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Soberania, constitucionalismo e mundialização do Direito

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Concepções clássicas sobre soberania

No nascedouro, o conceito de soberania era flexível diante do direito das gentes. Essa constatação surge quando se estuda o fenômeno a partir da doutrina de Frei Francisco de Vitoria (1492-1546), teólogo renascentista dominicano nascido na Espanha. É considerado por muitos o pai do Direito Internacional Moderno, por ter sido o primeiro a traçar diretrizes sobre a "guerra justa", antecipando-se às idéias de Hugo Grotius. Vitoria trabalhou a dimensão externa da soberania e suas idéias, neste particular, serviram de justificativa teórica para a conquista e colonização da América pelos espanhóis, redundando no genocídio sobre os indígenas que habitavam o novo mundo. Apesar da sua doutrina se ligar a essa atividade de conquista, o autor defendia uma ordem mundial configurada como sociedade natural de Estados soberanos, onde o Direito Internacional, conjugação das vontades estatais, prevalece sobre o direito interno. [12]

A doutrina vitoriana foi inovadora em vários pontos, seja na formulação da idéia de communitas orbis, seja na criação de limites mais racionais para a guerra, ainda que não totalmente desvinculadas de misticismo religioso (o direito de expandir a fé católica, catequizando indígenas, era encarado como natural).

Hugo Grotius (1597-1645) marchou rumo à total secularização, tendo a seu crédito o fato de ter formulado pela primeira vez, ainda que cautelosamente, a "hipótese impiíssima" de prescindir do papel constituinte de Deus na formação de um direito do gênero humano; o qual, portanto, teria vigência ‘etiamsi daremus Deum non esse’. [13]

Na Europa Ibérica a preeminência da fé cristã, sobretudo personificada no catolicismo, tinha passado a ser contrastada por um fundamento religioso diverso e não tão irrisório, em termos de força, como aquele encontrado nas lutas de conquista do novo mundo. A ética muçulmana tinha colocado a Europa ibérica na condição de conquistada, e com isso era preciso tecer fundamentos mais utilitaristas para a "guerra justa", uma vez que o direito natural de expansão do cristianismo, ainda que presente no pensamento dos cruzados, estava órfão de uma doutrina racional que englobasse esses novos acontecimentos.

Jean Bodin fixou, antes mesmo de Grócio, um conceito absoluto para a soberania. Formulou definição segundo a qual a soberania seria o poder absoluto e perpétuo de uma República. A principal inovação de Bodin situou-se em identificar o Estado soberano como sujeito e único titular do poder político. A definição de Estado é, assim, jurídico-política, e permite diferençar o soberano do governo, distinguindo a fonte do poder do seu exercício material, algo como um protoparlamentarismo. A soberania, distanciada da responsabilização por atos de governo, concebe-se como o princípio de independência e onicompetência do Estado moderno.

O filósofo reporta-se à tradição monárquica da França e distingue, escrupulosamente, a forma de governo da forma de estado. A primeira está submetida a controle. Já a segunda, essência da República, identifica-se com o Rei e qualquer que seja o regime deve ser designada como potência soberana que, em si, é uma summa potestas. A substância da República precisa sempre da forma soberana.

A concepção de soberania em Bodin tem por marca, no âmbito das relações internacionais, a ilimitação. Os Estados têm poder de autodeterminação absoluto, de maneira que no relacionamento com outros Estados não há necessidade de respeito a preceitos não positivados. Trata-se do paradigma vestfaliano de 1648, segundo o qual a discricionariedade dos Estados na escolha de suas opções diplomáticas é incondicionada, não existindo crivo a ser colocado sobre a decisão tomada por um país. [14]

Bodin era adepto da metafísica cosmológica dos Gregos, presente no pensamento aristotélico. Hobbes, pelo contrário, considera que somente existe Estado soberano por força de um projeto racional e físico (uma vez que puramente humano). Ora, o contratualismo tem justamente essa base, ou seja, a idéia de soma de poderes individuais confiados ao Leviatã diretamente ou por delegação representativa.A soberania do Estado é útil porque é antagônica à beligerância do Estado de Natureza. Essa visão de poder pacificador é necessária para contenção do caos social, numa visão de certa forma proto-utilitarista. A soberania, para Hobbes, é daqueles que firmam o pacto inicial do Estado – o povo - e não do monarca.

