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A intervenção mínima para um direito penal eficaz

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01/07/2002 às 00:00
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5. A Experiência Brasileira Através da Lei dos Juizados Especiais - A Identidade com o Princípio da Intervenção Mínima.

Já há um bom tempo que os tribunais brasileiros vêm temperando os rigores das leis penais com soluções mais consentâneas com a moderna política criminal. A fraude de pagamento com cheque sem provisão de fundos, por exemplo, conduta onde é difícil a constatação do dolo preenchedor do tipo ilícito do estelionato, pode deixar de ser perseguido em caso do pagamento ou ressarcimento dos prejuízos advindos para a vítima se efetivado antes do oferecimento da ação penal pública. Outra orientação muito ocorrente nos tribunais, era a de não punição do agressor quando evidenciado, pelo juiz, que a sanção penal pudesse a abalar relação daquele com sua esposa, quando vítima e o restante da família. Claro que neste caso se exigia uma especial prudência do magistrado, que deveria perceber as intenções da vítima em relação ao desfecho do processo.

Mas o fato é que os juízos criminais continuavam assoberbados. Inúmeros processos aguardando o longo curso de instrução, muitos deles em vias de prescrição, preenchiam a pauta dos juízes e dos promotores de justiça. Crimes de bagatela e contravenções tramitavam a fase inquisitorial na polícia e, após, uma instrução demorada e, muitas vezes falha. Uma dupla instrução criminal, que mesmo despida do excesso de formalismo, fazia os processos arrastarem-se por longos tempos. Essa situação caótica da justiça brasileira encontrou, recentemente, uma promessa de remédio na Lei dos Juizados Especiais Criminais, a Lei nº 9.099/95.

A Lei dos Juizados Especiais Criminais é a tentativa incipiente de inserir o Estado na moderna concepção menos intervencionista. Através de normas de caráter processual e penal, a referida lei instrumentaliza a justiça para atingir esse fim. Ao mesmo tempo, oferece um sistema de controle da contumácia não punida. Por outro lado, a lei concebe uma atividade judicial mais célere e eficaz, na medida em que dispensa, nos casos de menor complexidade, a fase de inquérito policial, remetendo o delinqüente e vítima à apresentação imediata ao juiz e ao representante do Ministério Público. Já nesse momento, pode ocorrer a transação civil entre ofendido e delinqüente, significando em reparação de danos materiais ou morais. Nos casos em que a persecução do crime dependa de representação do ofendido, a transação civil importa na extinção de punibilidade. Também na apresentação inicial, pode o representante do Ministério Público propor a pena, não consistente em segregação que, aceita pelo delinqüente, é de imediato executada.

A lei remeteu aos juizados especiais todos os crimes de menor potencial lesivo, tidos como tais aqueles em que a pena máxima não fosse superior a um ano de prisão. Nesse longo rol incluíram-se as contravenções. Como medida acertadíssima de política criminal, condicionou a persecução das lesões leves, culposas ou dolosas, à representação do ofendido. A este cabe a prerrogativa de compor acordo civil, excludente de punibilidade, ou de dar autorização ao Ministério Público para a transação penal ou ajuizamento da ação.

A imediata execução da pena é boa medida profilática. Ao invés dos morosos e muitas vezes infrutíferos processos criminais, que desgatavam imensamente a imagem da justiça, a transação penal aceita pelo delinqüente ou o procedimento sumaríssimo que culmine em sua condenação, levam à imediata execução da pena. Ao invés da pena de prisão, degradante da pessoa humana e formadora de delinqüentes profissionais, deu-se ênfase às penas restritivas de direitos, de prestação de serviços à comunidade e de multa. A intenção é, notoriamente, a de evitar o meio pernicioso das prisões para os delinqüentes não habituais e menos perigosos. A prisão ficou restrita para os casos graves, em que a retirada do delinqüente do meio social é medida necessária.

