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Controvérsias relativas à prescrição e o erro médico

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05. A prescrição no processo administrativo

Outro aspecto a ser considerado no estudo da prescrição em casos de erro médico, é aquele voltado aos processos administrativos para apuração de falta ética, que se processam perante os órgãos de classe, tanto em esfera regional quanto federal.

Os Conselhos Regionais e Federal de Medicina, bem como os demais órgãos de classe de profissões regulamentadas, por força do que dispõe a Lei nº 9.649/98, deixaram de ser considerados como autarquia, passando a possuir natureza de direito privado, embora exercendo função delegada pelo Poder Público. Seus atos, pois, se revestem de natureza jurídica de Ato Administrativo.

Suas decisões e julgados, pois, não interferem nos processos de âmbito cível e penal, restringindo-se tão somente à esfera administrativo-disciplinar. Vale dizer que não há aplicação de sanções relativas à reparação material, ou mesmo restritivas de liberdade.

A questão da prescrição, nestes casos, é regida pelo Código de Processo Ético-Profissional dos Conselhos de Medicina do Brasil, aprovado através da Resolução CFM nº 1.617/2001, e prevista em seu artigo 60 [16], determina – também – prazo prescricional de cinco anos, contados a partir da data do conhecimento do fato.

Há autores que advogam que tal prazo prescricional se daria com o conhecimento do fato pelo Conselho, ou seja, a partir da data de protocolo de representação ou reclamação ao Órgão de Classe, caso tal fato não seja de conhecimento público e notório.

Sobre o assunto, assim se posicionam os professores Genival França e Roberto Lana [17]:

"A punibilidade do profissional liberal, por falta sujeita a processo disciplinar, através de órgão em que esteja ele inscrito, prescreve em cinco anos, contados da data do conhecimento do fato punível, se público ou notório, ou da data do protocolo da representação ou reclamação no Conselho Regional de Medicina".

Neste mesmo sentido, Irineu Ramos Filho e Domingos Kriger Filho [18]:

"A principal questão que se coloca na interpretação do presente artigo é a de saber ‘quando’ o Conselho judicante passa a ter conhecimento do fato infracional, vez que vincular a prescrição da punibilidade ao conhecimento do fato infracional pode gerar a perpetuidade do jus puniendi, dado a conveniência de se poder alegar que somente após determinado tempo é que se teve acesso a tal conhecimento. Face a isto, é óbvio que quando o fato for notório, pela notícia em imprensa, por exemplo, o prazo prescricional começará a fluir a partir da data em que se tornou público.

Mas em relação aos fatos que não venham a se tornar notórios, pois somente as partes envolvidas é que dele têm conhecimento, a prescrição começará a correr da data em que o denunciante levar o fato ao Conselho. O intuito de legislador ao elaborar este dispositivo, divergente do que previa a Lei nº 6.838/80, é elastecer o tempo para o Conselho judicante abrir o processo ético contra os médicos infratores, que teria sua ação prejudicada se o prazo prescricional começasse a fluir da data de verificação do respectivo fato".(original sem realces)

Mais uma vez, discordamos. Nosso entendimento é que o prazo previsto naquele dispositivo legal é qüinqüenal, independentemente da data de conhecimento pelo Conselho Regional da ocorrência do fato ou da infração ética.

O que importa, neste caso, é o conhecimento do fato por parte do denunciante, e não do órgão julgador. A analogia com o processo judicial é patente. Passados cinco anos do conhecimento do fato, por parte daquele que se sentiu lesado, prescreve o seu direito à pretensão de ver determinada situação punida ou reparada, prescreve seu direito à pretensão de ver fiscalizada a atuação, sob o ponto de vista ético, de determinado profissional.

Em primeiro lugar, o texto legal (o já mencionado artigo 60) não faz nenhuma distinção entre fato público e notório, de fato de conhecimento apenas do paciente prejudicado. Não pode a interpretação ser extensiva a ponto de prejudicar o investigado, transformando em prazo perpétuo aquele previsto em cinco anos, posto que estar-se-ia dando ao proponente da representação ou reclamação o direito de escolher se e quando iria solicitar ao Conselho a investigação da conduta profissional.