O contratualismo prosseguiu com Rousseau, que varreu em definitivo a idéia de soberania dos príncipes. Desvendar o significado da soberania popular de Rousseau é, no entanto, tarefa um pouco complexa. No Contrato Social Rousseau nos revela que o homem é bom, tanto que a sua involuntária permanência no estado de natureza (a guerra de todos contra todos) é, para os mesmos, um prejuízo à sua conservação. De maneira que:

"como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo". [15]

O produto desta soma de forças é o Estado, que através da soberania, característica indissoluvelmente ligada ao seu elemento humano, persegue o bem comum. Esse acordo entre pessoas que se identificam por vínculos geográficos, genealógicos e naturais, chamado pacto social, faz nascer o Estado. O poder que faz esse parto está na vontade coordenada da coletividade dos indivíduos, chamada vontade geral. A volonté genérále, procedente do conjunto social, é que faz da multidão povo. Ela é a soma de forças populares e pode ser identificada como a própria soberania, por isso designada de popular.

A natureza da soberania só pode derivar do procedimento contratual segundo o qual a multidão, unanimemente, substitui as vontades particulares pela vontade geral: a essência da soberania se identifica então com a vontade geral. [16] A soberania popular de Rousseau é, portanto, o exercício da vontade geral. Essa é, a nosso ver, sua principal contribuição teórica.

Outra contribuição marcante de Rousseau foi a caracterização da soberania popular, que no seu entender seria inalienável e incomunicável, ou seja, teria de haver uma forma de expressão direta da soberania do povo, não nos moldes das democracias diretas atenienses, o que seria hipótese pouco prática fora de uma cidade-Estado, mas partindo de uma formulação que afastasse o regime representativo, uma vez que para Rousseau"não sendo a soberania senão o exercício da vontade geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais é senão um ser coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível transmitir o poder, não porém, a vontade". [17]

Pensamos que as lições de Rousseau relativas à inalienabilidade da vontade geral denotam a simples impossibilidade de distanciamento entre a volição dos que exercem o poder e o querer dos cidadãos, numa interpretação extremamente atual. O governante está sempre vinculado ao titular do poder, sob pena da ilegitimidade do seu governo, que pode findar mesmo antes do final da legislatura [18].

Podemos salientar que Rousseau deitou por terra toda a base filosófica e política do antigo regime, ao proclamar que as leis, sendo atos constituídos pela vontade geral, são impessoais e abstratas. O direito, estando acima do titular do poder, submete mais ainda o monarca, que não é titular de nada, tirando seu mando da vontade geral, ou nas próprias palavras do filósofo:

"Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os vassalos em corpo e as ações como sendo abstratas, jamais um homem como indivíduo, nem uma ação particular" e na mesma página, relativamente à submissão de todos à soberania popular, expressada através das leis, ponderou "que quem se recusar a obedecer à vontade geral a isto será constrangido pelo corpo em conjunto, o que apenas significa que será obrigado a ser livre". [19]

Rousseau definiu o Estado Democrático de Direito, no sentido até hoje conhecido, onde o direito vincula, em termos isonômicos, governantes e governados, e onde o ordenamento tem no povo a sua fonte, sendo abstrato e impessoal. Isso foi muito importante sob ótica interna, pois abriu caminho definitivamente para a limitação do poder em face da necessidade de obediência ao princípio democrático. Se a soberania de um Estado pertence aos cidadãos, a autoridade constituída está automaticamente limitada no exercício deste poder, não podendo violar as liberdades individuais daqueles que representam as partes do contrato social.

