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Reflexões sobre os crimes de perigo abstrato

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19/09/2004 às 00:00
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6 - Reflexões finais

É inegável que o avanço da técnica e o conseqüente aumento de sofisticação da vida na sociedade contemporânea, principalmente das atividades econômicas, das relações de consumo, das relações humanas, do acesso a informação, da intervenção do Estado na vida das pessoas, do incremento e da percepção do risco, ocasionou uma mutação da ciência jurídica criminal pelo fato de se passar a considerar como resultado penalmente punível o que anteriormente era considerado mera situação de risco. Esta virada conceitual tem a clara finalidade de produzir um impacto tranqüilizador sobre a opinião pública, acalmando os sentimentos incontroláveis de insegurança.

Nota-se que, paulatinamente, na ânsia de aumentar a segurança social, quebrando a sistemática clássica do Direito Penal, passou-se a compreender que até mesmos resultados mais remotamente prováveis ou até apenas possíveis, segundo um juízo hipotético, deveriam ser considerados como puníveis, desde que pudessem causar potencialmente esse perigo. Cada vez mais se acentua uma ideologia punitiva, ampliando o campo das condutas penalmente condenáveis, mesmo sem estarem ligadas a um resultado danoso, ou sem apresentarem uma direta, ou perceptível, situação de dano próximo.

Põe-se em relevo, então, um dos traços mais evidentes do Direito Penal hipertrofiado, que consiste precisamente na criminalização adiantada ou antecipada de algumas condutas frente ao que tradicionalmente foi considerado seu núcleo básico: a lesão.

JAKOBS (40) refere que o que "a elevação dos crimes de perigo abstrato a mera infração contra a ordem pública (como mera perturbação, ou ao menos principalmente perturbação da ordem) a delito criminal (como ataque contra a identidade social) se fez contando com boas razões para isso, ou, ao contrário, se fez de modo intervencionista". Prossegue referindo que o que se busca na tipificação de delitos de perigo abstrato "é a de manutenção da vigência da norma" (41).

Essa destacada tendência político-criminal da sociedade contemporânea, sociedade esta consciente dos riscos e ameaças que caracterizam o processo de globalização, suscita não só conflitos com princípios fundamentais da ciência penal e do direito constitucional, senão também sérios e graves problemas de legitimação, fundamentação e dos limites da pretensão punitiva estatal, que, agora, procura desesperadamente manter a vigência da sua legislação, e não punir lesões.

Tal polêmica de manutenção da norma, relacionada com a antecipação da punição, vem hoje centrada no que se chama Direito penal do risco, no qual há um abandono dos critérios de imputação do direito penal clássico.

Este Direito orienta-se, dentre outras coisas, pelo abundante uso de delitos de perigo abstrato como forma de estabelecer que o crime decorra de uma previsão conceitual, ligada à ideologia da segurança e aos interesses de um Estado poderoso de Lei e Ordem. E a técnica de tipificação mais compatível com esses anseios de antecipação máxima da proteção penal seria a criminalização antecipada do perigo, a fim de se evitar que o planeta corra riscos ou catástrofes anunciadas.

Todavia, essa ampla utilização da técnica dos delitos de perigo abstrato, não só dificulta enormemente o direito ao contraditório, a ampla defesa e ao devido processo legal, ao mesmo tempo em que simplifica a atividade da persecutio criminis, produz uma relativização do conceito de bem jurídico, pois a multiplicidade, a contingência, a inconsistência e a facilidade na criação de bens jurídicos equivalem na realidade a uma desvalorização de bem jurídico merecedor de tutela penal.


