Breves considerações sobre o consentimento do ofendido na lesão corporal em consonância com a Lei n. 9099/90.

13/11/2015 às 11:13
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O objetivo do artigo é, partindo de um caso concreto noticiado pela imprensa, traçar um paralelo com o alcance do consentimento dado pelo ofendido na hipótese de lesão corporal, levando-se em consideração a Lei n. 9099/90.


Recentemente, jornal de grande circulação nacional publicou matéria relatando um fato um tanto quanto inusitado acontecido na Austrália.
Segundo o periódico, uma mulher de 22 anos de idade estabeleceu um pacto com seu namorado. Tal acordo previa que em caso de infidelidade do rapaz, a traída poderia se vingar da forma que bem entendesse.
 A essa altura do relato o leitor já deve imaginar que o varão não cumpriu com sua parcela do acordo, cedendo  às tentações da carne.  Como diria Kant, não controlou a vontade (deliberação racional) dando asas ao desejo (inclinação incontrolável das pulsões).
O que não imagina o atento leitor é que a forma de vingança escolhida pela moça ficou bem longe do mero "dar o troco" no namorado, mantendo, por exemplo, relação sexual com alguma outra pessoa, ou algo parecido. Escolheu a traída algo, digamos, bem mais "quente" que isso. Pelo menos para o traidor.
Como pacto é pacto, visando saciar a sanha de vingança do amor despedaçado, consentiu o traidor que a namorada enraivecida colocasse o seu pênis no aparelho de fazer alisamento para os cabelos dela - objeto mais conhecido entre nós como "chapinha".
O caso acabou em um tribunal Australiano, onde a agressora disse imaginar que sua conduta deixaria o namorado apenas com queimaduras semelhantes àquelas provocadas pela exposição ao sol.
Mas algo deu errado, tendo em vista que, de acordo com a imprensa local,  o rapaz somente se recuperará das queimaduras em aproximadamente dois anos, com cicatrizes permanentes e sem a certeza de que tudo irá funcionar normalmente.
Infelizmente, o noticiário não informou o desfecho do caso na justiça, mas a  análise de tal fato serve para trazer a tona uma questão jurídica ainda bastante tormentosa:  até onde é válido o consentimento do ofendido em se tratando de  integridade física ou corporal?
É certo, que não dispõe nosso ordenamento jurídico de uma regra clara como, a titulo de exemplo,  encontramos no código penal italiano,  que isenta de pena quem lesa ou põe em perigo direito com o consentimento do titular do mesmo (Art. 50  - Consenso dell'avente diritto -  Non è punibile chi lede o pone in pericolo un diritto, col consenso della persona che può validamente disporne).
Portanto, necessário, para que se inicie qualquer análise quanto ao tema, se estabelecer, de uma forma geral, os requisitos do consentimento válido, quais sejam: a) disponibilidade do bem jurídico; b) capacidade por parte do ofendido; c) que seu consentimento seja livre de qualquer vicio. Tais condições sempre deverão estar presentes.
Analisando o tema do ponto de vista do predomínio do interesse privado (bens disponíveis portanto), o consentimento terá o condão de excluir a ilicitude da conduta.  Nas palavras de Germano Marques da Silva: " O consentimento do ofendido significa a renúncia do titular do direito tutelado a essa mesma tutela, renúncia que a lei aceita, em princípio, quando se trate de direito disponível".
Contudo, a questão passa do simples ao tormentoso quando entra em jogo o interesse coletivo (bens indisponíveis). Nesse sentido já se manifestou Liszt : "Entende-se que a ordem jurídica nega o poder de dispor, quando liga ao bem em questão uma importância que vai além da pessoa do respectivo titular".
O direito a vida, está dentre aqueles em que não cabe ao titular abrir mão. Evidentemente que tal assertiva diz respeito ao  consentimento para que outrem lhe tolha tal direito. Isso porque não ocorre qualquer tipo de reprimenda legal para aquele que tentar ceifar a própria vida e não conseguir, ao contrário do que ocorria na Roma Antiga  onde, se determinada pessoa tentasse se matar e não obtivesse êxito, o Estado lhe aplicava uma reprimenda, condenando-a a morte. Era morrer pelas próprias mãos ou pelas mãos dos Estado.