O legislador, por outro lado, foi cauteloso ao criar meios inibitórios para a delinqüência. A extinção de punibilidade através da transação civil, de modo algum estimula ou premia o infrator. Este gozará do benefício legal apenas uma vez, de modo que se voltar a delinqüir sofrerá a persecução criminal.

Deu-se, assim, um grande passo no direito penal brasileiro. Menos intervencionista, posto que exclui da atividade penal a perseguição de crimes de menor potencial lesivo solvíveis na esfera da transação civil, tornou-se rápido e eficaz. As instruções processuais mais demoradas, ficaram destinadas aos casos em que se exige maior apreciação de provas. Reabilita-se, também, a imagem da justiça. Outrora vista como extremamente morosa e pouco eficaz, mostra, agora, um dinamismo salutar, sem que se esqueçam das garantias constitucionais e processuais dos cidadãos. Mais resta ainda muito a caminhar. Figuras anacrônicas, desconformes com a realidade que se apresenta, como a do adultério e da sedução, merecem a atenção do legislador penal. Há ainda muita timidez no terreno da descriminalização. Timidez que desaparece quando se entra na seara da criminalização. Há, por certo, um longo caminho a trilhar, mas a certeza de que o legislador resolveu iniciá-lo já é bastante acalentadora.


Conclusão

A concretização de um direito penal ajustado segundo seu tempo e sociedade, passa, antes de tudo, pela definição da atividade estatal. Ao longo de uma trajetória histórica, dá-se a constante evolução do jogo político. O Estado vai assumindo novos papéis impostos pelas exigências sociais. As modernas sociedades, assimilam as diferenças sem prejuízos. Tornam-se cada vez mais complacentes em relação a condutas antes vistas como prejudiciais. Isso dá o contorno e as dimensões do crime.

O direito penal deve estar intimamente conexionado com outras ciências humanas. A criminologia, em especial, traduz as dimensões da fenomenologia do crime, revelando as áreas de consenso e de maior conflituidade. Nesse passo, é ela importante auxiliar do direito penal. Informa as novas exigências sociais, detecta seus valores mais pungentes, mais significativos, bem como aqueles que já não figuram no rol de prioridades.

Com o acesso constante a esses dados, pode-se determinar a política criminal mais adequada a um determinado tempo. Política criminal inclinada para os valores mais representativos da comunidade, que dita, antes de tudo, a retirada da intervenção penal das áreas relativas a moral. A política criminal deve encontrar outros meios mais eficazes e menos gravosos para corrigir os desvios prejudiciais à comunidade. Assim, quando a sanção não se apresentar, na ordem de subsidiariedade, como medida idônea e adequada, a descriminalização deverá impor-se.

A importância do direito penal revela-se pelo seu papel de último remédio da comunidade politicamente organizada. Está ele destinado a combater não as condutas comezinhas e de pouca gravidade, mas sim aquelas consideradas intoleráveis pela sociedade. Os atos mais danosos, que realmente causem prejuízos a valores representativos.


Notas

1. O presente artigo foi realizado durante nosso curso de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O material recolhido durante as investigações, foi mais tarde acrescido a outros, que deram sustentação para o nosso Dogmática Penal e Poder Punitivo: Novos Rumos e Redefinições, publicado pela Juruá, em 2000.

2. Apud Aníbal Bruno. Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 74.

3. Segundo Foucault, "o castigo é também uma maneira de buscar uma vingança pessoal e pública, pos na lei a força físico-política do soberano está de certo modo presente: vemos pela própria definição da lei que ela tende não só a defender mas também a vingar o desprezo de sua autoridade com a punição daqueles que vierem a violar suas defesas". E ainda, " O suplício tem então uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstruir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado" (Michel Foucault,. Vigiar e Punir, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 46).

4. Baptista Machado salienta que "O princípio do Estado de Direito (ou Estado subordinado ao Direito surge historicamente por contraposição ao Estado Absoluto, no qual prevalecia a chamada "Razão do Estado" sobre os direitos e liberdades dos cidadãos" (in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador,Coimbra: Livraria Almedina, 1983 p. 59).

