O perigo na interpretação vaga do art. 171-A do CP após o fim da vacatio legis da Lei nº 14.478/22

28/06/2023 às 12:06
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Com advento da novel Lei que estabelece diretrizes e define conceitos para ativos virtuais (in casu, criptoativos), houve o acréscimo do art. 171-A no Código Penal, que tipifica que qualquer conduta deva ser interpretada como fraude quando envolve ativos virtuais, valores mobiliários e ativos financeiros em um fato no plano concreto que venha a desaguar na vantagem ilícita mediante prejuízo alhein, em síntese, na constância de atividade econômica.

Ocorre que a interpretação última na seara penal é sempre feita pelo Poder Judiciário, e por se tratar de um ramo novo no direito, qual seria a segurança jurídica que traria entregar nas mãos do Estado, que não possui o menor conhecimento nessa nova modalidade de atividade financeira, com bens criptografados, escriturados em rede blockchain, de tecnologia complexa, que, por vezes, nem mesmo os próprios programadores em Web 3.0 conseguem compreender?

Cumpre salientar que a pena cominada do mencionado dispositivo é entre 4 (quatro) a 8 (oito) anos, ou seja, já incorre em pena privativa de liberdade, direito segundo o qual é demasiado caro pra nossa sociedade.

Tivemos algumas oportunidades, no cenário geopolítico e econômico recente, de experimentar uma espécie de perseguição à atividade de criptoativos instrumentalizada pelo Estado através da SEC (Securities and Exchange Comission), que é a CVM dos Estados Unidos.

Alguns casos, que não merecem ser trazidos todos à baila, são emblemáticos e convém suscitar aqui o ocorrido em que a SEC tratou NFT’s (Non Fungible Tokens), que são bens infungíveis, dos quais muitas vezes são artes gráficas ou artigos em games, como valores mobiliários pela mera justificativa de que estavam sendo usados para especular e sendo feitas dentro de determinadas plataformas de finanças descentralizadas devido à sua valorização.

Como já era esperado, a CVM não seria a instituição que iria regular a atividade de criptoativos e somente iria regulá-los caso tivessem característica de ativos mobiliários (security tokens), e foi exatamente o que aconteceu com a outorga do Decreto nº 11.563/23, que elege o Banco Central para regular criptoativos e mantém a CVM com criptoativos de securitização.

Agora, vamos supor que alguma entidade privada sem fins lucrativos de preservação ambiental tenha um projeto de proteção às tartarugas marinhas e resolva lançar uma coleção de NFT’s listando-a em um marketplace da internet disponível no Brasil com arte digital 3D de tartarugas nadando no oceano e colocando ovos, para arrecadação de recursos para esse projeto, onde seriam todos ali aplicados, e depois, essa entidade coloque os NFT’s em uma plataforma para emissão de frações da arte, prometendo cashback proporcional à cada fração aos primeiros 100 (cem) compradores, contanto que fosse atingida uma meta alta de 98,5% (noventa e oito vírgula cinco por cento) de venda das frações e consequente valorização dos tokens, carregando o seguinte slogan na campanha: “O futuro da arte tokenizada não há como falhar”.

O correto é sempre protocolar requerimento de consulta à CVM se é caso de registro ou dispensa, contudo a tecnologia permite que os tokens possam ser configurados para que mudem ou acrescentem novas funcionalidades.

Se antes da listagem pública dos NFT’s a consuta foi feita regularmente e a CVM dispensou o registro, e após, a entidade bloqueou o NFT em uma plataforma para emitir frações dentro dos critérios acima elencados e, com isso, a CVM passou a tratá-los como certificados de recebíveis com renda fixa, conforme as debêntures previstas no art. 2º, inciso I da Lei nº 6.385/76.

Então a CVM exara um ato determinando stop order, multa, e demais sanções cabíveis sob premissa de que se trata de um fundo de investimento de certificados de recebíveis de renda fixa, com promessa de rendimento predeterminado e tratamento antiisonômico, e com isso, antes era um ativo virtual criptográfico e, a posteriori ao ato, passou a ser um security token, ou seja, um criptoativo com características de valor mobiliário.