Notas

  1. SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso Sobre as Ciências, p. 07.
  2. WOLKMER, Antônio Carlos e LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Os Novos Direitos no Brasil: Natureza e Perspectivas, p. VII.
  3. O temo ‘sociedade de risco’ foi cunhado pelo sociólogo alemão Ultrick Beck em 1986, na obra La sociedad del riesgo: Hacia una nueva modernidad, ano este em que ocorreu o acidente nuclear de Chernobyl.
  4. SANTOS, Boaventura de Souza (org.). A Globalização e as Ciências Sociais, p. 11.
  5. HASSEMER, Winfried. Características e Crises do moderno Direito Penal, p. 54.
  6. A empresa de tecnologia IBM possui uma campanha de marketing, veiculada na mídia televisiva, na qual demonstra como as pessoas, mormente os empresários, que desconhecem a tecnologia da atualidade, principalmente as interações proporcionadas pela computação, ficam para trás no jogo do mercado global. A frase posta em evidência é dita por um empresário, caricaturado no comercial com terno xadrez, óculos com lentes grossas, gel gorduroso no cabelo e gravata em total desarmonia com o traje vestido, quando percebe que não consegue acompanhar a velocidade da transmissão da informação e perde clientes e negócios em virtude disso. Chocado com isto, convoca um consultor, caricaturado como um mágico, que lhe apresenta como solução dos seus problemas uma máquina do tempo, um objeto de metal com luzes coloridas piscantes, que nunca fora testado. A propaganda acaba com o empresário perplexo e com o slogan da empresa que diz ter soluções para um mundo "on demand".
  7. FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, "Sociedade de Risco" e o Futuro do Direito Penal, p. 32.
  8. IANNI. Otávio. A Era do Globalismo, p. 11.
  9. SANTOS, Boaventura de Souza. A Globalização e as Ciências Sociais, p. 11.
  10. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, ver principalmente os dois primeiros capítulos p. 07/50.
  11. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, p. 18.
  12. GAUER, Ruth M. Chittó. Conhecimento e Aceleração (Mito, Verdade e Tempo), p. 94.
  13. GAUER, Ruth M. Chittó. Conhecimento e Aceleração (Mito, Verdade e Tempo), p. 94.
  14. BAUMANN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 32.
  15. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global, p. 05.
  16. MENDES, Paulo de Souza. Vale a pena o Direito Penal do ambiente?, p. 47/48.
  17. GOLDBLATT, David. Teoria Social e Ambiente, notadamente o quinto capítulo, p. 227/269.
  18. FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, "Sociedade de Risco" e o Futuro do Direito Penal, p. 56.
  19. CORREIA, Eduardo. Lições de Direito Penal, p. 287-288.
  20. BUERGO, Blanca Mendoza. Limites dogmáticos y Político-Criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 10.
  21. REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal, Volume I, p. 278.
  22. COELHO, Walter, Teoria Geral do Crime, Volume I, p. 102.
  23. COSTA, José Francisco de Faria. O Perigo em Direito Penal, p. 623.
  24. JAKOBS, Günther. Derecho Penal: Parte General, p. 206/207.
  25. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível, p. 40.
  26. ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General, Tomo I, p. 336.
  27. ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General, Tomo I, p. 407.
  28. BUERGO, Blanca Mendoza. Limites dogmáticos y Político-Criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 04.
  29. KINDHÄUSER, Urs. Derecho Penal de la culpabilidad y conducta peligrosa, p. 11.
  30. BUERGO, Blanca Mendoza. Limites dogmáticos y Político-Criminales de los delitos de peligro abstracto. p 19/20.
  31. JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 27.
  32. JAKOBS, Günther. Ciência do Direito e Ciência do Direito Penal, p. 33/34.
  33. OLIVEIRA, Marco Aurélio Costa Moreira de. Crimes de perigo abstrato, p. 01.
  34. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível, p. 41.
  35. COSTA, José Francisco de Faria. O Perigo em Direito Penal, p. 624.
  36. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, 91.
  37. STRECK, Lênio Luis. O "Crime de Porte de Arma" à Luz da Principiologia Constitucional e do Controle de Constitucionalidade: Três Soluções à Luz da Hermenêutica, p. 54.
  38. REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral, Volume I, p. 279.
  39. KINDHÄUSER, Urs. Derecho Penal de la culpabilidad y conducta peligrosa, p.79/81.
  40. JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 25/26.
  41. JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 27.

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Sobre o autor
Diego Romero

advogado em Porto Alegre (RS), especialista em Direito Penal Empresarial e mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMERO, Diego. Reflexões sobre os crimes de perigo abstrato. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 439, 19 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5722. Acesso em: 18 mai. 2024.

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