5. Costa Andrade, in Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1991 pp. 44/45.

6. Costa Andrade, ibidem.

7. Cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, in Constituição e Crime, Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 39.

8. Referindo-se às decisões contidas no 6º vol. Do repertório de decisões do BGH (Supremo Tribunal Federal alemão), diz Hassemer que"en especial la elocuentemente representativa ley sobre la moral, que moldeó normativamente el texto legal y su interpretación, ( a cuyo contenido el Senado accedió facilmente), pudo fundamentar en un abrir y cerrar de ojos las dos sentencias privativas de libertad: ‘el ordenamiento moral quiere que el tráfico entre los seres humanos se haga efectivo fundamentalmente en la pareja monogámica, porque el sentido y la consecuencia del tráfico es el niño (53).Ya que la ley sobre la moral desaprueba estrictamente todo suicidio, prescidiendo quizá de excepciones aparentes, ya que nadie puede disponer soberanamente sobre su propia vida y darse muerte, el derecho no puede reconocer que el deber de asistencia del tercero tenga que ceder ante la voluntad moralmente desaprobada del suicida concretada en su propia muerte’(153)" in "La ciencia jurídico penal en la República Federal Alemana", nota 14, publicado no Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, tomo XLVI, fasc. I, enero-abril MCMXCIII.

9. Maria da Conceição Ferreira Cunha, in Constituição e Crime, p. 41.

10. Costa Andrade, in Consetimento e Acordo em Direito Penal, p. 37.

11. Moos, Der Verbrechensbegriff, p. 214/5, apud Costa Andrade, in op cit, p. 52.

Para Frederico Stella, a obra de Birnbaum reflete a posição utilitarista, possuindo um "declarado intento de estabelecer um limite à tarefa do legislador penal, circunscrevendo o elenco de factos merecedores de pena somente aos (factos) socialmente danosos, ofensivos de entidades «reais» («empírico-naturais») do mundo externo", in La Teoria del Bene Giuridico e I.C.D. Fatti Inoffensivi Coformi al Tipo, apud Maria Conceição Ferreira da Cunha, cit., pp. 42/43.

12. Apud Maria Conceição Ferreira da Cunha, op. cit, p. 50.

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Para a citada autora, Binding "opta claramente pelo positivismo normativista, na medida em que o bem jurídico se identifica com tudo o que como tal for considerado pelo legislador". In op cit., p. 51.

13. Ibidem, p. 68, nota 86.

14. Costa Andrade, op. cit., p. 39.

15. Von Liszt in Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, apud Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Lisboa: Veja, 1986, p. 53.

16. Op.cit, p. 58.

17. À guisa de exemplo, Roxin cita a descriminalização do adultério: "Disposições esvaziadas de conteúdo (como a sanção penal contra o adultério) são pura e simplesmente inadequadas para proteger bens jurídicos que (como o casamento) são, não obstante, dignos de proteção. Todavia, castigar semelhante conduta por uma «adesão» estatal ao casamento é algo que repugna ao PA que, consequentemente, segue o ponto de partida de Liszt". Op. cit., p. 59.

18. Conforme Costa Andrade, in O Novo Código Penal e a Moderna Criminologia, na coletânea Jornadas do Direito Criminal, Fase I, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 189.

Ajunta Roxin afirmando taxativamente que "somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se.(…)Consequentemente, e por ser a reacção mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar". In Problemas Fundamentais do Direito Penal, p. 28.

