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Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado

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29/03/2005 às 00:00
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5 Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado

O foro privilegiado, como o próprio nome indica, significa o privilégio assegurado a determinadas pessoas, em geral autoridades públicas [25], de apenas serem submetidas a julgamento em instâncias especiais, de grau superior, ao contrário do cidadão comum, sujeito a julgamento pelo Poder Judiciário comum, ou seja, perante magistrados de carreira de 1ª instância.

No Brasil, predomina o entendimento, tanto em sede doutrinária [26], quanto jurisprudencial [27], de que o foro privilegiado não configura um privilégio pessoal outorgado à autoridade, mas uma prerrogativa funcional destinada a resguardar o regular exercício do cargo público; daí a preferência, nesses meios, pela expressão "foro por prerrogativa de função", cuja matiz ideológica, todavia, não se deixa ocultar; ou que, pelo menos, mal consegue dissimular um certo desconforto em se admitir a verdadeira natureza jurídica do instituto: um privilégio – previsto em sede constitucional, é verdade, mas um privilégio, isto é, mera exceção a um regime jurídico geral ao qual se submetem todos, governantes e governados [28]. Não se trata, pois, de prerrogativa, porquanto esta atende a especificidades próprias das diferentes funções estatais: a inviolabilidade assegurada aos parlamentares por suas opiniões, palavras e votos (CF, art. 53) [29]; e a independência funcional dos magistrados, são exemplos clássicos de prerrogativas.

Não se nega, porém, que o foro privilegiado, a par de configurar um privilégio para os seus titulares, cumpra uma finalidade reconhecida pela ordem constitucional; ao revés, reconhece-se, na opção do constituinte de 1988, o interesse em garantir o livre exercício dos mandatos político-representativos e das funções superiores do Estado, para o qual, segundo essa opção, é indispensável a previsão de foro privilegiado, nos termos definidos pela Constituição.

Nesse contexto, resta claro um conflito entre valores de dignidade constitucional: a submissão igualitária de todos, autoridades e cidadãos comuns, ao império do direito; e a estabilidade necessária ao exercício das funções públicas.

Esse conflito, como qualquer outro de natureza constitucional, somente se resolve mediante a compatibilização dos interesses em antagonismo. Essa harmonização, contudo, não resulta de uma pura teoria geral, vale dizer, não se infere do Direito Constitucional Geral; ao contrário, é objeto do Direito Constitucional Positivo. Assim sendo, deve-se perquirir como a ordem constitucional da República Federativa do Brasil soluciona o conflito entre esses valores. Enfim, cumpre delinear os limites traçados para o foro privilegiado pela Constituição de 1988.

Conforme assentado, no regime constitucional brasileiro a proibição de foro privilegiado é uma garantia individual. Em consonância com essa premissa, a Constituição conferiu disciplina restritiva ao privilégio: limitou-o ao âmbito penal, de onde partem as mais graves ameaças impostas pelo Estado à liberdade humana; vale dizer, não transigiu com a garantia senão o estritamente necessário à estabilidade almejada para o exercício dos mandatos político-representativos e das funções estatais superiores [30]. Destarte, ressalvada a previsão de foro privilegiado para o processo e julgamento de determinadas autoridades pela prática de crime, vigora a submissão igualitária de todos os cidadãos brasileiros ao Poder Judiciário. Nas palavras do Ministro Carlos Velloso, anteriormente citadas, "as normas que estabelecem foro privilegiado [...] devem ser interpretadas em sentido estrito, sem possibilidade de ampliação [...]".

Pretende-se, agora, com a Reforma do Judiciário, substituir essa ponderação de valores do Poder Constituinte Originário – assentada em princípios basilares do Estado brasileiro –, ampliando o foro privilegiado para ações populares, ações civis públicas e ações de improbidade; e, o que é pior, reconhecendo-o em favor de ex-autoridades.

Ocorre que, de acordo com o art. 60, § 4º, IV, da Constituição, a proibição de foro privilegiado encontra-se albergada por cláusula pétrea, que representa verdadeira barreira ao poder de reforma constitucional. Por força do mencionado dispositivo, somente o Poder Constituinte Originário pode prever, seja criando ou ampliando, exceções a direitos e garantias individuais [31].