Mas será que a soberania contratualista guardava alguma limitação no plano do direito internacional, ou nesse aspecto ela era tão absoluta e ilimitada quanto a defendida por Bodin? É difícil encontrar em Hobbes e Rousseau passagens em que reste explícita uma limitação da soberania no plano internacional, mas tomando a concepção contratualista como conjunto podemos afirmar que a gênese desta doutrina traz influências de cunho jusnaturalista, o que pode revelar a necessidade de observância a parâmetros mínimos, pelo Estado, no exercício da sua autodeterminação.

Sieyès também defende que a soberania pertence ao povo, mas este, após o pacto social, transmuta-se em nação a partir da obediência a uma lei comum e suprema: a Constituição do Estado. A nação é uma categoria definida por Sieyès como sendo "um corpo de associados vivendo sob uma lei comum e representados por uma mesma legislatura". [20] A soberania é o fundamento que cria o Estado.

Não existe Estado sem uma lei comum que seja a expressão, dogmática ou não, de como o Estado é, a sua maneira de ser. Desta forma, um mesmo território poderia servir de abrigo a vários Estados numa cronologia temporal, bastando para isso que houvesse uma sucessão de Constituições.

A idéia de representação em Sieyès é conecta com uma soberania limitada. O filósofo francês não adota a idéia de mandato, delegação, procuração, tal como vemos na atualidade. Ao contrário disto, deveria haver uma total independência entre o dirigente e o povo, sem sistemas de controle. Este controle sobre o governante adviria unicamente da Constituição do Estado, produto de uma nação soberana.

A soberania popular e o poder constituinte originário se confundem, mas este último sairia de cena ao cumprir a sua missão, consubstanciada na elaboração da Constituição do Estado. Assim, o poder popular permaneceria latente após a promulgação da Carta Política e as suas formas de expressão após esse momento seriam, por decorrência, limitadas (poder constituinte derivado).

A Constituição, expressão maior e primeira da soberania popular, teria por missão proteger os direitos individuais contra a ação dos governantes, preservando a liberdade pessoal. Há, portanto, uma limitação aos poderes constituídos no plano internacional, pois o Estado não poderia fazer valer, em seu território, tratados que contrariassem os preceitos da Constituição, pois esta norma seria o produto do poder constituinte originário, tido por inicial, ilimitado e incondicionado.

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O caráter inicial deste poder está no fato de que ele inaugura o ordenamento jurídico. A entrada em vigência da Constituição revoga todos os atos normativos estatais pretéritos e impõe a compatibilidade de todas as normas estatais futuras, sob pena de ter-se que expurgar forçadamente os preceitos incongruentes sob ótica formal ou material.

Conforme lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: "o Poder Constituinte edita atos juridicamente iniciais, porque dão origem, dão início, à ordem jurídica, e não estão fundados nesta ordem". [21]

Assim, o poder constituinte é uma forma originária de construção do Estado, tanto assim que a Constituição não retira fundamento de validade em nenhuma outra norma precedente. Conforme nos ensina Anna Cândida da Cunha Ferraz, o poder constituinte de Sieyès tem essas características, uma vez que"cria a ordem jurídica, não havendo direito, antes dele, que possa limitá-lo ou condicioná-lo". [22]

Nas últimas décadas, contudo, o caráter ilimitado do Poder Constituinte Originário tem se relativizado por alguns novos personagens, entre os quais podemos destacar o chamado poder constituinte supranacional, que se baseia na outorga de competências estatais a entidades ou organismos internacionais. Da mesma forma, a fixação de um padrão ético universal entre os povos revela a necessidade de submeter o poder constituinte originário a certos valores atemporais e universais – como a liberdade, dignidade do homem, democracia, vida. Seria absurdo, por exemplo, que a Constituição estabelecesse uma sanção premial para todos que praticassem homicídio, pois a preservação da vida é uma premissa natural para todo e qualquer ordenamento. Prova-se, assim, que o poder constituinte originário não é, de maneira alguma, ilimitado.


