A 'liberdade alimentar' na democracia

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Carlos Bolsonaro quer fim de cardápios vegetarianos em escolas para atacar ‘militância de esquerda’

BRASÍLIA - O vereador do Rio Carlos Bolsonaro (PL), filho “zero dois” do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), apresentou um projeto de lei que proíbe cardápios vegetarianos e veganos nas escolas e creches da capital fluminense. A medida busca impedir o avanço da pauta de alimentação sem origem animal nas escolas que, segundo o parlamentar, é tema “sequestrado” pela “militância mais radical de esquerda”.

O projeto de lei de Carlos estipula que a instituição de cardápios vegetarianos e veganos deverão ser proibidos nas escolas. O filho do ex-presidente também prevê que os professores estarão proibidos de “estimular” a mudança do hábito alimentar dos estudantes por meio de workshops, seminários e palestras. [Carlos Bolsonaro quer fim de cardápios vegetarianos em escolas para atacar ‘militância de esquerda’ (msn.com)]

O Brasil, infelizmente, vive uma polarização ideopolítica, sem precedentes. Isso quer dizer que jamais existiu polarização ideológica no Brasil? Não é bem assim! Durante o Império Brasileiro, com as ideologias do iluminismo, duas correntes ideológicas disputavam o cenário brasileiro. De um lado, os conservadores, os que defendiam a manutenção da monarquia, do outro, os liberais, contra a monarquia. Entre disputas ideopolíticas atuais e as disputas ocorrida durante o Império, as atuais estão “mascaradas”. Na época do Império, os conservadores eram conservadores, tanto políticos quanto cidadãos e jornalistas; o mesmo para os liberais. Na atualidade, a hipocrisia. “Notícias falsas” é um produto da espécie humana. Isso foi abordado muito bem por Immanuel Kant em “Sobre um Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade”. É imoral e antiético mentir. A verdade é um “imperativo categórico”. Immanuel Kant propôs universalizar uma conduta para saber se ela era válida:

“Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza.”

Livros de Immanuel Kant sobre “imperativo categórico”, como Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Crítica da Razão Pura (1788) e A Metafísica dos Costumes (1797), são importantes para compreensão do embasamento racional para o “dever”, ético e moral, em relação à manutenção da dignidade humana.

Durante o Império, jornais e jornalistas defendiam, abertamente, abolição ou manutenção do Império. Claro, após um certa liberdade de expressão. (1) O chamado “fake news” (notícias falsas), da época, era limitado pela própria tecnologia, ao se comparar com a tecnologia atual, a Inteligência Artificial (IA). Quando inexistia a internet, não quer dizer que os cidadãos e as cidadãs não tivessem notícias descontextualizadas — notícia descontextualizada é a que informa parcialmente, para privilegiar somente uma pessoa, grupo, em detrimento de outra pessoa ou outro grupo.

Século XXI. Brasil. Estado laico. Estado Democrático de Direito. Prevalência da dignidade humana. Quando se pensa na palavra “dignidade”, é importante verificar se os direitos — direitos políticos, civis, sociais, econômicos e culturais — estão presentes tanto na Constituição quanto nas políticas públicas. A aplicabilidade é muitíssima importante para o resgate, a aplicação e a manutenção da dignidade humana. No Estado laico, não há “religião oficial”, ou seja, aquela que se pretende para o Estado, neste caso temos Estado confessional, como ocorreu na Constituição de 1824, pela norma do Art. 5º: a religião oficial do Estado era a Católica Apostólica Romana. Se o Estado brasileiro fosse confessional, possivelmente, existiria lei a proibir venda de carnes, sem ser carne de peixe, na Sexta-feira Santa. Através do Estado confessional, na Sexta-feira Santa, as merendas escolares teriam, somente, carne de peixe. Ora, sem muito esforço intelectual, existe uma ideologia, de cunho religioso, nas entranhas do Estado, isto é, nos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), a cercear a liberdade alimentar. Em diferentes religiões, existem regras e restrições alimentares que refletem suas crenças e práticas:

1) Islamismo:

  • Proibidos:

    • Bebidas alcoólicas.

    • Carne de porco.

    • Carnes de animais mortos sem abate islâmico.

    • Frutos do mar (exceto peixes com escamas e camarões).

    • Animais selvagens, aves de rapina, répteis e insetos.

  • Permitidos:

    • Carne halal (abatida seguindo os rituais islâmicos).

    • Frutas, legumes, grãos, peixes e frutos do mar.

2) Cristianismo:

  • Na Igreja Católica, a restrição alimentar ocorre durante a Quaresma, um período de 40 dias após o Carnaval (descontando os domingos).

  • Proibido:

    • Carne bovina nas quartas-feiras de cinzas e nas sextas-feiras que precedem a Páscoa. Por isso, a tradição de almoçar peixe na Sexta-feira Santa.

Quando Estado confessional, ratifico, leis para impedir certos alimentos e até em certas datas sagradas. No Estado laico não há imposição de alimentos, pode-se, com base na ciência alimentar, regulamentar substâncias, nutrientes para não causar doenças, como ocorre com a alta adição de açúcar, gordura e sal nos processados e ultraprocessados. Uma pessoa pode comprar cinco quilogramas de açúcar e comer tudo de única vez? Pode, pela liberdade irracional. Sim, não há como dizer diferente. Aliás, os shows de “quem come mais” é coisificar e instrumentalizar a dignidade humana em prol do capitalismo. A gula é uma mercadoria e, como tal, oferece lucro através da audiência, da comercialização de certo produto. É transformar a espécie humana em “sociedade de mercado”. O vereador do Rio Carlos Bolsonaro (PL) foi infeliz em sua conhecimento democrático. O mesmo para qualquer outro parlamentar que queira impor proibição de carnes. Ser onívoro, vegetariano, vegano, ovo lacto vegetariano, etc. é uma escolha pessoal. O Estado não pode determinar se os cidadãos e as cidadãs podem ou não adotarem um tipo de dieta alimentar — dieta não é somente “emagrecer”; dieta pode ser para manutenção da saúde, etc. —, do contrário, não há Estado Democrático de Direito, apesar do termo. O que há é Estado ditador, ou qualquer outra nomenclatura.

