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Abuso de direito processual na jurisprudência do STJ

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03/03/2008 às 00:00
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4. DO ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ

Desde a vigência do atual Código Civil, tem aumentado sobremaneira as referências ao abuso de direito na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Tal constatação reflete o que já mencionamos alhures como sendo uma das vantagens de se positivar expressamente a teoria do abuso de direito, qual seja, a maior facilidade de compreensão e aplicabilidade do instituto repressivo às condutas desleais e contrárias à boa-fé objetiva.

Ocorre que, analisando minuciosamente os julgados do Superior Tribunal de Justiça, chegamos à conclusão de que quando o abuso de direito é referido como razão de decidir acerca de alguma questão estritamente processual, em verdade, a discussão não deveria mirar na teoria do abuso de direito processual, pois que bastaria perquirir acerca dos ilícitos "não-abusivos" já tipificados pela legislação.

Já dissemos que a teoria do abuso de direito processual tem caráter subsidiário e deve ser usada tão-somente quando não houver norma expressa proibindo a conduta processual que, em que pese tal lacuna, é ilícita em decorrência de sua contraposição ao princípio da boa-fé.

Doravante, serão analisados alguns julgados sobre o tema para que fique mais clara a desnecessidade de o Superior Tribunal de Justiça ter se utilizado da teoria do abuso de direito processual como razão de decidir. Outrossim, cabe salientar que não foram analisados os julgados que tratam do abuso de direito material, mas tão-somente aqueles que tratam de algum tema de direito processual.

O primeiro acórdão a ser analisado foi proferido no AgRg no Ag 877508/RS, no qual se afirmou que não seria o caso de aplicação da sanção (multa) prevista no parágrafo único do art. 538 do Código de Processo Civil para os casos em que há interposição de embargos de declaração com intuito manifestamente protelatório, sob a justificativa contraditória de que não teria havido "abuso do direito de recorrer" no caso sub judice, senão vejamos:

Ementa: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. MULTA POR PROTELAÇÃO. AFASTAMENTO. SÚMULA 98/STJ. MILITAR. JUROS DE MORA. AÇÃO AJUIZADA APÓS A EDIÇÃO DA MP 2.180-35/2001. PERCENTUAL DE 6% AO ANO. RECURSO PROVIDO.

1 - Consoante entendimento pacificado nesta Corte Superior de Justiça, é descabida a aplicação da multa prevista no art. 538, parágrafo único, do CPC, se os embargos de declaração foram opostos, uma única vez, com nítido propósito de prequestionamento, não havendo que se falar, desse modo, em abuso do direito de recorrer, tampouco em caráter protelatório (Súmula 98/STJ).

2 - Proposta a ação de conhecimento em data posterior à edição da MP 2.180-35/2001, o percentual dos juros moratórios deve ser fixado no patamar de 6% ao ano, por incidência do art. 1º-F da Lei 9.494/97.

3 - Agravo interno provido.

(STJ, AgRg no Ag 877508 / RS, Rel. Min. Jane Silva - Desembargadora convocada do TJMG, Quinta Turma, DJ 17.12.2007 p. 307)

Pois bem, infere-se que o Código de Processo Civil tipificou claramente o ilícito de interposição de embargos declaratórios com intuito manifestamente protelatório, ou seja, não há necessidade de se buscar na teoria do abuso de direito processual a justificativa para a repressão a tal conduta.

Daí que o Superior Tribunal de Justiça foi extremamente contraditório em tal julgado, pois não há como uma conduta ser considerada um "ilícito não-abusivo" (previsto no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil) e, ao mesmo tempo, também ser um "ilícito abusivo" (abuso do direito de recorrer).

Noutra oportunidade, ao julgar o AgRg no REsp 946499/SP, houve novamente desnecessária remissão à teoria do abuso de direito, pois o ilícito de atribuir um valor irreal à causa e em descompasso com as regras dos arts. 258 a 263 do Código de Processo Civil é, evidentemente, um "ilícito não-abusivo", senão vejamos o teor do acódão:

Ementa: PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - IMPUGNAÇÃO AO VALOR DA CAUSA - PRAZO DA FAZENDA PÚBLICA - NECESSIDADE DE PERÍCIA.