Na doutrina, o constitucionalista luso Jorge Miranda, embora adote uma posição restritiva quanto ao alcance das cláusulas pétreas [32], reconhece:

"II – É inconstitucional – materialmente inconstitucional, e com gravidade crescente – uma lei de revisão que:

a)Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais que devam reputar-se limites materiais da revisão, embora implícitos (por exemplo, uma lei de revisão que estabeleça discriminação em razão da raça, infringindo, assim o princípio da igualdade);

b)Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materias expressos (por exemplo, uma lei de revisão que estabeleça censura à imprensa, afectando, assim, o conteúdo essencial de um direito fundamental de liberdade);

c)Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos, com concomitante eliminação ou alteração da repectiva referência ou cláusula;

d)Estipule como limites mareriais expressos princípios contrários a princípios fundamentais da Constituição" [33].

Na jurisprudência, o próprio STF já decidiu, na ADIn nº 939/DF, que o estabelecimento de exceção a garantia individual pelo Constituinte Derivado viola cláusula pétrea da Constituição Federal [34].

Em voto proferido na citada ação, o Ministro-relator Sydney Sanches frisou:

"12. Nem me parece que, além das exceções ao princípio da anterioridade, previstas expressamente no § 1º do art. 150, pela Constituição originária, outras pudessem ser estabelecidas por emenda constitucional, ou seja, pela Constituição Derivada.

13. Se não se entender assim, o princípio e a garantia individual tributária, que ele encerra, ficariam esvaziados, mediante novas e sucessivas emendas constitucionais, alargando as exceções, seja para impostos previstos no texto originário, seja para os não previstos" [35].

No mesmo julgamento, o Min. Marco Aurélio, após assentar que o principio da anterioridade é uma garantia constitucional, afirmou que as exceções ao princípio foram taxativamente fixadas pelo legislador constituinte de 1988, o que impede a ampliação desse rol de exceções por emenda constitucional [36].

Igualmente, anotou o Min. Carlos Velloso que "[...] a Emenda Constitucional nº 3, desrespeitando ou fazendo tábula rasa do princípio da anterioridade, excepcionando-o, viola limitação material ao poder constituinte derivado, a limitação inscrita no art. 60, § 4º, IV, da Constituição" [37].

O Min. Celso de Mello também perfilhou o mesmo entendimento:

"O princípio da anterioridade da lei tributária, além de constituir limitação ao poder impositivo do Estado, representa um dos direitos fundamentais mais relevantes outorgados pela Carta da República ao universo dos contribuintes. Não desconheço que se cuida, como qualquer outro direito, de prerrogativa de caráter meramente relativo, posto que normas constitucionais originárias já contemplam hipóteses que lhe excepcionam a atuação.

Note-se, porém, que as derrogações a esse postulado emanaram de preceitos editados por órgãos exercentes de funções constituintes primárias: a Assembléia Nacional Constituinte. As exceções a esse princípio foram estabelecidas, portanto, pelo próprio poder constituinte originário, que não sofre, em função da natureza dessa magna prerrogativa estatal, as limitações materiais e tampouco as restrições jurídicas impostas ao poder reformador"

[...]

A reconhecer-se como legítimo o procedimento da União Federal de ampliar a cada vez, pelo exercício concreto do poder de reforma da Carta Política, as hipóteses derrogatórias dessa fundamental garantia tributária, chegar-se-á, em algum momento, ao ponto de nulificá-la inteiramente, suprimindo, por completo, essa importante conquista jurídica que integra, como um dos seus elementos mais relevantes, o próprio estatuto constitucional dos contribuintes" [38].

Em síntese, considerando-se a ordem constitucional concreta da República Federativa do Brasil, somente o Constituinte Originário pode instituir foro privilegiado; e este só o fez em matéria penal.

Na verdade, o art. 60, § 4º, IV, traça os limites intransponíveis do regime funcional especial dos agentes políticos como um todo – o qual abrange tanto os privilégios quanto as prerrogativas: assim como não se permite estender o foro privilegiado a ações cíveis, é inadmissível, por exemplo, abrigar, sob o manto da imunidade parlamentar material, outras espécies de crimes, que não os de opinião, palavra e voto; tampouco se concebe outorgar prerrogativas previstas para os membros do Poder Legislativo – imunidades parlamentares materiais e processuais – a autoridades de outros Poderes. Em todos esses casos, a modificação do regime funcional especial encontra óbice incontornável no princípio da isonomia [39].


6 Natureza jurídica do ato de improbidade administrativa

Conforme consignado linhas atrás, o legislador da Reforma do Judiciário, buscando afastar qualquer questionamento judicial quanto ao proposto art. 97-A, tendo em vista o art. 60, § 4º, IV da Constituição, intenta transformar ato de improbidade administrativa em crime de responsabilidade.

A tese da natureza de crime de responsabilidade do ato de improbidade administrativa foi suscitada por Ives Granda da Silva Martins em parecer sobre questões relacionadas às denúncias que culminaram no "impeachment" do então Presidente da República Fernando Collor de Melo [40].