Ao chegarmos neste ponto interessantíssimo da natureza do direito penal, questionamos a legitimidade das leis brasileiras que definem e sancionam penalmente a sonegação fiscal. A Lei nº 4.729, de 14 de junho de 1965, no seu art. 2º, previa a extinção da punibilidade com o pagamento do débito fiscal. No mesmo passo caminhou a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, dos crimes contra a ordem tributária, que no art. 14 previa a extinção da punibilidade quando o devedor pagasse a dívida fiscal até antes do recebimento da denúncia, oque foi seguido pelo art. 34, da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995. Desse rápido panorama se depreende que o legislador brasileiro não vê a necessidade de punir a sonegação fiscal, mas criou elementos coercitivos, ante uma ameaça de processo penal e de provável imposição de pena, para ver satisfeita a pretensão de quitação das dívidas fiscais. Ante a óbvia falta de necessidade de punição (segundo a intenção finalística do legislador brasileiro), vemos como supérflua a utilização da investigação policial e possível atividade do Ministério Público e do Judiciário. Ademais, referidas leis penais atentam contra a dignidade do cidadão, que permanecerá, em muitos casos, com a mácula, o estigma dos maus antecedentes policiais. Não seria o caso de tornar mais célere e eficiente o procedimento de cobrança das dívidas públicas? Não resultaria mais eficiente?

19. Eduardo Correia in Direito Criminal, Coimbra: Livraria Almedina, 1996, pp. 1/2.

20. Figeueiredo Dias, a esse propósito afirma que "Se, num Estado-de-direito material - como se aponta, p. ex., de maneira lapidar na Constituição portuguesa -, toda a actividade do Estado, incluída a jurídico-penal, há-de estar submetida à Constituição e fundar-se na legalidade democrática, então também a ordem legal dos bens jurídicos há-de constituir, antes de mais, uma ordenação axiológica com aquela que preside a Constituição". (grifamos). In Direito Penal e Estado-de-direito material, Revista de Direito Penal, nº 31 1982, p. 44.

21. Faria Costa in O Perigo em Direito Penal,Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 188.

22. Ibidem, p. 189.

No mesmo sentido manifesta-se Figueiredo Dias ao menciona que se verifica uma relação entre o ordenamento constitucional e o ordenamento penal "a permitir afirmar que a ordem de valores jurídico-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo do âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva do Estado", in Novos Rumos da Política Criminal, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 1983, p. 28.

23. Maria da Conceição Ferreira da Cunha afirma que "Aceitando ser a dignidade da pessoa humana o princípio fundante e rector das actuais Constituições democráticas de cultura ocidental, é evidente que que os valores mais intimamente ligados a esta dignidade são de primacial importância. Desde logo a vida, como base de todos os valores, terá de assumir papel cimeiro. Mas também a liberdade, nas suas várias expressões, e a integridade física e moral". Op. cit, pp. 317/318. Estes seriam, pois, valores prioritários que merecem respeito e proteção, e sobre os quais deve se manifestar o legislador.

24. Ibidem, p. 328.

25. Ibidem, p. 328.

26. Conforme Faria Costa, op. cit., p. 198.

27. Ibidem, p. 189.

Karl Prelhaz Natscheradetz explica que "a elaboração de um conceito material de crime a partir dos critérios jurídico- constitucionais não significa, de modo algum, que a actividade do legislador penal na determinação e concretização dos bens jurídicos que devem ser protegidos se limite a tarefas de subsunção e dedução a partir das normas e princípios constitucionais" E mais adiante arremata seu raciocínio afirmando que "A Constituição fornece os critérios de apreciação, mas não uma linha directiva fechada, o que, conferindo uma ampla liberdade ao legislador penal na concretização dos bens com dignidade penal («Strafwürdigkeit») e que necessitam ou carecem de tutela penal - não esquecendo, como já foi referido, que nem todos os valores constitucionais possuem as referidas qualidades, pelo entendimento do direito penal como protecção subsidiária de bens jurídicos (…)"In O Direito Penal Sexual, Coimbra: Livraria Almedina, 1985, p. 106/107.

28. Natscheradetz afirma que "(…)não se deve caracterizar de modo puramente normativo o conceito de bem jurídico: o «aspecto criminal-fenomenológico» a realidade concreta e empírica do crime, deverá ser objecto de um estudo objectivo pela Criminologia, para informar racionalmente a decisão legislativa (…)", in op cit., p. 107.