1. A interpretação sistemática do art.188 c/c art.261, CPC, impõe a conclusão de que o prazo deferido à Fazenda Pública para formular incidente de impugnação ao valor da causa é abrangido pela contagem em quádruplo.

2. O art.188, CPC, afirma que se contará em quádruplo o prazo para contestar, quando a parte for a Fazenda Pública. O art. 261, CPC, prescreve que o réu poderá impugnar, no prazo da contestação, o valor atribuído à causa pelo autor. O incidente de impugnação ao valor da causa tem prazo de exercício serviente ao homólogo lapso para contestar. Se a Fazenda Pública tem o necessário e justo privilégio de contestar no prazo quádruplo, o ato de impugnação deverá ser manifestado em idêntico intervalo. Imaginar diversamente é quebrar o paralelismo das formas e a lógica da técnica processual prestigiada no CPC.

3. O juiz é soberano, desde que motivadamente, para decidir acerca da pertinência de realização de prova pericial, especialmente quando se tratar de incidente de impugnação ao valor da causa, por definição sumário e expedito.

4. Na espécie, como salientado no decisório de primeiro grau, o valor da causa foi elevado em razão do pedido deduzido na inicial, consistente na condenação do Município em quantia expressiva. O valor primitivo da causa era uma fração do quantum postulado a título ressarcitório contra a Fazenda Pública.

5. A agravante foi alcançado por sua própria conduta anterior. Venire contra factum proprium, como bem definiram os antigos romanos, ao resumir a vedação jurídicas às posições contraditórias. Esse princípio do Direito Privado é aplicável ao Direito Público, mormente ao Direito Processual, que exige a lealdade e o comportamento coerente dos litigantes. Essa privatização principiológica do Direito Público, como tem sido defendida na Segunda Turma pelo Min. João Otávio de Noronha, atende aos pressupostos da eticidade e da moralidade.

6. Não poderia a agravante, sob o color de uma perícia, desejar o melhor dos dois mundos. Ajuizar ações é algo que envolve risco (para as partes) e custo (para a Sociedade, que mantém o Poder Judiciário). O processo não há de ser transformado em instrumento de claudicação e de tergiversação. A escolha pela via judiciária exige de quem postula a necessária responsabilidade na dedução de seus pedidos. Agravo regimental improvido.

(STJ, AgRg no REsp 946499 / SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJ 05.11.2007 p. 257)

Destaque-se que no supra-transcrito acórdão não houve menção ao "abuso de direito", mas sim ao princípio que veda o comportamento contraditório (venire contra factum proprium), a qual, segundo a melhor doutrina, é uma das manifestações de abuso de direito, pois que se trata de uma conduta que vai de encontro ao princípio da boa-fé.

Por seu turno, ao julgar o AgRg no RMS 17752/BA houve novamente confusão. O princípio do juiz natural é a norma que prevê ser impossível a prática processual de reingressar em demanda, após ter desistido da mesma. Ora, se não há necessidade de se buscar motivação no princípio da boa-fé para coibir tal prática, consequentemente, não há que se falar em teoria do abuso de direito processual. Daí que merece censura o emprego equivocado da expressão abuso de direito processual na ementa a seguir transcrita:

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. REINGRESSO DE DESISTENTE EM SEDE DE RECURSO ORDINÁRIO. ABUSO DE DIREITO.

1. Conquanto a desistência não implique renúncia ao direito em que se funda a ação, nem, tampouco, gere empeço ao ajuizamento de nova demanda com idênticas partes, pedido e causa de pedir, não se pode admitir o abuso de direito processual, com o reingresso do desistente no feito ao seu talante, em grave violação do princípio do juiz natural.

2. Agravo regimental improvido.

(STJ, AgRg no RMS 17752 / BA, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, DJ 06.11.2006 p. 372)

Continuando nossa análise, especial atenção deve ser dispensada aos casos como os que foram objeto de análise nos julgamentos do REsp 816453/PR e do EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg nos EDcl nos EDcl no RE no Ag 387730/SP, cujos acórdãos reconheceram, expressamente, ter havido litigância de má-fé.

