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(Ainda) a prisão civil do depositário infiel.

Notas sobre o posicionamento atual do STF

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4. A prisão civil do depositário judicial

No julgamento do HC 90.172-SP, realizado pela Segunda Turma do STF, o Relator, Min. Gilmar Mendes, deferiu a ordem de habeas corpus a paciente que havia sido preso como depositário infiel de 87.500 quilos de aço galvanizado. Neste caso, repetindo os argumentos aduzidos por ele próprio por ocasião do julgamento do indigitado RE 466.343-SP, o relator determinou a soltura do paciente, afirmando que estava a levar em consideração a "plausibilidade da orientação que está a se firmar perante o Plenário desta Corte – a qual já conta com 7 votos".

Parece, entretanto, que a decisão incorreu em um pequeno equívoco. É que a orientação que já possui 7 votos perante o STF é aquela defendida pelo relator, Min. Cesar Peluzo, que não admite a prisão do depositário infiel quando este for assim considerado por meio da equiparação prevista no Decreto-Lei 911/69, não havendo qualquer menção à impossibilidade de prisão do depositário infiel típico. Apenas a posição defendida por ele, Gilmar Mendes, sobre a qual nenhum outro ministro se manifestou ainda, é que coloca o Pacto de São José da Costa Rica acima da legislação ordinária, inviabilizando, assim, a prisão de qualquer espécie de depositário infiel (típico ou por equiparação). Não obstante, a ordem de habeas corpus foi deferida pela unanimidade dos membros da 2ª Turma do STF, o que já indicava uma boa aceitação da tese desenvolvida por Gilmar Mendes naquela Corte.

Esta boa aceitação da tese formulada pelo Ministro Gilmar Mendes, que, lembre-se, leva à impossibilidade de prisão de qualquer espécie de depositário infiel, foi confirmada em outros julgamentos posteriores do STF. Chama a atenção o fato de que a 1ª Turma do STF, a partir do julgamento do RHC nº 90.759-MG, no qual estava em jogo (assim como no HC 90.172-SP, muito embora naquela oportunidade este fato não tenha sido levado em consideração) decidiu permanecer possível a prisão de um depositário infiel que se tornara devedor não por disposição contratual, mas sim por determinação judicial [25]. Ou seja, como acontece rotineiramente na execução de decisões judiciais, após efetuada a penhora de bens suficientes para a garantia do débito, o paciente fora nomeado, pelo juízo da execução, fiel depositário dos mesmos, os quais, por sua vez, não foram encontrados posteriormente.

Neste segundo caso, aquele órgão fracionário do STF julgou necessário fazer a distinção entre o depósito judicial e o depósito convencional. O relator, Min. Ricardo Lewandowski, salienta que, no primeiro caso, por se tratar de depósito necessário, mesmo que o STF venha a adotar a posição já prevalecente no RE 466.343-SP, a prisão civil permaneceria possível. De acordo com o seu voto, "O depósito judicial, enquanto obrigação legal e que, nesses termos, estabelece relação típica de direito público e de caráter processual entre o juízo da execução e o depositário judicial dos bens penhorados, permite a prisão civil" [26](grifou-se).

Durante os debates que se seguiram ao voto do ministro Relator, o Ministro Marco Aurélio reafirmou sua posição de que após a ratificação do Pacto de São José da Costa Rica a prisão civil do depositário infiel não tem mais lugar no nosso ordenamento jurídico. Mas a Ministra Cármen Lúcia voltou a chamar a atenção para o fato de se tratar de uma circunstância diferente, ao afirmar que "O caso dele tem um diferencial por ser um depósito judicial, porque, quanto aos outros, realmente eu acompanharia o Ministro Marco Aurélio. Mas aqui a única coisa que me toma com um cuidado especial é a circunstância de ser um depósito determinado judicialmente. Então, a relação muda em referência a qualquer outro tipo de depósito que possa ser considerado e até de depósito que pudesse ser submetido" [27] (grifou-se). E, com base neste argumento, a Min. Cármen Lúcia acompanhou o relator do caso, afirmando ser possível a prisão civil do depositário necessário apenas.

O mesmo entendimento foi aplicado no HC 92.514--RS, também da lavra da 1ª Turma. Ocorre, no entanto, que o plenário do STF não referendou a distinção feita entre depósito necessário e depósito convencional. Isto se deu na análise de Questão de Ordem levantada no HC 94.307-RS, quando o Plenário do STF deferiu o pedido de liberação cautelar formulado, alegando a existência de vários votos favoráveis à tese da paciente no julgamento do RE 466.343. [28] Note-se que os Ministros Ricardo Lewandowsi e Cármen Lúcia, defensores da necessidade de se distinguir as espécies de depósito para fins de possibilidade da prisão, não estavam presentes à sessão. Nada obstante, os seis Ministros que participaram do julgamento votaram pelo deferimento da ordem, nos termos propostos pelo Relator, Ministro Cezar Peluso.