Ao Conselho cabe, sim, a investigação da conduta ética de seus filiados. Todavia, não se lhe pode arbitrar o direito de ultrapassar os limites legais concernentes aos prazos prescricionais, em virtude de interpretação que lhe amplie desmesuradamente os poderes concedidos por força de lei.

Imagine-se, portanto, a possibilidade de se propor representação por infração ética passados oito, doze, ou mesmo quinze anos após a ocorrência de fato danoso, até mesmo contra médico que esteja aposentado há seis anos, não mais exercendo sua profissão, por motivos de vingança, apenas para abalar sua imagem junto à sociedade, sob a alegação de desconhecimento do fato. Não se pode permitir que distorções de tamanha monta venham a ocorrer, para evitar que se convulsione a estabilidade das relações jurídicas no meio social, finalidade das mais prioritárias do Direito.

Entender de outro modo é distorcer o sentido do texto legal, perpetuando assim a incerteza e a insegurança jurídica, o que não corresponde ao desejo do legislador quando da adoção em nosso ordenamento jurídico do instituto da prescrição.

O prazo prescricional para apuração de infração ética é, portanto, de cinco anos, devendo o conselho judicante se ater ao texto legal.

Por fim, duas observações importantes:

A inércia por período igual ou superior a três anos também é fator que leva à extinção do processo ético, por via de arquivamento de ofício ou a requerimento da parte interessada, de acordo com o art. 62 [19] do mencionado Código de Processo Ético-Profissional. Não se trata, em nosso sentir, de prescrição pura e simples, mas de prescrição intercorrente, consubstanciada no (manifesto ou tácito) desinteresse do Conselho em exercer o seu poder/dever de julgar filiado seu, sem prejuízo de apuração das responsabilidades pela negligência na tramitação do processo.

Mais uma vez, a passagem do tempo opera em favor do investigado, não sem motivo, posto que não poderia ele permanecer indefinidamente com a suspeita pendente sobre sua conduta, sem ver julgado processo no qual é acusado de infração ética, posto que tal postergação poderia servir para fins de pressão, intimidação, ou fins diversos pouco recomendados, além de lançar permanentemente uma nódoa sobre sua reputação profissional.

Tal determinação apenas corrobora nosso entendimento exposto em parágrafos pretéritos, uma vez que a prescrição opera em favor do investigado, não podendo ser protelado indefinidamente seu prazo, à espera de que o Conselho tome ciência da infração, se o próprio lesado deixou de exercer seu direito de ver determinada conduta investigada.

Por sua vez, o artigo 64 [20] do Código de Processo Ético-Profissional resolve confundir situação já estabelecida, alterando os prazos prescricionais de acordo com aqueles previstos pela lei penal, na hipótese de o fato objeto da investigação ética também constituir crime tipificado em legislação própria.

Em nosso sentir, é mais um equívoco do Código, posto que o julgamento na esfera penal, e a investigação de conduta ético-profissional possuem escopo, objetivos e efeitos rigorosamente diversos.

A título ilustrativo, emprestamos mais uma vez as palavras dos professores Genival França e Roberto Lana [21], desta feita com nossa total concordância:

"Assim é que, por exemplo, de acordo com o artigo 89 da Lei 9.099/95, que regula os Juizados Especiais Criminais, no caso de lesão corporal leve (que, na prática, representam a maioria das lesões causadas por ato culposo, seja por negligência, imprudência ou imperícia); quando a pena mínima cominada não for superior a 1 (hum) ano, o Ministério Público poderá propor a suspensão do processo por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presente os demais requisitos que autorizam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).