29. Hassemer, ao referir-se sobre a reforma do CP alemão, de 1969, contrapondo-se ao largo intervencionismo que se verificava no projeto de 1962, em que a criminalização era ampla e abrangente, ressalta a significativa modificação do títtulo dos crimes sexuais, até então conhecidos como delitos contra a moral. O legislador passou a perquirir sobre o legítimo bem jurídico a ser protegido pelo direito penal sexual, extraindo as concepções que transcendiam à autodeterminação sexual e a proteção à juventude. (in "La ciencia jurídico penal en la República Federal Alemana", cit. pp 56/57.

30. A reforma do CP alemão de 1959 levou a cabo a descriminalização de diversas figuras, notoriamente incompatíveis numa sociedade pluralista, estruturada sob uma forma liberal. Assim, os legisladores desconsideraram o homossexualismo entre adultos, a sodomia, além do adultério. Ibidem, p. 57.

31. Dita função simbólica, segundo a lição de Silva Sanchez, citado por Alberto Silva Franco no seu artigo "Do Princípio da Intervenção Mínima ao Princíipio da Máxima Intervenção", caracteriza-se "por dar lugar, mais do que a resolução directa do problema jurídico-penal (a proteção dos bens jurídicos), à produção na opinião pública da impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido". Mais adiante, Silva Franco arremata seu ponto de vista citando Antônio Garcia-Pablos, que afirma que se trata de utilizar o direito penal "para produzir um mero efeito simbólico na opinião pública, um impacto psicossocial, tranquilizador para o cidadão e não para proteger com eficácia os bens jurídicos fundamentais para a convivência" (publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, fasc. 2º, de 1996, pp. 182/183). Para Silva Franco, um exemplo marcante dessa função simbólica assumida pelo legislador penal brasileiro é a Lei dos Crimes Hediondos, cujo "insucesso foi um convite a novas incursões na mesma temática, sempre com um alargamento maior da intervenção punitiva e com uma proporcional limitação das garantias processuais penais". Ibidem, p. 185.

As severas críticas de Silva Franco.residem num ponto axial de defeito de técnica penal, encontrando outras vozes que partilham de seu ponto de vista. De fato o legislador brasileiro agiu preciptadamente ao pretender dar uma satisfação aos clamores públicos, dramatizados pelos meios de comunicação social. E acabou por macular o fim teleológico da lei a partir do conceito de hediondez. Ora, hediondo, segundo o léxico, tem o significado de depravado, imundo, vicioso, sórdido, repugnante. É, enfim, o ato que traz em si a característica de causar os mais diversos sentimentos de repulsa. Um furto famélico é reprovável, mas não causa clamor do cidadão comum. Ao passo que a extorsão mediante seqüestro, por si só é um crime repugnante. Há, no entanto, modus faciendi de determinados crimes que causa repulsa e o clamor público. E, justamente esses crimes, mais representativos, é que foram rotulados como hediondos pelo legislador, criando uma falsa impressão ao público. Na verdade, não podia o legislador criar um conceito hermético e estático de hediondez, na medida em que, como ensina Damásio de Jesus, uma relação sexual com uma menor de 13 anos, em que o agente desconhece sua idade e age mediante consentimento, não representa um ato hediondo (apesar de estar tipificado o estupro, arrolado na mencionada lei como crime hediondo), ao passo que se um sujeito desferir inúmeros golpes de faca por todo o corpo da vítima, causando-lhe apenas lesões corporais leves, está a cometer um ato repugnante, mas não enquadrado na lei (in Novas Questões Criminais, pp. 26/27). Dessa forma compreende-se ter o legislador falhado imensamente, dando falsas impressões ao público e não logrando atingir o fim perseguido, mas não repudiamos completamente a referida lei, que tem aspectos positivos, mormente no que se refere aos instrumentos processuais.

32. A evolução tecnológica, vg., viabilizou a invasão de privacidade e até mesmo fraudes, através da informática, causando sérios danos a bens jurídicos carentes de tutela penal.