Pois bem, já se disse que a litigância de má-fé é um ilícito processual que visa reprimir várias condutas contrárias à lealdade e boa-fé objetiva e que se encontram tipificadas nos incisos do art. 17 do Código de Processo Civil.

Apesar de visar reprimir condutas contrárias à lealdade e boa-fé objetiva, a litigância de má-fé é evidentemente um "ilícito não-abusivo", pois não pairam dúvidas sobre a ilicitude das condutas que subsumem àquelas tipificadas no art. 17 do Código de Processo Civil. Daí que é totalmente contraditório pensar que uma mesma conduta será tida como litigância de má-fé e, concomitantemente, abuso de direito processual, como o fizeram os seguintes julgados, in verbis:

Ementa: Processo civil. Recurso especial. Medida cautelar. Litígio entre vizinhos, em face de execução de sentença que reconheceu existência de servidão de passagem em favor do imóvel de um deles. Obras ornamentais realizadas por este, no curso da servidão, que foram apontadas como tendo mero caráter de provocação à outra parte, em face da anterior vitória judicial. Improcedência do pedido em sede de apelação. Reconhecimento, pelo Tribunal de origem, da prática de mútua litigância de má-fé, sem que se tenha, contudo, aplicado a respectiva multa. Procedência do pedido de condenação, a esse título, do ora recorrido; necessidade, contudo, de igual condenação dos recorrentes, de ofício, sob risco de desprestígio da justiça.

- Não se reconhece violação ao art. 535 do CPC quando ausentes omissão, contradição ou obscuridade na decisão recorrida.

- Não se reconhece interesse de recorrer à parte que já obteve o provimento jurisdicional desejado.

- Não se conhece de recurso especial na específica parte em que este se encontra deficientemente fundamentado.

- O Tribunal de origem reconheceu que o motivo da propositura da presente medida cautelar foi uma ''conduta revanchista'' que representava verdadeiro ''abuso de direito''; nesses termos, não é causa excludente da condenação por litigância de má-fé a invocação do direito de acesso à justiça, pois não há como reconhecer que a proteção a um direito chegue ao ponto de justificar seu próprio abuso.

- Verifica-se, contudo, que o Tribunal de origem reconheceu a ocorrência de litigância de má-fé também pelos ora recorrentes, deixando de aplicar a respectiva multa em face daquele argumento já afastado em relação à conduta do recorrido. Nesses termos, e sob pena de descrédito da justiça, é de se aplicar, de ofício, igual multa àqueles, retirando-se, assim, o benefício financeiro que teriam se não tivessem adotado o mesmo tipo de postura que criticaram em seu oponente. Recurso especial parcialmente provido; aplicação, de ofício, de multa por litigância de má-fé.

(STJ, REsp 816453 / PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJ 04.09.2006 p. 270)

Ementa: PROCESSUAL CIVIL. ABUSO DO DIREITO DE RECORRER. MÁ-FÉ E INÉPCIA CARACTERIZADAS. INDENIZAÇÃO. CPC, ART. 18, § 2º E OFÍCIO À OAB. LEI Nº 8.906/94.

A interposição de recurso incabível não suspende ou interrompe o prazo para a apresentação do recurso próprio, nem tem o poder de impedir o trânsito em julgado do acórdão (ou decisão) inadequadamente impugnado. Extinta a prestação jurisdicional e determinada a baixa dos autos, independentemente da publicação do acórdão e de eventual interposição de qualquer outro recurso.

Evidenciado o caráter manifestamente protelatório da insurgência, bem como configurada a má-fé, condena-se o recorrente a indenizar a parte contrária em 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa (CPC, art. 18, § 2º). O inusitado e manifesto desrespeito do advogado subscritor das petições a esta Casa de Justiça, utilizando-se de meios manifestamente incabíveis, transformando o processo civil em panacéia jurídica, atravancando o regular andamento processual, retardando o deslinde da controvérsia de forma inexplicável e sem precedentes, a par de configurada a inépcia, leva-se a que se oficie a OAB/SP, com cópia desta.