Ora, se a própria lei penal estatui, no § 6º do mesmo artigo, que não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo, como compatibilizar esta redação com a do novo Código e ainda, com a do artigo 60 do mesmo documento legal, fixando a prescrição executiva da falta ética em 5 (cinco) anos? Da mesma forma, aceita pelo acusado a suspensão condicional do processo, de acordo com o art. 89 § 5º da Lei 9.099/95, e expirando o prazo sem revogação, o juiz é obrigado a declarar extinta a punibilidade, por conseguinte, determinando igualmente, ex vi do artigo sob comento, a extinção da punibilidade ética."

A diversidade de prazos, em situações desta monta, presta um desfavor ao bom andamento dos julgamentos, posto que desconfigura uma das principais conquistas no tocante aos prazos prescricionais, que seria a harmonização do tempo, praticamente estabelecido em cinco anos para as esferas civil e administrativa, além de desnecessariamente confundir infração ética e infração penal, esta última por vezes mais danosa.


06. Conclusões

Dúvidas não restam de que os médicos foram beneficiados com as alterações legislativas, independentemente do estatuto legal que se pretenda aplicar. Tanto o novo Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor garantem prazos prescricionais muito menores do que os anteriores, da época em que a matéria fora regulada pelo Código Civil de 1916.

O que se verifica, portanto, é que os prazos prescricionais relativos à ações indenizatórias ou reparatórias aplicáveis aos profissionais da medicina, bem como aos entes públicos em virtude de sua responsabilidade objetiva, estão atualmente fixados em 05 (cinco) anos, contados a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.

Da mesma forma, os processos administrativos para apuração de falta ética também têm os seus prazos prescricionais delimitados em 05 (anos), criando assim uma saudável uniformização com relação aos procedimentos administrativos a serem adotados, com relação à guarda de informações e documentos.

Cabe ao profissional médico prevenir-se, como forma de possibilitar sua defesa em eventual processo, seja ele judicial ou perante os Conselhos Regional e Federal de Medicina, adotando posturas defensivas, de caráter preventivo.

Dentre tais posturas, recomendamos a guarda de todos os arquivos, documentos, registros clínicos e hospitalares, bem como o prontuário de seus pacientes, durante período nunca inferior a 05 (cinco) anos, de modo a possibilitar uma adequada defesa jurídica de sua conduta ética e profissional, amparada em prova documental essencial ao sucesso de suas pretensões.


Referências Bibliográficas

01. Brandão, Ricardo. O erro médico na função pública. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (http://www.cfm.org.br/revista/bio2v2/emfunpub.html), em 05/07/2003.

02. Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª Ed., Ed. Malheiros, 1999.

O direito do consumidor no limiar do século XXI in Revista Trimestral de Direito Civil, ano I, vol. 2, Ed. Padma, São Cristóvão (RJ), abr/jun 2000, pp. 123-136.

03. Dantas, Eduardo Vasconcelos dos Santos. O exercício da medicina e o Código de Defesa do Consumidor. Aspectos atuais do direito brasileiro e espanhol. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=3802>. Acesso em: 18 jan. 2004.

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04. França, Genival Veloso de, França Filho, Genival Veloso de, e Lana, Roberto Lauro. Comentários ao Código de Processo Ético-Profissional dos Conselhos de Medicina do Brasil. 2º Ed., Conselho Regional de Medicina do Estado da Paraíba, 2001.

05. Giostri, Hildegard Taggesell. Responsabilidade Médica. 1ª Ed., Ed. Juruá, Curitiba, 2001-

06. Grinover, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 6ª Ed., 1999.

07. Kriger Filho, Domingos Afonso e Ramos Filho, Irineu. Código de Processo Ético-Profissional Comentado e Anotado. 2ª Ed., Ed. Síntese, Porto Alegre, 1999.

08. Lutzky, Jane Courtes. El Código de Defensa del Consumidor y la responsabilidad personal del médico en la República Federativa del Brasil. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (http://www.bioetica.org/courteslutsky.htm), em 31/10/2001.

09. Nunes, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 1ª Ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2000.