O constitucionalismo de ontem e hoje

O constitucionalismo liberal rompe com o absolutismo monárquico. O crescimento econômico da Europa favorece o nascimento de novas classes além das que compunham o primeiro e segundo Estados (nobreza e clero). A burguesia, formada por comerciantes prósperos, rompe o delicado equilíbrio dos estamentos e reivindica para si participação nas decisões políticas. Some-se a esse quadro o humanismo iluminista e o anseio de retorno a uma justiça natural típica do medievo. [23]

Na tradição absolutista os assuntos de Estado (gubernaculum) se resolvem de maneira discricionária, e não por lei, sendo confiados à sabedoria e prudência do monarca. Acumulam-se na figura do soberano tanto o assunto de Estado como o poder de dizer e aplicar a lei (iurisdictio). A coexistência destes dois poderes numa mesma figura entra em crise a partir do final do século XVII. Ainda na idade média se reforça a necessidade de separação entre as funções de Chefe de Estado e de criador da lei (gubernaculum x iurisdictio). Aos estamentos sociais deve ser dado poder de crivo sobre as opções políticas do monarca. Cria-se a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns na Inglaterra.

Essa divisão do poder, institucionalizada com o surgimento do parlamento inglês, representa o ataque primeiro e mais importante ao exercício absoluto do poder pela monarquia e resultou num primeiro modelo de separação de poderes. Esse paradigma se propagaria por todo o ocidente a partir da influência capitaneada pela defesa doutrinária de Montesquieu, ainda que os outros países passassem a adotar a divisão do poder sob fórmula distinta da estruturada na Inglaterra.

O parlamento, na monarquia constitucional inglesa, passa a impor normas que limitam o poder real, garantindo direitos individuais, entre os quais os petition of right, de 1628, e o Habeas Corpus Act, de 1679. Para se manter e fazer com que haja paz e progresso a monarquia inglesa admite essas declarações de direitos, num sistema de equilíbrio constante baseado num consenso possível. Conforme José Levi do Amaral Júnior "A democracia parlamentar começa a tomar forma na Idade Média. Evolui por meio da adoção de mecanismos de limitação e de controle político do poder real. Os parlamentos surgem para limitar e controlar o poder do rei". [24]

No mesmo sentido é a lição de Raul Machado Horta:

Há relação de causalidade entre monarquia constitucional e regime parlamentar. O processo histórico de redução e de controle dos poderes do Monarca e o concomitante fortalecimento dos poderes do Parlamento conduziu ao nascimento do regime parlamentar. A trajetória desse processo é identificável na Inglaterra, nos fins do século XVIII, e nas monarquias constitucionais do século XIX. A institucionalização do poder monárquico nas regras constitucionais preparou o terreno para a implantação do regime parlamentar. [25]

Assim, há uma paulatina mudança na titularidade da soberania na Inglaterra, que passa do Monarca ao Parlamento. Na França, o processo de limitação do poder real foi posterior e mais traumático, resultando de uma reação burguesa à concentração de poder nas mãos do Rei, que contava com o apoio do clero. A bandeira das liberdades individuais foi utilizada para fazer valer o liberalismo, conveniente à classe que passava a deter o poder econômico e pregava um Estado não intervencionista. O processo revolucionário francês redunda na Constituição de 1791, mas a sua importância maior não está em seus resultados, mas na aplicação prática da filosofia iluminista. As conquistas liberais defendidas por Robespierre e Danton não perduram, pois a ditadura napoleônica sucede o quadro revolucionário. Isso significa o retorno a uma situação de concentração de poder. A mudança está apenas em quem a carrega consigo: se antes havia uma monarquia absoluta, após a Revolução Francesa estrutura-se um governo militar também absoluto.

