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Protagonismo infantil no processo político.

As crianças e a elaboração legislativa na virada dos anos 80

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12/07/2009 às 00:00
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Considerações finais

A intensa participação infantil que se deu na época da elaboração do Estatuto, apesar de não se mostrar estável o suficiente, indicou a capacidade de mudanças, as quais podem ocorrer a partir da inclusão das crianças na discussão dos seus próprios assuntos e o seu envolvimento diretamente no processo decisório. Pode-se entender que houve uma alteração, ainda que temporária e pontual, mas em grande escala, na forma de perceber e vivenciar a infância como separada do "mundo dos adultos".

Recentes iniciativas indicam que o Parlamento brasileiro está atento a essa necessidade e propostas como o portal "Plenarinho", mantido pela Câmara dos Deputados, e projetos como o Parlamento Jovem e a realização de sessões com a presença de crianças são um primeiro passo para garantir e perenizar a participação de crianças e adolescentes nos processos decisórios. Nesse contexto em particular, a Psicologia Social e do Desenvolvimento, juntamente com outras disciplinas, tem contribuições valiosas a oferecer com seu aporte teórico-prático à questão.

A ação das crianças no início da década de 80 mostra que alterou-se, ainda que temporariamente, a concepção generalizada do pressuposto de que a criança não estava madura para a vida, e que não estava preparada para opinar sobre os assuntos que lhe dizem respeito, como no caso exemplificado pela atuação dos integrantes do MNMMR. Para isso, foi garantida às crianças a liberdade por meio da livre expressão de idéias e opiniões. O caso ocorrido com o Estatuto da Criança e do Adolescente foi um exemplo da união que abrangeu toda a sociedade brasileira. Nas principais cidades brasileiras, diversos espaços serviram de local para discussão do tema. Caso as escolas tivessem aderido de forma significativa ao processo de discussão, teria sido possível aproveitar o que Ariès (1978) chamou de "quarentena", transformando a reunião diária de crianças em locais de gestão efetivamente democrática, promovendo, efetivamente, a difusão de mensagens culturais afinadas com os valores que sustentam a participação infantil.

Esse exemplo demonstra que, no que toca à promoção da participação infantil, as relações de poder que se estabelecem na escola podem variar, canalizar, mas nunca impedir que sejam promovidos, de fato, os diversos níveis de participação (HART, 1997; SHIER, 2001) nos projetos coletivos.

Nesse contexto, promover a participação infantil significa investir na autonomia e na capacidade de autoconstrução e auto-regulação de subjetividades. Promover a participação infantil não é incentivar o surgimento de pessoas rebeldes e desordeiras e nem significa a submissão incondicional dos adultos à vontade das crianças. Raciocinar desta forma seria apenas inverter a situação entre oprimidos e opressores sem que houvesse qualquer ganho para a coletividade. Promover a participação é experimentar um sistema complexo de interações que se configura em torno da iniciativa, das responsabilidades compartilhadas e, principalmente, do compromisso que grupos de pessoas, crianças e adultos, podem assumir durante a condução do processo decisório de da realização das ações de um determinado projeto.

No entanto, é necessário notar que os valores que organizaram a separação do mundo entre crianças e adultos não facilitam este tipo de configuração e compartilhamento de responsabilidade e compromissos. Assim sendo, há que se empreender ações de participação de diferentes naturezas e mobilizar recursos diversos que, de fato, impliquem em mudanças qualitativas significativas do status quo das instituições. Uma delas é o estímulo e a abertura concreta de possibilidades de participação ativa por parte das crianças nos processos decisórios. Ainda que em um contexto hostil caracterizado por uma cultura opressiva, a participação infantil representa um grande potencial para a realização de transformações socioculturais importantes, como exemplificado pela participação dos representantes do MNMMR de 1987 a 1990. Afinal, a dinâmica social nos dias atuais se caracteriza pela disponibilização contínua de diversos referenciais simbólicos, geradores de uma multiplicidade de orientações para crenças e objetivos. É a própria presença desta pluralidade que, ao se contrapor à hegemonia, abre espaço para mudanças e transformações fundamentais à própria sociedade.

Uma abordagem sociocultural construtivista nos permite, assim, compreender o próprio desenvolvimento do conceito de infância no contexto das sociedades e valorizar a capacidade das crianças em participar dos processos decisórios. É necessário, pois, refletir de forma mais profunda em como a adoção de novos critérios de infância poderá promover maior aproximação entre crianças e adultos e suas formas de compartilhar projetos, responsabilidades e compromissos. Superar a concepção da incapacidade e da incompletude será fundamental aspecto para que a participação infantil se torne uma realidade social.

Afortunadamente, o fenômeno da canalização cultural que atualmente favorece a apatia em relação às questões sociais e práticas culturais ultrapassadas também pode favorecer outros cenários nos quais poderá predominar a ênfase na agência e criatividade dos sujeitos, na disponibilização de multi-referenciais simbólicos e existência de espaços de diálogo para uma ampla comunicação entre os integrantes da cultura, no sentido de promover a participação democrática de todos e, em especial das crianças que, segundo a perspectiva sociocultural construtivista, podem desempenhar um papel importante nos processos decisórios e para as decisões políticas.


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Notas

  1. Co-construção - É uma palavra que encerra significado complexo sob o ponto de vista de uma abordagem sociocultural construtivista. Em síntese, representa a elaboração de significados em um sistema de tensões entre os pontos de vista de indivíduos entre si e entre os significados que estão coletivamente negociados e culturalmente disponíveis, podendo resultar em mudanças de todos os vetores iniciais ou mesmo o surgimento de novos significados. Ocorre de forma singular no tempo e no espaço, promovendo uma dinâmica contínua de alterações nos processos de significação que se dão em nível individual e coletivo.
  2. O primeiro Código de Menores foi inspirado no Código Penal de 1890, e vigorou por 60 anos, quando sofreu, em 1979, uma reformulação, na qual se introduziu a doutrina da situação irregular do menor, não se alterando, contudo, a concepção de criança e do adolescente como menor abandonado e delinqüente.
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Sobre o autor
Sergio Fernandes Senna Pires

Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, Psicólogo, Bacharel em Ciências Militares e Doutor em Psicologia pela Universidade de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Sergio Fernandes Senna. Protagonismo infantil no processo político.: As crianças e a elaboração legislativa na virada dos anos 80. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2202, 12 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13140. Acesso em: 4 mai. 2024.

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