10. Pereira, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil - De Acordo Com A Constituição de 1988, Ed. Forense, São Paulo, 5.ª Ed., 1994.

11. Rodrigues, Sílvio. Direito Civil, vol 4. (Responsabilidade Civil). Ed. Saraiva, SP, 19ª ed., 2002.

12. Souza, Néri Tadeu Câmara. Erro Médico e Prescrição. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (http://www.escritorioonline.com), em 02/10/2003.

13. Stoco, Rui. Tratado da Responsabilidade Civil. Ed. Revista dos Tribunais. 5ª ed. São Paulo, 2001.

14. Theodoro Junior, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. III, Tomo II, Forense, Rio de Janeiro, 2003.


Notas

1 Theodoro Junior, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. III, Tomo II, Forense, Rio de Janeiro, 2003, pp. 164-165

2 Cód. Civil de 2002 – Art. 189: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206."

3 Cód. Civil de 2002 – Art. 194: "O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz."

4 Op. Cit. Pp 158-161

5 Cód. Civil de 1916 – Art. 177: "As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos, as reais em 10 (dez), entre presentes, e entre ausentes, em 15 (quinze), contados da data em que poderiam ter sido propostas".

6 Cód. Civil de 2002 – Art. 206: "Prescreve: 3º: Em 3 (três) anos: V – a pretensão de reparação civil;"

7 Cód. Civil de 2002 – Art. 205.

8 Cód. Civil de 2002 – Art. 2.028: "Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada".

9 Definição complementada pelos artigos 17: "Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento" e 29: "Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas", ambos da mesma Lei.

10 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, em seus Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (pp. 99), acrescenta: "Serviço é tipicamente atividade. Esta é ação, ação humana, tendo em vista uma finalidade. Ora, toda ação se esgota tão logo praticada. A ação se exerce em si mesma. Daí somente poderia existir serviço não durável. Será uma espécie de contradição falar em serviço que dura. Todavia, o mercado acabou criando os chamados serviços tidos como duráveis, tais como os contínuos (por exemplo, os serviços de convênio de saúde, os serviços educacionais regulares em geral, etc). Com isso o CDC, incorporando essa invenção, trata de definir também os serviços como duráveis e não duráveis, no que andou bem."

11 Direito Civil, vol 4. (Responsabilidade Civil). Saraiva, SP, 19ª ed., 2002, p. 254

12 CDC (Lei 8.078/90) – Art. 27 "Prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria".

13In Erro Médico e Prescrição. Artigo publicado na seção Direito Médico do site Escritório On Line (http://www.escritorioonline.com)

14 Constituição Federal, art. 170: "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: V - defesa do consumidor;"

15In "O direito do consumidor no limiar do século XXI", pp. 125 e 126.

16 CPEP – Art. 60: "A punibilidade por falta ética sujeita a processo ético-profissional prescreve em 5 (cinco) anos, contados a partir da data do conhecimento do fato"

17In Comentários ao Código de Processo Ético-Profissional dos Conselhos de Medicina do Brasil. 2º Ed., Conselho Regional de Medicina do Estado da Paraíba, 2001, p. 124.

18In Código de Processo Ético-Profissional Comentado e Anotado. 2ª Ed., Ed. Síntese, Porto Alegre, 1999, p. 113.

19 CPEP – Art. 62: "Todo processo disciplinar paralisado há mais de três anos, pendente de despacho ou julgamento, será arquivado ex-officio ou sob requerimento da parte interessada, sem prejuízo de serem apuradas as responsabilidades pela paralisação".

20 CPEP – Art. 64: "Quando o fato objeto do Processo Ético-Profissional também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal".

21 Op. Cit., p. 130-131

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Sobre o autor
Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas

advogado em Alagoas e Pernambuco, consultor de empresas em Direito Médico, Direito do Trabalho e Direito do Consumidor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Eduardo Vasconcelos Santos. Controvérsias relativas à prescrição e o erro médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 509, 28 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5984. Acesso em: 7 mai. 2024.

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