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A decretação antecipada da prescrição e o princípio da proporcionalidade.

Uma relação necessária

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28/11/2007 às 00:00
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4. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A DECRETAÇÃO ANTECIPADA DA PRESCRIÇÃO

Não é novidade que desde a Constituição de 1988 as atribuições do Ministério Público cresceram. Em razão disso, ao contrário do que fez por muito tempo, hoje a Instituição lança seu foco exclusivamente sobre funções que sejam efetivamente relacionadas com sua missão constitucional. Abandona, ao poucos, as atribuições que não estejam estritamente ligadas à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos individuais e sociais indisponíveis [24]. A mudança de postura não é casual: consolidada a relevância da Instituição, é momento de responder aos anseios da sociedade – e eles não serão satisfeitos sem a racionalização de suas atividades.

Passa por aí a questão da decretação antecipada da prescrição retroativa. Se não por razões de caráter científico, ao menos por razões de praticidade, o Ministério Público tem de fazer a pergunta a si mesmo: é correto deixar de lado outras atribuições para investir na propositura ou na continuidade de ações penais que, evidentemente, serão atingidas pela prescrição? A pergunta não é retórica. Pelo contrário. Quem atua na função sabe que o cotidiano do agente do Ministério Público é povoado de situações como essas.

O questionamento tem ainda mais pertinência quando nos damos conta que o Ministério Público tem o poder de dar fim a inquéritos policiais ou a processos penais que não chegarão a lugar algum, ainda quando os tribunais não entendam da mesma maneira.

Embora essa afirmação possa, em um primeiro momento, causar perplexidade, ela deriva de mero raciocínio lógico. Ora, o processo não inicia e não continua sem a participação do Ministério Público. Não inicia em virtude do disposto no artigo 129, I, da Constituição Federal. Não continua por conta do teor desse mesmo artigo (só uma interpretação obtusa e ultrapassada da mencionada disposição pode levar à conclusão de que o "promover" se adstringe à propositura da ação, e que, uma vez realizado esse ato processual, o juiz de direito está livre para exercer a inquisição), em razão da incidência do princípio do devido processo legal (toda defesa pressupõe uma acusação – e a acusação no decorrer do processo tem de ser exercida pelo Ministério Público e não por um juiz inquisidor) e, finalmente, por causa da adoção do sistema acusatório por nossa Constituição Federal (sistema que atribui ao Ministério Público a responsabilidade pela gestão da prova).

Assim, ainda que prossiga o entendimento da maioria dos tribunais no sentido de que é inviável a decretação antecipada da prescrição, o Ministério Público pode, se assim quiser, e desde que haja um consenso dentro da Instituição, dar solução antecipada aos inquéritos policiais e às ações penais em que certa a prescrição futura: basta, nos inquéritos policiais, não oferecer a denúncia, e, nos processos penais, não dar continuidade à demanda já instaurada (insistimos: o "promover" a que se refere o artigo 129, I, da Constituição Federal significa muito mais do que o mero ingresso da ação – naturalmente, a lição só faz sentido para aqueles que já se deram conta que o sistema inquisitorial é incompatível com a atual ordem constitucional).

Agindo dessa maneira, o Ministério Público, de um lado, refletiria sua maturidade institucional – assumindo o ônus de determinar quando o ajuizamento ou a continuidade de uma ação penal são medidas necessárias –, e, de outro, faria jus à razão de sua existência, que nada mais é do que a defesa da sociedade – que apenas tem a perder com a propositura ou continuidade de ações penais que não terão qualquer utilidade.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

5.1. A decretação antecipada da prescrição da pretensão punitiva do Estado, embora não prevista em lei, é uma realidade, tanto no plano dos fatos como do direito.

5.2. No plano dos fatos, porque o instituto tem sido largamente utilizado no primeiro grau de jurisdição, onde ocorre um acordo tácito entre os atores jurídicos, evitando que a questão seja submetida aos tribunais, que, regra geral, cassariam a decisão em pauta.

5.3. No plano do direito, pois um ato estatal (judicial ou persecutório-administrativo) que restringe direitos individuais fundamentais sob o argumento de alcançar uma finalidade que jamais poderá ser atingida é materialmente inconstitucional por infração ao princípio da proporcionalidade (e, especificamente, ao subprincípio da adequação).

5.4. Discordamos do entendimento expressado pelos tribunais superiores no sentido de que a ausência de lei autorizativa impede a decretação antecipada da prescrição. Pelo contrário, o reconhecimento da força normativa dos princípios leva, justamente, à conclusão de que a providência é possível, desde que preenchidos os requisitos para tanto.