33. Na Alemanha do tempo da reforma do CP de 1969, chegou-se ao consenso de que condutas como o adultério e o homossexualismo entre adultos já não exigiam a intervenção penal. Primeiro porque a moderna teoria do bem jurídico expurgava a intromissão do Estado do domínio da moral. Já se não concebia um Estado doutrinador, voltado para orientar uma moral comum. Depois porque de certa forma colhia-se um consenso social sobre a falta de prejuízo em deconrrència daquelas condutas.

34. Figueiredo Dias e Costa Andrade salientam que "Para o poder, o crime constitui um dos tópicos mais gratificantes". E citando N. Morris/G. Hawkins, concluem que " ‘ Os Políticos confiam exageradamente na lei criminal e gostam de invocar as sanções criminais a propósito dos mais variados problemas sociais, que mais não seja para declinar o seu fervor moral e suas virtudes políticas’. Daí a frequência do recurso à guerra ao crime como expediente de capitalização política sobre o medo e a insegurança e, por isso, de legitimação das formas mais agressivas de poder". In Criminologia - O Homeme Delinquente e a Sociedade Criminógena, Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p.414.

35. O Marquês de Beccaria, fundador da escola clássica, foi um dos precurssores dessa discussão, opondo-se de maneira firme às penas cruéis e infamantes que, segundo sua teoria, eram dispensáveis em razão do sofrimento desnecessário que se impunha ao condenado. Beccaria proclamava a utilidade social da pena.

36. É de salientar-se que a criminologia originária, a tradicional, perfilhava-se a uma crença de neutralidade axiológica política. Ao invés de abordar o crime pelo prisma do criticismo, "aceitava positivisticamente a ordem social oficialmente imposta e, por isso, a definição do que é e não é criminalizado (do que deve e não deve ser criminalizado) na base do postulado acrítico de que o crime releva necessariamente das margens de consenso e dos valores fundamentais de colectividade" (Costa Andrade, in O Novo Código Penal e a Moderna Criminologia, publicado nas Jornadas de Direito Criminal, p. 188).

37. Eduardo Correia salienta que a criminologia tenta dar respostas às perguntas referentes ao crime: "O que é ele? Quais as causas que explicam o seu cometimento? Quais as circunstâncias que o favorecem e quais as que o impedem?" (in Direito Criminal, vol. I, p. 3).

38. Ibidem.

39. Ibidem, p. 8.

40. Sobre o caráter de adequação da política criminal, Figueiredo Dias refere que ela "se há-de condicionar estritamente pelo étimo jurídico-político de uma certa concepção do Estado". Mais adiante conclui dizendo que a política criminal é "(…)infra-sistemática relativamente à concepção do Estado, já é, por outras palavras, imanente ao sistema jurídico-constitucional. As proposições político-criminais hão-de ser, também elas, procuradas dentro do quadro de valores integrantes do consenso comunitário e mediados ou «positivados» pela Constituição democrática do Estado" (in "Os Novos Rumos da Política Criminal e o Direito Penal Português do Futuro", Revista da Ordem dos Advogads de 1983, p. 12). Assim, a política criminal a ser aplicada deverá ser coerente com o Estado e suas aspirações no plano político social, representando o mais próximo possível sua realidade. Refletirá também, não resta dúvida, o contexto cultural de um povo.

41. Cfr. Hassemer, in La Ciencia Jurídico Penal en la República Federal Alemana, cit. p. 51.

42. In op. cit., p. 155.

43. O Código Penal português prevê uma série de figuras delituosas que agridem a reserva da vida privada. O art. 192º, v.g., incrimina as mais variadas formas de invasão da intimidade, proibindo as escutas, interceptações ou transmissões de comunicação telefônica; a captação e a divulgação de imagens de pessoas ou de espaços íntimos através da fotografia. O art. 193º proíbe a manutenção ou utilização de "dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas, ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica" através da informática.

44. Faria Costa admite o caráter variável do bem jurídico, dizendo que "o aceitar-se que a descriminalização e a criminalização foram constantes cíclicas do evoluir do direito penal dentro da especificidade que o real histórico lhe ia criando, não supõe uma coincidência acrítica com o evoluir da noção do bem jurídico, nem sequer com os próprios bens jurídicos-penais". (in O perigo em Direito Penal, p. 182).

