos um poder unipessoal do Procurador-Geral, e sim dos colegiados superiores da instituição. (trecho do voto proferido no HC n.º 75.343-4/MG, com grifo nosso).

Segundo entendeu o Excelso Pretório, a fórmula capaz de compatibilizar o papel insubstituível do Ministério Público, a independência funcional dos seus membros e a unidade da instituição é aquela que – uma vez reunidos os requisitos objetivos da admissibilidade do sursis processual (art. 89 caput) ad instar do art. 28 C. Pr. Penal – impõe ao Juiz, ao invés de diretamente conceder a suspensão condicional, tendo-a como um direito subjetivo do acusado, submeter à Procuradoria-Geral a recusa de assentimento do Promotor à sua pactuação, que há de ser motivada (STF – HC n.º 75343-4/MG).

Foi, portanto, o recurso à analogia que orientou o Supremo Tribunal Federal a adotar a técnica do art. 28 do Código de Processo Penal para solucionar os casos de negativa da proposta de suspensão condicional pelo representante do Ministério Público, em nome do perfil transacional inerente ao modelo de justiça consensual instituído pela LJE, segundo o qual a participação das partes nas espécies de transação processuais-penais é traço essencial.

Com efeito, as mesmas razões acima se aplicam também à transação penal, instituto decorrente da titularidade da ação penal, da mitigação da obrigatoriedade penal e da discricionariedade regrada estabelecida pela Constituição e pela Lei dos Juizados Especiais Criminais; haja vista que, tratando-se de um modelo transacional de justiça, a participação das partes na aplicação imediata da pena alternativa (art. 76), por consistir mesmo numa concessão ao direito de agir, exige a participação de quem seja o dominus da ação, aí residindo sua nota essencial (ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio).

5.3 A suspensão condicional do processo

O art. 89 da LJE instituiu a suspensão condicional do processo como forma de evitar a aplicação da pena, suspendendo o desenrolar do processo com eventual possibilidade de extinção punibilidade, caso o acusado atenda determinadas condições em certo período de tempo. Diz o art. 89:

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (artigo 77 do Código Penal).

Como visto, o instituto não se restringe aos crimes de menor potencial ofensivo, já que não tem qualquer vinculação com a pena máxima abstrata, podendo ser aplicado a todos os crimes com pena mínima de até um ano, mesmo que não submetidos ao rito da LJE. O legislador serviu-se, pois, da Lei n.º 9.099/95 apenas para veicular o instituto, o que, aliás, tem sido severamente criticado pela doutrina, em razão da brevidade e laconicidade com que o importante instrumento foi regulamentado. Este, inclusive, é o fundamento invocado para negar os efeitos da Lei n.º 10.259/01 ao art. 89 da Lei n.º 9.099/95, porquanto, como tem entendido o Superior Tribunal de Justiça, malgrado o diploma referido tenha alterado a concepção de infração de menor potencial ofensivo, não afetou o patamar para o sursis processual, que continua disciplinado pelos preceitos inscritos no art. 89 da Lei n.º 9.099/95 (STJ – Resp n.º 712.022/RS).

A suspensão condicional do processo não se confunde com o tradicional sursis (suspensão condicional da pena), pois, neste, o que se suspende é a execução da pena, enquanto o art. 89 da LJE suspende apenas o processo. No sursis há a condenação e posterior suspensão da pena; a culpabilidade do condenado, portanto, fica reconhecida na sentença. Na suspensão condicional do processo, não há qualquer reconhecimento de culpabilidade, mesmo porque o denunciado não chega a ser condenado; antes disso o processo se suspende, com possibilidade de extinção da punibilidade.

Igualmente não se iguala ao sistema da probation (anglo-saxão), mais assemelhado ao sursis brasileiro, no qual a pena não chega a ser aplicada e, com a aceitação do condenado, no momento de sua prolação, é suspensa mediante certas condições a serem cumpridas durante um período de prova. Não se equipara a suspensão condicional do processo com o guilty plea, instituto de defesa que implica na aceitação da acusação, pois, como já dito, o acusado não admite culpa na suspensão condicional do processo. Além disso, não há, como no sistema estadunidense do plea bargaining, a liberdade absoluta do órgão acusatório para negociar a imputação a ser atribuída ao acusado, eis que a liberdade do Ministério Público, no Brasil, é regrada e adstrita ao que tenha efetivamente ocorrido no mundo dos fatos, tanto é que a classificação do delito, na suspensão condicional do processo, é questão de suma importância, permitindo inclusive o oferecimento tardio da proposta nos casos de desclassificação posterior.

Pellegrini et al. (1999, p. 240) define a suspensão condicional do processo como "a paralisação do processo, com potencialidade extintiva da punibilidade, caso todas as condições acordadas sejam cumpridas, durante determinado período de prova". E, mais a frente, arremata "cuida-se, portanto, de via despenalizadora indireta ou processual. Não se atinge diretamente e imediatamente o jus puniendi estatal. Isso se dá pela via indireta, depois do cumprimento de algumas condições, durante certo período (prova)" (Id., Ibid., p. 241).