5.5. De outro lado, apesar de verdadeira a asserção no sentido de que de que o reconhecimento antecipado da prescrição impede que o investigado ou réu prove a sua inocência, o problema é contornável: basta que se dê a ele a oportunidade para manifestar se concorda, ou não, com a providência. Afinal, é ele, é só ele, quem tem condições de avaliar qual medida lhe atinge mais gravemente – a instauração/continuidade do processo ou a perda da chance de provar sua inocência.

5.6. Da mesma forma, é possível decretar-se antecipadamente a prescrição sem correr-se o risco de beneficiar indevidamente um investigado ou réu que possua circunstancias judiciais desfavoráveis, mas desconhecidas do Ministério Público. Basta que a extinção da punibilidade somente seja decretada quando, em um juízo antecipado, surja incontestável a conclusão de que a prescrição ocorreria mesmo se futuramente descoberto que o investigado ou réu era detentor de um péssimo "currículo".

5.7. A partir do momento em que, afastando-nos das "certezas" pregadas pelo senso comum, damos-nos conta de que, sem a participação efetiva do Ministério Público uma ação penal não pode seguir em frente – salvo se ignorados princípios como o do devido processo legal e o acusatório –, há que se reconhecer que é também dessa Instituição a decisão acerca da instauração ou continuidade de uma ação penal predestinada à inutilidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

01 DJU de 6.9.2007, Rel. Min. Carlos Britto.

02 DJU de 17.10.2006, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.

03 DJU de 10.8.2006, Rel. Min. Joaquim Barbosa.

04 A 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é honrosa exceção, como pode ser conferido nos seguintes julgados, todos relatados pelo Desembargador Sylvio Baptista Neto: AC 70018365668, publicado do DJE de 24.4.2007; RSE 70016958670, publicado no DJE de 15.3.2007; RSE 70014264014, publicado no DJE de 27.4.2006.

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05 É o caso, por exemplo, de Eugênio Pacelli de Oliveira, que afirma inexistir o interesse processual nas ações penais em que certa a prescrição futura porque "o processo, como instrumento da jurisdição, deve apresentar em juízo prévio e necessariamente anterior, um mínimo de viabilidade de satisfação futura da pretensão que informa seu conteúdo".

06 A respeito do assunto, vide Projeto de Lei da Câmara n° 19/2007, que "altera os artigos 109 e 110 do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal (exclui do ordenamento jurídico o instituto da prescrição retroativa)."

07 Embora o termo "prescrição abstrata" seja empregado com freqüência, tecnicamente mais correto é designar essa espécie de "prescrição da pretensão punitiva estatal com base na pena abstratamente cominada ao crime".

8 É interessante perceber que, apesar de o Código Penal silenciar a esse respeito, a prescrição da pretensão punitiva retroativa ou intercorrente também pode ser regulada pela pena concretizada no acórdão.

09 Ou, com mais técnica, "prescrição da pretensão punitiva estatal na forma retroativa".

10 Ou, com mais técnica, "prescrição da pretensão punitiva estatal na forma intercorrente".

11 Ou, com mais técnica, "prescrição da pretensão punitiva estatal na forma intercorrente, com base em um prognóstico da pena que seria aplicada ao investigado ou acusado".

12 Os conceitos de proporcionalidade e razoabilidade são aqui tomados como sinônimos.

13 É exemplo a decisão proferida no RE 365368/SC. DJU de 29.6.2007, Rel. Min. Carlos Velloso.

14 É exemplo a decisão proferida no HC 82.969/PR. DJU de 17.10.2003, Rel. Min. Gilmar Mendes.

15 O marco histórico é o julgamento efetuado na ADIN n° 855-2, em 1° de junho de 1993, momento em que o Supremo Tribunal Federal admitiu expressamente que o princípio da proporcionalidade era norma do ordenamento jurídico brasileiro.

16 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 224.

17 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 89.

18 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3.ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. p. 121.

19 BARROS, Suzana de Toledo. Op. cit., p. 182-184.

20 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 6.

21 DJU de 10.8.2006, Rel. Min. Joaquim Barbosa.

22 VARGAS, Robson de. O reconhecimento antecipado da prescrição penal retroativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 55, p. 347, jul./ago. 2005.

23 PACHECO, Denílson Feitosa. O princípio da proporcionalidade no direito processual penal brasileiro. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007. p. 144-145.

24 A título de exemplo, basta observar que há bem pouco tempo o Ministério Público tinha como regra a intervenção em qualquer ação que envolvesse entes públicos. Hoje, ao contrário, o entendimento maciço da Instituição é de que a simples existência de ente público em um dos pólos da demanda não é suficiente para gerar a necessidade de intervenção do Ministério Público como fiscal da lei.

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Sobre o autor
Daniel Westphal Taylor

promotor de Justiça em Forquilhinha (SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAYLOR, Daniel Westphal. A decretação antecipada da prescrição e o princípio da proporcionalidade.: Uma relação necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1610, 28 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10707. Acesso em: 2 mai. 2024.

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