Estado pode, através da ciência nutricional, criar campanhas educativas sobre práticas alimentares saudáveis; pode também, mediante profissionais em nutrição, elaborar cardápios saudáveis nas instituições de ensino público. E quanto às instituições públicas? O Estado pode regulamentar quais alimentos podem ou não serem vendidos? Sobre regulamentação. Podem as instituições privadas de ensino venderem bebidas alcoólicas para menores de 18 anos? Podem essas instituições venderem cigarros, convencionais ou eletrônicos, para menores de 18 anos? Claro que não! E garanto que os pais heterossexuais e LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Pôli, Não-binárias e mais) achariam absurdo que o Estado ficasse omisso ou permitisse pela “liberdade de mercado”. Dificilmente, quase impossível, pensar que cidadãs e cidadãos, o povo, desse autorização para o Estado proibir certos alimentos nas instituições de ensino. Como exemplo:

Deuteronômio 14:3: “Não comam nada que seja proibido. Vocês não poderão comer aqueles que só ruminam nem os que só têm o casco fendido. O camelo, embora rumine, não tem casco fendido; considerem-no impuro. O coelho, embora rumine, não tem casco fendido; é impuro para vocês. A lebre, embora rumine, não tem casco fendido; considerem-na impura. E o porco, embora tenha casco fendido e dividido em duas unhas, não rumina; considerem-no impuro. Vocês não comerão a carne desses animais nem tocarão em seus cadáveres; considerem-nos impuros.”

Carne de porco proibida para consumo nas instituições de ensino e prisionais.

O Estado brasileiro não proíbe o ingresso, em seu território, de qualquer pessoa pelo tipo de crença. Muitos hindus são vegetarianos, por acreditarem na não violência contra animais. Alguns hindus podem consumir carne, mas evitam a carne de vaca, considerada sagrada. Além disso, alho e cebola também são evitados, pois se acredita que estimulem a paixão e a agressividade. Criança hindu numa das condições: apátrida; refugiado. A pessoa até pode ingressar, mas é obrigada a se alimentar de carne de vaca, já que o Estado proibiu “ideologia alimentar da esquerda”. Ou seja, o Estado democrático — somente no nome — proíbe cardápios vegetarianos e veganos nas escolas e creches da capital fluminense. Criança está em fase de desenvolvimento. A alimentação é importantíssima para o desenvolvimento de qualquer criança, desde o desenvolvimento físico até cognitivo. Pela tradição cultural, pelos anos do hábito alimentar, de não comer carne, de qualquer animal, dificilmente a criança hindu comerá no local, pois o simples fato de ver outras crianças comerem carnes, o mal-estar na criança hindu. A sensação de felicidade é uma das particularidades da dignidade humana. Até poderia ter algum lugar destacado para a criança hindu se alimentar e não ver músculos de animais abatidos nos pratos de outras crianças. Ocorre que dificilmente quem serve a refeição não irá retirar o músculo do prato, já que não há refeição sem músculo (carne), pelo motivo de “impedir o avanço da pauta de alimentação sem origem animal nas escolas”.

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Cria-se uma ideologia contra a “pauta esquerdista” em favor da “liberdade.” Não há liberdade. Além disso, a imposição da ideologia, subjacente, de “proíbe cardápios vegetarianos e veganos nas escolas e creches da capital fluminense” para “impedir o avanço da pauta de alimentação sem origem animal (....) pela militância mais radical de esquerda” gera bullying entre crianças e adolescentes. Como será tratada a criança hindu, pela instituição de ensino, pelos colegas de classe, pelos outros estudantes, ao se negar a comer carne? Será a criança hindu ridicularizada publicamente? A criança hindu seria forçada pelos “defensores da liberdade” a se alimentar de carne? Já temos bullying demais nas instituições de ensino! Agora, se algum parlamentar cria-se projeto para proibir qualquer carne, pelo padrão alimentar cultural brasileiro, também seria irrazoável, uma “ditadura anticarne”.

Exatamente. O bullying também é uma consequência dos valores sociais e, principalmente, políticos.

Quando o Estado impõe o consumo de carne, como intenciona o projeto de Carlos Bolsonaro (PL), também viola a liberdade de crença da criança hindu. Se mais tarde a criança hindu, por determinação própria, quiser ser onívora, que seja, independentemente da vontade do Estado. Se a criança hindu tiver família aqui no Brasil, nem a sua família poderá impor o hábito alimentar de não ingerir carne. O Estado brasileiro é laico e protege a dignidade da criança. Isto é, a autodeterminação da criança quanto ao se alimentar de carne ou não. Caso o Estado brasileiro dê permissão para a família da criança hindu, através de qualquer meio, impedir que a criança somente coma vegetais, há flagrante violação da dignidade desta criança.

LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Parágrafo único.  Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)

Quanto à alimentação saudável. o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também tem como princípio:

 Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

Termino. Mais razão e menos emoção!

NOTA:

(1) — Observatório da Imprensa. Uma história marcada por censura e resistência. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/entre-aspas/uma_historia_marcada_por_censura_e_resistencia/

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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