Figueiredo Dias e Costa Andrade constatam que "Sempre, com efeito, o processo de evolução do direito criminal, correspondente à dialéctica da superação duma definição oficial da realidade por outra, se traduziu em medidas de descriminalização, articuladas com soluções de neocriminalização" (in Criminologia, p. 398).

45. "Hulsman acredita que o sistema penal não é necessário nem bom: para além de produzir sofrimentos, reproduzir e ampliar desigualdades, «rouba os conflitos» às pessoas directamente implicadas.(…)Uma correcta política criminal de resposta às «situações-problemas» deve partir da ideia que estas emergem de conflitos naturais à convivência humana. Devem, por isso, privilegiar-se em absoluto as soluções espontâneas, face-a-face, protagonizadas pelas «directamente implicadas». A enventual intervenção de terceiros deve, na medida do possível, ser confiada a membros da mesma comunidade natural e obedecer à ideia de conciliação. A ser necessário recorrer a soluções jurídicas, estas devem circunscrever-se aos quadros do direito civil e perspectivar-se pelo princípio da «compensação»". Ibidem, pp. 400/401.

46. Costa Andrade afirma que "hoje aceita-se o princípio de que a danosidade social - ou, noutra perspectiva, a lesão (ou perigo) de bens jurídicos - constitui o postulado primeiro da legitimidade da criminalização no contexto do que alguns autores chamam Direito Penal duma sociedade aberta (v.g., ARNDT) e outros Direito Penal de uma sociedade plural (v.g., LISTL)". In O Novo Código Penal e a Moderna Criminologia, Jornadas de Direito Criminal, p 202.

47. Diego-Manuel Luzón Peña traduz Strafwürdigkeit como merecimento de pena, significando que "la conducta del autor merece una pena (por tanto, que la punición es merecida)". In "La relación del merecimiento de pena y de la necesidad de pena con la structura del delito", Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XLVI, fasc. I, ano de 1993, p. 22.

48. Ibidem., p. 22.

Também Costa Andrade refere que "Como Volk recorda, a dignidade penal aparece já com alguma frequência nos tradistas do século passado". In "A dignidade penal e a carência da tutela penal como referência de uma doutrina teleológico-racional do crime", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, 2º, 1992, p. 175.

49. In op. cit., p. 22.

De forma mais simples e direta, pode-se dizer que "só assumem dignidade penal as condutas que lesem bens jurídicos ou, noutros termos, que sejam socialmente danosas". Figueiredo Dias e Costa Andrade, in Criminologia, p. 405.

50. "O conceito de dignidade penal implica, assim, um princípio de imanência social e um princípio de consenso. O primeiro significa que não deve assegurar-se através das sanções criminais a prossecução de finalidades socialmente transcendentes, designadamente moralistas ou ideológicas. O segundo, por seu turno, postula a redução do direito criminal ao núcleo irredutível - se bem que historicamente variável - dos valores e interesses que contam com o apoio generalizado da comunidade". Ibidem, p. 406.

51. In "A dignidade penal e a carência de tutela penal…", já cit., p. 184.

52. É cristalina a lição de Sax quando afirma que a necessidade de tutela penal exprime "o juízo de que, em relação a determinados comportamentos que directa ou indirectamente lesam bens jurídicos, sendo, portanto, dignos de sanção criminal, esta sanção é também de facto o único meio para, de forma eficaz, proteger a ordenação comunitária". Apud Figueiredo Dias e Costa Andrade, Criminologia, p. 407.

53. Cfr. Costa Andrade, in "Dignidade e carência de tutela penal…," p. 186.

54. Cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, in op. cit, p. 221.


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Sobre o autor
Isaac Sabbá Guimarães

promotor de Justiça em Santa Catarina, professor de Direito na UNISUL e na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. A intervenção mínima para um direito penal eficaz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2954. Acesso em: 15 mai. 2024.

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