De toda forma, o constitucionalismo, seja na França ou na Inglaterra, baseou-se numa pretensão de controle do governante. Sob ótica política podemos entender o fenômeno como ligado à correta e legitima forma de se decidir, atendo-se à preservação dos direitos estampados na Constituição, que preservam a liberdade contra o poder arbitrário. [26]

O seu aspecto jurídico nos é revelado na pregação de um sistema dotado de um corpo normativo máximo, que se encontra acima dos próprios governantes – a Constituição. O objetivo é impedir o exercício absoluto do poder, de maneira que seja vedado ao governante fazer valer seus próprios interesses e regras na condução do Estado. [27]

É possível elegermos algumas características que nos levem a reconhecer o fenômeno constitucional. Entre elas podemos citar a existência de um núcleo de direitos civis que devem ser respeitados e assegurados pelo governo; a prevalência da soberania popular; supremacia e rigidez da Constituição; sistema democrático; divisão e limitação do poder; caráter impessoal e abstrato das leis e instituições que monitorem e assegurem o respeito à Constituição. [28]

O século XIX constituiu-se num período de vivência e aprofundamento do liberalismo construído no século anterior. Esse aprofundamento redundou num período de constituições rígidas que, nas palavras de Paulo Bonavides, traduziam um sentimento de profunda e inevitável desconfiança contra o poder, aquela desconfiança ou suspeita clássica do liberalismo com sua doutrina de valorização da sociedade burguesa e individualista [29].

As constituições do positivismo foram as que se espalharam nos países de sistema romano-germânico durante o século XIX, a exemplo da Lei Fundamental Belga, de 1832. A população internalizava a suprema garantia representada pela Constituição e, a conta disto, omitia-se em cobrar efetividade às suas normas.

Os postulados liberais passam a sofrer deturpação e o que antes gerava a paz de espírito nos povos transforma-se em mera folha de papel. A Constituição burguesa embebe-se de anticoletivismo, transformando-se em expressão escrita de forças econômicas e políticas imbuídas do único propósito de manter um Estado omisso em integrar grupos marginalizados.

O reflexo visível desta crise estampa-se na exploração trabalhista que pontua a revolução industrial inglesa e no fortalecimento de pseudodemocracias em Estados periféricos, entre os quais o Brasil recém-independente. Reações acadêmicas são produzidas. Ferdinand Lassale, Carl Schmitt e Hans Kelsen trazem novos e diferentes sentidos ao constitucionalismo.

O sociologismo e o decisionismo marcam distinção entre Constituição formal e material. No pós-liberalismo revela-se a positivação de direitos fundamentais de segunda geração, prática inaugurada com a Constituição Mexicana de 1917 [30]. Hans Kelsen define quem deve ser o "guardião da Constituição", fixando as bases da jurisdição constitucional concentrada.

Em reação ao positivismo dos oitocentos, a teoria material afirma que a produção do constituinte é questionável, pois o valor e a durabilidade da Constituição formal dependem da sua congruência com os fatores sociais subjacentes, ou seja, com a Constituição real. Havendo choque entre as duas, deve-se descumprir a Constituição formal. Essas idéias foram lançadas por Ferdinand Lassale durante palestra proferida em 1863 para intelectuais e operários da antiga Prússia, onde questionou sobre qual era a essência da Constituição. Para o autor francês os problemas constitucionais não consistem em problemas de direito, mas de poder, estando ligados à sociologia.

Parte-se da premissa de que ordenamento e realidade devem ser mutuamente condicionados, pois a pretensão de eficácia jurídica está ligada às condições sociais, bem como ao que o autor chama de substrato espiritual de determinado povo, que são os valores que influenciam a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas. A Constituição visa imprimir ordem e conformação à realidade política e social, devendo guardar congruência com essa realidade. [31]

Aprofundando o sociologismo de Lassale, Konrad Hesse explica que a eficácia da Constituição se encontra ligada à sua correspondência em relação aos elementos sociais, políticos, econômicos e ao estado espiritual do presente. Para que a Constituição possa se adaptar às mudanças que tipicamente ocorrem nos fatores reais de poder, deve-se limitar o texto constitucional a alguns poucos princípios fundamentais. [32]

As freqüentes reformas diminuem a força normativa da Constituição, o que compromete a sua estabilidade. A problemática da Constituição real e da Constituição de papel liga-se à diferenciação entre Constituição material e Constituição formal. A primeira pode ser compreendida em duas acepções. Uma ampla, identificada com a organização do Estado: "significa a situação total da unidade e ordenação política, ou a concreta situação de conjunto da unidade política e ordenação social de determinado Estado". [33] Na acepção restrita, Constituição material significa o conjunto de preceitos escritos que regulam a estrutura estatal, sua organização política e os direitos fundamentais.