Isso desconfigurou completamente o projeto, e ligou sinal de alerta ao MP, que ofereceu denúncia contra os donos do projeto afirmando que o NFT com arte das tartarugas colocando ovos no mar e o pedido de consulta antes de alterar as funcionalidades do token apenas serviriam como ardis para camuflar o real desígnio, que é o de assegurar o máximo de vendas possível em oferta pública para a entidade induzindo os compradores à erro em crer que seria impossível “o futuro da arte tokenizada falhar”, dando impressão que o retorno do investimento era garantido, onde estaria ali caracterizado o dolo na fraude.

Antes do ato da CVM caracterizando o NFT como ativo de securitização, não havia como ser caracterizada a fraude e nem sanções administrativas, pois 1) a entidade não tem fins lucrativos e todos os recursos arrecadados seriam destinados às suas atividades, e assim, por não ser companhia aberta, não haveria necessidade de registro da pessoa jurídica junto à CVM; 2) os bens poderiam ser ofertados publicamente sem registro; 3) com isso, o cashback não poderia se enquadrar em renda fixa; 4) não haveria necessidade de registro de fundo de investimento junto à CVM; 5) não haveria tratamento antiisonômico aos cotistas pela renda fixa ser somente aos 100 (cem) primeiros negociantes; 6) não haveria a caracterização de promessa de rendimento predeterminado; e 7) o slogan da campanha seria tratado meramente como a figura do dollus bonus, permitido no direito civil, afastando inteiramente a fraude.

Alguns detalhes, como a condição de meta a ser atingida que acarretaria na valorização do ativo permitindo o cashback, ou a condição em atingir uma meta de venda equiparando-se à um índice de compras, poderiam até mesmo ser discutíveis, mas jamais prevaleceriam, uma vez que debênture não pode ser cotado em gráfico de valorização em renda variável que depende do desempenho do negócio, e o índice utilizado como condição de precificação deveria ser algum daqueles parametrizados pelo Poder Público (p.ex.: IPCA).

Por diversas vezes, não é possível tratar um criptoativo como um security token, por mais parecido que ele seja com um valor mobiliário, devido às suas características de ativo negociado em mercado financeiro, que é distinto desses tradicionais já revestidos de regulações, e é por isso que muitas vezes essas regulações já existentes não se adequarão por ser um caso extremamente atípico, principalmente em razão da tecnologia, que faz toda a diferença.

O recomendável é sempre fazer consulta junto à CVM quando for alterar algum elemento de seu criptoativo, antes pedindo consultoria à algum advogado especializado para emissão de parecer instruindo o passo à passo, mas de todo modo, a forma genérica como o texto do dispositivo do 171-A foi confeccionado não dá segurança jurídica nenhuma dada a complexida do tema em voga, e dá chancela ao Estado, que em nada entende do referido tema, julgar se alguém deve perder sua liberdade ou não, e é aí que mora o perigo.

Assim, o que se conclui é que há uma desmensurada irresponsabilidade na forma como foi tipificado este crime aqui narrado, haja vista que algum mero descuido de lançamento de projetos de criptoativos no mercado poderia desembocar em uma fraude sem nem mesmo o dono do projeto saber, pois a conduta antes de ser caracterizada como security não evidencia fraude, mas após ato exarado pela CVM, passa a ser caracterizado fraude, pois há regras que se aplicam à valores mobiliários e não se aplicam à ativos virtuais.

Da noite para o dia, os donos dos projetos podem se tornar criminosos devido ao exemplo aqui exposto, e até mesmo os negociantes que, ao comprarem tokens, passam a ser tratados como sócios desse empreendimento e responderão juntos, e ainda, até mesmo um advogado de startup que convencionou honorários como participação nos frutos do projeto, podendo responderem até mesmo pelo crime de organização criminosa devido aos requisitos de estrutura hierárquica, distribuição de funções caso hajam 4 (quatro) ou mais atuantes no projeto.

Neste sentido, urge a necessidade de que o 171-A seja norma de eficácia suspensa até ser elaborado ato normativo que estabeleça critérios firmes para que não pairem dúvidas sobre a forma como serão emitidos os tokens, devido à magnitude das repercussões que isso pode vir a gerar na esfera criminal.

Sobre o autor
Yuri Nogueira Maimone

Bacharel em Direito pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais no Rio de Janeiro (IBMEC/RJ). Advogado especializado em criptoativos, smart contracts, blockchain e Web3 no geral. Sócio do escritório Maimone & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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