Quanto à natureza do instituto, apela-se novamente às lições de Ada Pellegrinni Grinover et al. (Ibid., p. 243), verbis:

O que bem explica a natureza jurídica da suspensão condicional do processo entre nós, em suma, é o nolo contedere, que consiste numa forma de defesa em que o acusado não contesta a imputação, mas não admite culpa nem proclama sua inocência.

Assim, ao acusado com perfil – sim, porque o momento adequado para se decidir sobre a suspensão do processo é o imediatamente posterior ao recebimento da inicial acusatória – impõem-se as condições do art. 89 da LJE, que se cumpridas regularmente dentro do período de prova, permitem a extinção do processo e da punibilidade.

O perfil do acusado é verificado a partir dos seguintes requisitos:

a)O acusado não deve responder a outro processo;

b)Não pode ter sido condenado por outro crime, exceto quando a condenação restringiu-se à pena de multa, quando será possível a suspensão;

c)A culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias devem autorizar a concessão do benefício;

d)O acusado não poder reincidente em crime doloso;

e)O limite da pena mínima cominada para o delito deve ser igual ou inferior a um ano;

As condições normalmente impostas consistem na reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, proibição de freqüentar determinados lugares, proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz, comparecimento pessoal e obrigatório a Juízo, mensalmente, para informar e justificar as atividades e outras condições fixadas pelo juiz, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado (art. 89, § 1º, LJE).

Logo, pode-se seguramente afirmar que a suspensão condicional do processo, assim como a transação penal, decorre da flexibilização do princípio da obrigatoriedade da ação penal disciplinada por lei (discricionariedade regrada). O titular da ação penal pública (art. 129, I da CF/88) é autorizado a transigir com a percutio criminis e negociar com o acusado que atenda o perfil subjetivo e objetivo do benefício uma solução diferente da aplicação da pena de prisão, sem que isto implique admissão de culpa. Repetem-se, aqui, pois, as mesmas considerações feitas com relação à transação penal no que toca ao contexto e finalidades que ensejaram não só a criação dos juizados especiais criminais como os institutos que lhe são inerentes, todos destinados a resolver com mais celeridade e simplicidade os conflitos ligados à criminalidade de pequena e média ofensividade, através da negociação penal entre os que sejam titulares do direito de punir e os autores dos fatos (interessados em bem administrar seu status libertatis), mediante concessões mútuas.

Circunstância igualmente digna de nota é o fato da reparação do dano ter sido elevada a condicionante da extinção da punibilidade na suspensão processual, o que, mais uma vez, realiza a tendência de revalorização da vítima no processo penal atual (art. 89, §1º, I, da LJE). Roberto Podval (2002, p. 2005) adverte que a reparação deva ser exigida de quem tenha condições de pagá-la, não podendo sustar a aplicação do benefício quando for manifesta a impossibilidade do autor do fato de arcar com quaisquer dispêndios financeiros, devendo o magistrado e o dominus litis perquirirem outras condições que sejam acordes com a situação pessoal do acusado.

Nada obstante, conclui-se que a participação do ofendido no processo criminal é não só uma forma de poupá-lo dos inconvenientes da propositura de ação própria para haver sua reparação civil, mas, sobretudo, a sinalização de que a vítima (ou ofendido) passa a ser um dos sujeitos principais da relação processual de menor e média complexidade. A este respeito, Ada Pellegrini et al. (1999, p.140) revela que a "evolução dos estudos sobre a vítima faz com que por parte de muitos se reconheça o interesse desta não apenas à reparação civil, mas também à punição penal."

A proposta de suspensão, como demonstrado no HC n.º 75.343-4/MG (STF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence), é poder-dever do titular da ação, aplicando-se a fórmula do art. 28 do CPP para os casos em que haja recusa no oferecimento da proposta. A solução atende, fundamentalmente, o fato de que a lei, ao moldar o sistema consensual de solução de casos penais de menor e médio potencial ofensivo, definiu-o como ato bilateral de postulação (PELEGRINNI, 1999, p. 244), submetido em última instância à manifestação judicial, e, ainda que o instituto acarrete benefícios ao réu, sua aplicação dependerá sempre do sinalagma entre a vontade do órgão acusatório e daquele, não podendo o magistrado sponte sua conceder a suspensão condicional do processo sem a concordância de ambas as partes.

Cezar Roberto Bittencourt (2003, p. 608) critica a opção pela sistemática do art. 28 do CPP, sob a fundamentação de que, embora se trate de uma negociação processual, a escolha desta técnica privilegia a sociedade e não o réu, que fica refém da opinião institucional do Ministério Público, recomendando a utilização do habeas corpus para sanar as recusas injustificadas em propor a suspensão.

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Sobre o autor
Rafael Lopes do Amaral

promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Piauí, especialista em Direito Processual Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Rafael Lopes. A ação penal privada e os institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 765, 8 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7084. Acesso em: 7 mai. 2024.

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