A sociologia constitucional de Lassale significou um reencontro do Estado com a sociedade, elementos separados pelo individualismo burguês. Lassale fincou o marco a partir do qual se inicia a discussão sobre a constitucionalização de direitos coletivos. Restringir o texto a um conteúdo liberal negativo (é vedado ao Estado) torna-se algo que não satisfaz completamente os anseios sociais. É necessário impor comportamentos positivos ao Estado em relação à consecução de seu fim maior, qual seja: a busca pelo bem comum.

A Constituição passa a ser vista como uma obra que representa uma opção política da sociedade. A este respeito impende ressaltar a contribuição teórica de Carl Schmitt, cujo conjunto do pensamento sobre a Constituição e o Direito Constitucional se encontra exposto na Teoria da Constituição, sua obra mais sistemática. [34] Schmitt nos revela que a Constituição em seu sentido positivo é a decisão quanto ao modo e à forma de existência de uma determinada comunidade ou unidade política. [35] A Constituição significa uma decisão conjunta e fundamental sobre o modo e a forma de unidade de um povo. [36]

Diferentemente da Constituição em sentido positivo, a lei constitucional caracteriza-se por não conter nenhuma decisão fundamental acerca da forma e modo de existência política de uma comunidade. A lei constitucional poderá vir a ser uma norma constitucional simplesmente em função de sua inserção no corpo de um documento constitucional, sendo constitucional em razão da forma e não em razão de seu conteúdo.

Carl Schmitt filiou-se ao partido nacional-socialista alemão por convite do filósofo Martin Heidegger, mas é importante assinalar que a adesão de Schmitt ao regime de Hitler se deu em meio a uma série de expurgos que varreram cerca de 11% dos professores das universidades alemãs, dentre eles vários juristas, como Hermann Heller, Hans Kelsen e Gustav Radbruch. A filiação partidária lhe permitiu manter contatos freqüentes com membros do alto escalão do partido nazista, tais como Hermann Göring, Joseph Göebbels, Rudolf Hess e Heinrich Himmler. Schmitt manteve, em aparente contradição política, amizade com intelectuais judeus como Hugo Preuss, Walter Benjamin e Fritz Eisler – a quem dedicou a sua "Teoria da Constituição".

Muito se discutiu sobre o envolvimento do autor com o regime nazista, mas alguns, como Raymond Aron, defendem que isso não reflete a realidade. [37] Não há dúvidas, contudo, de que Carl Schmitt contribuiu para o exercício arbitrário do poder na Alemanha. Essa contribuição está na idéia de que a guarda das garantias políticas expressas na Constituição não poderia caber, por afronta à soberania popular, ao poder judiciário. Ao invés da fórmula americana, de base jurisdicional, a função de controle dos atos legislativos e governamentais contrários à Constituição caberia, na visão de Schmitt, unicamente ao chefe de Estado, num resgate republicano da teoria do poder neutro do monarca, doutrina estruturada por Benjamin Constant na primeira metade do século XIX. [38]

Ora, tal assertiva era extremamente condizente com a doutrina do partido nacional-socialista alemão, que cada vez mais era uma agremiação governante centralizada na pessoa do führer. Uma vez que coubesse ao chefe de Estado a interpretação prática da Constituição, estaria aberta a possibilidade de um neo-absolutismo republicano, o que realmente veio a ocorrer.