Com isso, antecipava-se a impressão de que a tese do Ministro Gilmar Mendes (que, ao lado do voto do Ministro Celso de Mello, acarreta a impossibilidade de prisão de qualquer espécie de depositário infiel) deveria prevalecer entre os integrantes do STF. Esta impressão acabou confirmada em dezembro de 2008, quando foram concluídos os julgamentos do RE 466.343, do HC 87.585 e do RE 349.703 (todos noticiados no Informativo STF nº 531).

Note-se que, por maioria, o STF decidiu reconhecer aos tratados internacionais anteriores à EC 45/2004 o status de normas supralegais, tal como proposto pelo Min. Gilmar Mendes. Além do Ministro Celso de Mello, ficaram vencidos, neste ponto, os Ministros Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que atribuíam hierarquia constitucional àquelas normas.

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5. Conclusão

A conclusão dos julgamentos envolvendo a questão da prisão civil do depositário infiel marcou um novo posicionamento do STF em relação não apenas a esta questão, proibindo, em qualquer caso, a prisão do depositário infiel, mas também uma revisão do entendimento da Corte sobre a hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos.

Apesar da expectativa pelo reconhecimento da hierarquia constitucional dos tratados internacionais ratificados antes da EC 45/2004, o STF preferiu adotar um posicionamento mais contido. Neste sentido, foi criado um novo patamar normativo hierárquico no direito brasileiro, denominado de "supralegal". Tais normas encontram-se subordinadas à Constituição Federal; no entanto, colocam-se acima das leis ordinárias federais, que têm sua eficácia suspensa em caso de conflito.

Uma questão que ainda merece uma discussão um pouco mais aprofundada é saber se as normas supralegais, assim classificadas pelo STF, integram o "bloco de constitucionalidade" [29] do direito brasileiro. Na medida em que o próprio Supremo, ao reconhecer o caráter supralegal do Pacto de San José da Costa Rica, declarou inaplicáveis os dispositivos normativos internos referentes à prisão do depositário infiel (notadamente o CPC e o Decreto-Lei 911/69), parece-nos que a resposta deve ser afirmativa. Assim, estes tratados podem ser considerados, sim, como parte integrante do bloco de constitucionalidade, uma vez que foram reconhecidos como parâmetro na verificação da constitucionalidade das normas infraconstitucionais.

Ainda que pareça estranho falar em inconstitucionalidade por violação a uma norma que não tem natureza constitucional (mas sim supralegal), não sentimos qualquer dificuldade em fazer tal afirmação. Isto porque, caso se entendesse que os tratados internacionais com hierarquia supralegal não integram o bloco de constitucionalidade, o vício incidente sobre a norma de direito interno deveria ser reconhecido como um vício de legalidade (e não de constitucionalidade). Neste caso, o controle deveria ser feito em última instância pelo STJ, e não pelo STF. Uma vez que o Supremo não se furtou a recusar aplicação às normas legais que preveem a prisão civil do depositário infiel, parece correto afirmar que, para o STF, as normas supralegais integram, sim, o bloco de constitucionalidade do direito brasileiro. Exatamente por isso, é ele – STF – o responsável pela verificação final da compatibilidade entre umas (normas legais) e outras (normas supralegais).