Entretanto, é na integridade física ou corporal que o direito encontra as maiores discussões.
Observemos como o consentimento ocorre de forma habitual no nosso dia a dia. A criança ao nascer, se do sexo feminino, depara-se com a primeira situação de consentimento para violação de sua integridade corporal. Como ainda não tem condições de consentir por si mesma, seus genitores não se intimidam e assumem as rédeas de tal ato para a colocação de um belo brinquinho de ouro em sua orelha. Mais tarde já na fase adulta, consentimos que nos coloquem piercings, que nos marquem o corpo com tatuagens e até que nos quebrem o nariz em lutas de MMA. Isso sem falar, entre quatro paredes, dos adeptos de  relações sadomasoquistas.
A resposta para tais permissões está na chamada teoria da adequação social introduzido no Direito Penal por Hans Welzel. Nas palavras de Luiz Régis Prado e Érika Mendes de Carvalho: "A adequação social surgiu como um instituto que buscava afastar do âmbito da intervenção jurídico-penal determinadas hipóteses não desvaloradas do ponto de vista social, nas quais as lesões aos bens jurídicos ocorriam dentro do funcionamento normal da vida em sociedade"
Sob uma outra perspectiva, não é socialmente aceita a conduta de alguém que, embora de forma absolutamente consentida, efetue violento golpe contra outrem com objeto contundente, causando-lhe lesões de natureza grave. Da mesma forma, não é visto como sendo uma atitude normal a conduta de lutador de boxe que arranca a orelha de adversário com mordida, mesmo tendo este último consentido no contato físico e até no sofrimento de lesões. O termômetro deve ser a evolução dos costumes, não podendo ser aceitas condutas contrárias a moral e a ética social.
Após tais considerações de natureza teórica sobre consentimento do ofendido, necessário uma análise de ordem prática, porém fundamental.
É que, inobstante posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais distintos referentes a aceitação do consentimento na hipótese de lesão corporal,  com o advento da lei n. 9099/90,  o crime de lesão corporal previsto no art. 129 do CP passou a ser de ação penal pública condicionada a representação no caso de lesões de natureza leve, acarretando consequencias diretas ao tema tratado.  De tal modo, podemos chegar a conclusão de que a incolumidade física  passou a ser um bem relativamente disponível, vez que, se atingida de forma não gravosa ficará a cargo do titular do bem tutelado representar ou não contra o agressor e assim, vê-lo ou não processado criminalmente. Portanto, no caso de lesão de natureza leve, o consentimento do ofendido exclui o crime pois se o agredido consentiu presume-se, por lógica, que não irá representar.

Notas:
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado - 15ª ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2015
PRADO, Luiz Régis e CARVALHO, Érika Mendes de: ADEQUAÇÃO SOCIAL E RISCO PERMITIDO: ASPECTOS CONCEITUAIS E DELIMITATIVOS. Revista dos Tribunais | vol. 844/2006 | p. 435 - 451 | Fev / 2006.
SILVA, Germano Marques da.  Direito penal português: Teoria do crime - 2.ed. Lisboa: Universidade Católica, 2015. 
VON LISZT, Franz. Tratado de direito penal allemão.  Tomo I. Tradução e comentários José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: Ed. Briguiet & C.

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Sobre o autor
Mauro Argachoff

MESTRE EM DIREITO PENAL PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USPESPECIALISTA EM DIEITO PENAL PELA ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA.DELEGADO DE POLÍCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO.PROFESSOR DA ACADEMIA DE POLICIA DO ESTADO DE SÃO PAULO.PROFESSOR NO COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS.PROFESSOR, NA ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA – ESA .PROFESSOR NA ESCOLA PAULISTA DE DIREITO – EPD.

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