A reação a este ponto da doutrina de Schmitt não tardou, e veio capitaneada por Hans Kelsen, jurista austro-húngaro que foi expurgado das universidades alemãs durante o regime nazista e que operou uma revolução no constitucionalismo europeu do pós-guerra. Em texto publicado numa revista de direito, em 1930, Kelsen pondera que a função política da Constituição é estabelecer limites jurídicos ao exercício dos poderes estatais. Desta forma, ao contrário do que pregava Schmitt, o controle dos atos emanados do parlamento e do governo não poderia ficar a cargo de quaisquer das funções estatais típicas. Essa tarefa deveria ser exercida por um órgão independente e que tivesse por única missão o cotejo de compatibilidade entre a Constituição e os atos infraconstitucionais. [39]

Tornaram-se clássicas algumas passagens em que o jurista de Viena critica a posição de Schmitt:

"É pois surpreendente o fato de uma nova coleção de monografias sobre direito público, as ‘Contribuições para o direito público da atualidade’, iniciar sua série com um trabalho que, com o título ‘O guardião da Constituição’ (Der Hüter der Verfassung), está dedicado justamente ao problema da garantia da Constituição. Mais surpreendente ainda, porém, é que esse escrito tire do rebotalho do teatro constitucional a sua mais antiga peça, qual seja, a tese de que o chefe de Estado, e nenhum outro órgão, seria o competente guardião da Constituição, a fim de utilizar novamente esse já bem empoeirado adereço cênico na república democrática em geral e na Constituição de Weimar em particular. O que mais admira, porém, é que o mesmo escrito, que pretende restaurar a doutrina de um dos mais antigos e experimentados ideólogos da monarquia constitucional – a doutrina do ‘pouvoir neutre’ do monarca, de Benjamin Constant – e aplicá-la sem qualquer restrição ao Chefe de Estado Republicano, tenha como autor o professor de direito público na Berliner Handelshochschule, Carl Schmitt, cuja ambição é mostrar-nos ‘o quanto muitas formas e conceitos tradicionais estão estreitamente ligados a situações passadas, não sendo hoje mais nem sequer ‘vinho velho para odres novo, mas sim apenas rótulos falsos e antiquados’, e que não se cansa de lembrar ‘que a situação da monarquia constitucional do século XIX, com sua separação entre Estado e sociedade, política e economia, encontra-se superada’ e que portanto as categorias da teoria do Estado constitucional não são aplicáveis à Constituição de uma democracia parlamentar-plebiscitária como a Alemanha de hoje". [40]

Mais adiante Kelsen pondera sobre a assertiva de Schmitt de que o controle de constitucionalidade caberia ao chefe de Estado, afirmando que tal idéia é contrária à própria letra positiva da Constituição:

"(...) Essa fórmula de Constant torna-se, nas mãos de Schmitt, um instrumento capital para sua interpretação da Constituição de Weimar. Somente com esse auxílio ele consegue estabelecer que o ‘guardião da Constituição’ não seja, digamos – como se poderia supor a partir do seu art. 19 -, o Tribunal Federal ou outro Tribunal, mas sim apenas o presidente do ‘Reich’, e isso já com base na própria Constituição em vigor, e não, por exemplo, depois de uma reforma constitucional". [41]

Kelsen acrescenta, tecendo já características para o tribunal constitucional, que ele deve ser o verdadeiro guarda da Constituição, desempenhando uma tarefa distante das funções típicas do Estado:

"Para sustentar a tese de que o presidente do ‘Reich’ seria o guardião da Constituição, Schmitt tem que se voltar contra a instituição, freqüentemente reclamada e em muitos Estados também concretizada, de uma jurisdição constitucional, ou seja, contra a atribuição da função de garantia da Constituição a um tribunal independente. Este funciona como um tribunal constitucional central na medida em que, num processo litigioso, deve decidir sobre a constitucionalidade de atos do parlamento (especialmente leis) ou do governo (especialmente decretos) que tenham sido contestados, cassando tais atos em caso de sua inconstitucionalidade, e eventualmente julgando sobre a responsabilidade de certos órgãos colocados sob acusação. Pode-se certamente discutir sobre a conveniência de tal instituição, e ninguém afirmará que se trata de uma garantia absolutamente eficaz em qualquer circunstância. Mas de todos os pontos de vista segundo os quais se possa debater o problema político-jurídico de um tribunal constitucional central e estabelecer seus prós e contras, um ponto é de fato insignificante: o de se tal órgão seria um ‘tribunal’ e sua função verdadeiramente ‘jurisdicional’". [42]

Assim, passados mais de duzentos anos que o princípio da supremacia da Constituição havia sido proclamado nos Estados Unidos da América, em que se estruturou um controle dos atos políticos de maneira difundida por todo o poder judiciário (controle jurisdicional difuso), a Europa inicia a estruturação do seu modelo de controle concentrado em um órgão independente dos poderes estatais (controle político): o Tribunal Constitucional. A primeira Constituição a abrigar as idéias de Kelsen sobre o controle por um órgão central foi a Carta da Áustria, de 1920. Órgãos semelhantes encarregados do controle de constitucionalidade foram também criados na Tchecoslováquia em 1920; na Espanha democrática em 1978; Itália em 1947; Chipre, 1960; Turquia, 1961; Iugoslávia, 1963; Guatemala, 1965 e Chile, 1925. [43]

A jurisdição constitucional é necessária, na visão de Kelsen, para fixar um sistema que garanta a Constituição, no sentido de manter a regularidade das regras imediatamente subordinadas à Lei Fundamental. A noção hierarquizada do ordenamento decorre dos diferentes níveis de aplicação do direito patrocinados pelo Estado. A Constituição é o primeiro destes níveis, pois carrega em si uma idéia de princípio supremo determinando a ordem estatal inteira e a essência da comunidade constituída por essa ordem.

Como a atividade de controle encerra a contrariedade de interesses políticos, inclusive com a atividade de responsabilização constitucional e civil dos órgãos que viessem a produzir atos irregulares, ao Tribunal Constitucional devem ser outorgadas garantias pela própria Constituição. Entre estas garantias impende frisar as que são consideradas por Kelsen como típicas da jurisdição: inamovibilidade e irredutibilidade de proventos. Contudo, a preocupação maior deve ser com a garantia de independência, que envolve a forma de escolha dos membros do Tribunal Constitucional. Uma parte das vagas deve ser preenchida por eleições realizadas pelo parlamento, enquanto outras seriam preenchidas por indicação dos próprios membros que já integrem o Tribunal Constitucional e, por último, para manutenção de condições técnicas, deveria haver o preenchimento das demais vagas através do recrutamento de juristas em Faculdades de Direito.

No Brasil adotou-se um modelo híbrido de repressão aos atos inconstitucionais. Trata-se de uma junção de características do critério difuso e concentrado. Alguns problemas se verificam. A decisão tomada na via difusa não opera os efeitos gerais e vinculantes próprios de um sistema de common law, onde a jurisprudência é fonte formal do direito. Isso pode ensejar uma afronta à isonomia material, uma vez que as decisões judiciais brasileiras podem ser diferentes para uma mesma situação. O controle concentrado é feito pelo Supremo Tribunal Federal, que integra o poder judiciário, tem ministros não eleitos e desempenha outras missões além do controle de constitucionalidade. Desta maneira, a Excelsa Corte brasileira não possui os requisitos exigidos por Hans Kelsen para um Tribunal Constitucional.

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Sobre o autor
Álvaro Osório do Valle Simeão

Advogado da União. Professor de Direito Constitucional - Unieuro/DF. Especialista em Processo Civil - UCAM/RJ. Mestrando em Direito Internacional - Uniceub/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIMEÃO, Álvaro Osório Valle. Soberania, constitucionalismo e mundialização do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1831, 6 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11403. Acesso em: 7 mai. 2024.

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