Notas

  1. Decreto-Lei 911/69, art. 4º: "Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil".
  2. Código Civil, art. 627: "Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame.
  3. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 359 e segs.
  4. Idem, p. 578.
  5. Rosália Monteiro Figueira aponta ter havido, inicialmente, divergência entre a 5ª e a 6ª Turmas do STJ, sendo que esta não admitia a prisão do devedor fiduciante e aquela sim, tendo prevalecido o entendimento da 6ª Turma. V. "A Prisão do depositário infiel no caso de alienação protegida pela cláusula de alienação fiduciária em face da Constituição Federal de 1988 e dos tratados internacionais", in DEL´OLMO, Florisbal de Souza. Curso de Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Luís Ivani de Amorim Araújo pelo seu 80º aniversário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 595 e segs.
  6. STJ, 4ª Turma, HC nº 36.871-DF, publicado no DJ de 13/12/2004.
  7. STJ, Corte Especial, ERESP nº 149.518-GO, publicado no DJ de 28/02/2000.
  8. Em pesquisa de jurisprudência no sítio do STF, comprova-se que desde a promulgação do Decreto-Lei nº 911/69 aquele tribunal adotou entendimento admitindo a equiparação realizada entre alienação fiduciária em garantia e depósito. V., a respeito, RE 73.220-DF, HC 51.186-SP, RHC 51.934-AL, HC 51.969-SP, entre outros julgados, todos da década de 1970. Destaca-se o resultado do julgamento proferido no RE 69.404-SP, relatado pelo Min. Aliomar Baleeiro, que inadmitiu o recurso por reconhecer que a impossibilidade de equiparação do adquirente fiduciário ao depositário infiel, com base na natureza de cada um dos contratos, consiste em interpretação razoável da lei, realizada pelo tribunal recorrido.
  9. STF, RE 466.343, divulgado no Informativo STF nº 449.
  10. CPC, art. 904, parágrafo único: "Não sendo cumprido o mandado [de restituição da coisa depositada], o juiz decretará a prisão do depositário infiel".
  11. Entre outros, podem ser citados Antônio Augusto Cançado Trindade, Celso Mello, Flávia Piovesan e Valério Mazzuoli. Conferir, por todos, o brilhante artigo do saudoso professor MELLO, Celso Renato Duvivier de Albuquerque. "O 2ºdo art. 5º da Constituição Federal", in TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1-33.
  12. Sobre o regime imposto às leis restritivas de direitos fundamentais, v. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição. Coimbra: Almedina, 2002, pp. 448-467.
  13. V., a respeito, SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 7ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 167-177 e SARMENTO, Daniel. "A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria", in SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, pp. 279-294.
  14. Um exemplo singelo, mas ilustrativo, refere-se à lei nº 9.534/97, que estabeleceu a gratuidade das certidões de nascimento e de óbito a todos, não obstante a Constituição, em seu art. 5º, LXXVI, assegurar apenas aos reconhecidamente pobres tal direito. Seria correto dizer que, ao estender a gratuidade a todos, e não apenas aos pobres, o legislador ordinário incorreu em inconstitucionalidade? Parece que não, justamente porque o objetivo da norma contida no art. 5º é facilitar o acesso a tais documentos, imprescindíveis ao exercício da cidadania, e não restringi-lo. Este foi, também, o entendimento do STF (ADI nº 1.800 e ADC nº 5).
  15. A se aplicar o entendimento do Ministro Moreira Alves ao exemplo acima citado, seria possível chegar-se à conclusão de que a Lei nº 9.534/97 é inconstitucional, uma vez que o art. 5º, LXXVII conferiria um direito fundamental aos titulares de cartórios consistente no fato de que somente os reconhecidamente pobres teriam direito a certidões de nascimento e de óbito gratuitamente, enquanto os demais seriam obrigados a pagar por tais documentos, o que não parece nada razoável.
  16. Conferir, especialmente, SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 43 e segs.
  17. Sobre o tema, v., especialmente, os relevantes trabalhos de SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004 e SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: Os Direitos Fundamentais nas Relações entre os Particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.
  18. CRFB, art. 5º, § 3º: "Os tratados e convenções internacionais que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".
  19. Valério Mazzuolli chega a defender a tese de que o § 3º do art. 5º, acrescentado pela EC 45/2004, é inconstitucional, justamente por esvaziar o § 2º. Ver, a respeito, MAZZULOI, Valério. "O novo § 3º do art. 5º da Constituição e sua eficácia", in Revista de Informação Legislativa, ª 42, n. 167, jul./set. 2005.
  20. STF, RE 466.343, voto-vista do Min. Gilmar Mendes, p. 11.
  21. Diversos argumentos são utilizados pelo Min. Gilmar Mendes em defesa desta tese. Em síntese, baseia-se na abertura cada vez maior dos Estados constitucionais a ordens jurídicas supranacionais de proteção aos direitos humanos, citando vários exemplos de direito estrangeiro, bem como em disposições da própria Constituição de 1988 que destacam o papel das normas de direito internacional, como o parágrafo único do art. 4º, o parágrafo 2º do art. 5º, e os parágrafos 3º e 4º do mesmo art. 5º, acrescentados pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Aduz, ainda, ao fato de o art. 98 do Código Tributário Nacional ter adotado a supralegalidade dos tratados internacionais, e que não faria sentido admiti-la quanto a tratados de direito tributário e negá-la aos tratados de direitos humanos.
  22. Comunga deste entendimento o recém aposentado Ministro Sepúlveda Pertence, como revela seu interessante voto proferido no julgamento do RHC 79.785-RJ, em que se discutia a questão do duplo grau de jurisdição.
  23. STF, RE 466.343, voto-vista do Min. Gilmar Mendes, p. 11.
  24. STF, RE 466.343, voto do Ministro Celso de Mello.
  25. Código Civil, arts. 647 e seguintes.
  26. STF, RHC nº 90.759-MG, voto do min. Ricardo Lewandowski.
  27. STF, RHC nº 90.759-MG, voto da min. Cármen Lúcia.
  28. STF, HC-QO 94.307-RS.
  29. Por bloco de constitucionalidade deve ser entendido o conjunto das normas materialmente constitucionais (ou seja, aquelas que possuem a mais alta hierarquia em nosso ordenamento jurídicos, independentemente de se localizarem, ou não, formalmente inseridas na Constituição da República).
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Sobre o autor
José Guilherme Berman Corrêa Pinto

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC Rio. Professor de Direito Constitucional da Universidade Estácio de Sá

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. (Ainda) a prisão civil do depositário infiel.: Notas sobre o posicionamento atual do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1660, 17 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10857. Acesso em: 2 mai. 2024.

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