Partindo da falsa premissa de que o ato de improbidade administrativa configura crime, chega a afirmar o eminente constitucionalista que "o crime de improbidade administrativa não é um crime comum, mas um crime de responsabilidade" [41]. Não existiria, assim, o ato de improbidade administrativa como figura autônoma. Essa confusão, contudo, é compreensível se atentarmos para o fato de que o parecer em questão foi elaborado poucos meses após a publicação da Lei nº 8.492/1992 – que, pela primeira vez no Direito brasileiro, disciplinou de forma sistemática os atos de improbidade administrativa.

Desenvolvendo essa tese, Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes, em artigo acerca da competência em ação de improbidade administrativa [42], tendo destacado que a possibilidade de suspensão de direitos políticos e decretação de perda da função pública faz da ação de improbidade uma "ação civil de forte conteúdo penal", com incontestáveis aspectos políticos, asseveram:

"Se os delitos [sic] de que trata a Lei nº 8.492/92 são, efetivamente, ‘crimes de responsabilidade’, então é imperioso o reconhecimento da competência do Supremo Tribunal Federal toda vez que se tratar de ação movida contra Ministros de Estado ou contra integrantes de Tribunais Superiores (CF, art. 102, I, c)".

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Em que pese a excelência dos seus expositores, é impossível deixar de reconhecer que a doutrina em referência não encontra apoio no texto constitucional. De fato, salvo quanto ao Presidente da República (art. 85, V), não há um dispositivo constitucional sequer que autorize a equiparação entre ato de improbidade administrativa e crime de responsabilidade. Ao revés, a Constituição de 1988 é precisa ao fixar, em seu art. 37, § 4º, a natureza civil do ato de improbidade administrativa: "Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível" (43).

Interpretando esse dispositivo, conclui Fabio Konder Comparato: "Se, por conseguinte, a própria Constituição distingue e separa a ação condenatória do responsável por atos de improbidade administrativa às sanções por ela expressas, da ação penal cabível, é, obviamente, porque aquela demanda não tem natureza penal" [44].

Como visto, a Constituição não deixa dúvida quanto à natureza civil do ato de improbidade; acrescendo a isso a previsão de sanções tipicamente judiciais – em especial, ressarcimento ao erário e indisponibilidade de bens –, tem-se o caráter específico do regramento constitucional conferido à improbidade administrativa, que revela o claro propósito de submetê-la a processo e julgamento essencialmente jurídicos [45].

É, pois, sob o prisma do due process of law que devem ser interpretadas as sanções de perda do cargo público e de suspensão dos direitos políticos. Note-se, a propósito, que a aplicação dessas sanções somente produz efeitos após o trânsito em julgado da sentença condenatória [46]. De resto, a medida cautelar de indisponibilidade de bens e a sanção de ressarcimento do dano causado ao erário sequer se compadecem com a natureza e dinâmica de processo e julgamento políticos [47]. Enfim, a Constituição de 1988, prestigiando o critério técnico-jurídico, resguardou o processo e julgamento dos atos de improbidade administrativa das indesejadas injunções políticas.

Diante dessas observações, não cabe, mediante burla ao sistema de privilégios instituído pelo Constituinte Originário, transformar improbidade administrativa em crime de responsabilidade – que ostenta forte conotação política. Com efeito, é inconcebível que o Poder Constituinte Derivado altere a natureza jurídica de instituto criado pelo Poder Constituinte Originário, se dessa alteração resulta a vulneração de cláusula pétrea; em outras palavras, o próprio art. 60, § 4º, da Constituição, obsta que, por meio de construções normativas fraudulentas, sejam contornados os limites materiais impostos ao poder de reforma constitucional.

No tocante ao entendimento firmado na Reclamação n º 2.138-DF, cumpre objetar que é inadmissível restringir o âmbito normativo do art. 37, § 4º, dele excluindo os agentes políticos, dado que o referido dispositivo constitucional dispôs amplamente em perda da "função pública", não limitando os seus efeitos aos ocupantes de cargo ou emprego público.

Em resumo: 1) ato de improbidade administrativa não se confunde com crime de responsabilidade; 2) o regime constitucional da improbidade administrativa abrange os agentes políticos; 3) a Constituição não previu foro privilegiado para o processo e julgamento de ato de improbidade administrativa; 4) O art. 60, § 4º, da Constituição veda a criação de novas hipóteses de foro privilegiado pelo poder de reforma constitucional.

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Sobre o autor
Luciano Rolim

Procurador da República no Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROLIM, Luciano. Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 629, 29 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6510. Acesso em: 3 mai. 2024.

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