(STJ, EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg nos EDcl nos EDcl no RE no Ag 387730 / SP, Rel. Min. Edson Vidigal, Corte Especial, DJ 01.03.2004)

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Sem analisar o aspecto prático das decisões, esses foram alguns acórdãos colhidos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em que, segundo nossa modesta opinião, houve incorreta menção à teoria do abuso de direito processual, pois que esta se torna irrelevante e desnecessária quando já houver norma expressa proibindo e/ou reprimindo as ilícitas práticas processuais analisadas.


5 CONCLUSÃO

No estágio atual da ciência jurídica, tem-se por obrigatório que as partes, assim como todos aqueles que atuam no processo, pautem suas condutas de acordo com a boa-fé e a lealdade, como uma das formas de se permitir que o processo atinja seus escopos com efetividade.

Doutrina e jurisprudência, no afã de buscar a efetividade do processo, acabam por utilizar, excessivamente, a nomenclatura "abuso de direito" para se referir a quaisquer condutas processuais que sejam contrárias à boa-fé objetiva e à lealdade processual.

Contudo, há que se tomar cuidado, pois os ilícitos processuais "abusivos" não podem ser confundidos com os "não-abusivos". Estes são todos aqueles ilícitos processuais, via de regra tipificados, que não ostentam uma "falsa aparência de licitude", ou seja, seu caráter ilícito é aferido prima facie.

O abuso de direito processual é verificado quando determinadas condutas, apesar de "aparentemente lícitas", contrariarem o princípio constitucional da boa-fé (art. 3º, inc. I, da Constituição Federal). Tal abuso processual tem função meramente subsidiária, incidente quando não for possível detectar prima facie a ilicitude.

Daí que, se nos afigura excessiva e desprovida de cientificidade a utilização da terminologia "abuso de direito" quando dada conduta se subsumir a alguma das hipóteses de litigância de má-fé, ato atentatório à dignidade da justiça, ato atentatório ao exercício da jurisdição ou a qualquer outro ilícito processual expresso na legislação.

A atribuição de caráter subsidiário ao abuso de direito processual, não indica que o mesmo seja desprovido de importância. Segundo nosso entendimento, a legislação processual, preocupada com o respeito à boa-fé e à lealdade, tipificou satisfatoriamente várias condutas ilícitas. Contudo, eventualmente, podem existir condutas processuais desleais que não se amoldem a nenhum dos ilícitos processuais tipificados – aqui o abuso de direito exerce sua função com maestria, mas somente nesta sede subsidiária.

A nosso viso e de forma pragmática, os diversos ilícitos processuais, mormente a litigância de má-fé, são suficientes para reprimir as condutas processuais desleais. O papel legislativo já foi devidamente realizado, com a tipificação de tais ilícitos, muitas vezes com a utilização de conceitos jurídicos indeterminados que colaboram para a sua auto-atualização.

É extremamente difícil encontrar um exemplo de uma conduta processual desleal que não se subsuma a algum dos ilícitos processuais "não-abusivos", razão pela qual o campo para aplicação da teoria do abuso de direito processual, além de subsidiário, é reduzidíssimo e remoto.

Para demonstrar tal constatação, analisamos a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e aferimos que em todas as oportunidades em que se referiu ao abuso de direito relacionado a direitos processuais, houve incorreta menção a tal instituto, pois que, na verdade, houve foi afronta a alguma norma já positivada expressamente pelo ordenamento jurídico, sendo desnecessário o recurso ao princípio da boa-fé e, consequentemente, à teoria do abuso de direito processual.

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Sobre o autor
Frederico Garcia Pinheiro

Mestre em Direito Agrário e Especialista em Direito Civil pela UFG. Especialista em Direito Processual pelo Axioma Jurídico. Master of laws em Direito Empresarial pela FGV. Palestrante da Escola Superior de Advocacia da OAB/GO. Ex-Presidente da Comissão de Direito Empresarial a OAB-GO (2013-2015). Associado fundador do Instituto de Direito Societário de Goiás (IDSG). Procurador do Estado de Goiás. Advogado, sócio do Pinheiro & Fortini Escritório de Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Frederico Garcia. Abuso de direito processual na jurisprudência do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1706, 3 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10998. Acesso em: 15 mai. 2024.

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