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Responsabilização do Estado por danos decorrentes do consumo de organismos geneticamente modificados (OGMs)

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12/08/2007 às 00:00
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2.Os OGMs no Programa Jurídico-Político Brasileiro

No capítulo anterior, cuidou-se de considerar sucintamente: (i) evolução dos OGMs – indispensável ao trabalho, dada a interdisciplinaridade do tema; (ii) aspectos do estado da arte do consumidor ante o mercado e demarcações conceituais das categorias de interesses; e (iii) análise sob o enfoque sociológico do risco – abordagem que tem alcançado gradativa aceitação na comunidade jurídica brasileira e da qual os entraves concernentes aos alimentos transgênicos e ao meio ambiente em geral tornou-se impossível de se dissociar.

Toca, agora, levar adiante a abordagem jurídica propriamente dita, traçando os contornos da proteção dos direitos, suas bases teóricas e instrumentos legais – constitucionais e infraconstitucionais – que precedem/precederam a lei nº. 11.105/05, para, então, passar ao exame da lei e aos pontos fundamentais da Responsabilidade do Estado por eventuais danos causados à população em decorrência do consumo de OGMs.

2.1.O Viés da Tutela dos Direitos

Ainda que a cargo do Direito e da dogmática jurídica a tarefa de compreender, criar e efetivar uma estrutura de regulamentação que atenda aos reclames sociais os mais complexos, o alargamento da órbita dos direitos transindividuais tem denunciado o anacronismo do modelo jurídico liberal-individualista, demandando nova postura dos juristas. Procede a alegação de que eles recebem seu instrumento de trabalho do legislador muitas vezes obsoleto, repleto de impropriedades e, não raro, sem que esteja espelhado nas mais nítidas e elementares expectativas sociais. É inaceitável, entretanto, que se reproduzam essas imperfeições quando se tem em vista que o diálogo entre o aspecto geral do texto normativo e a sua aplicação particular – inserida no mundo dos fatos – é imprescindível à realização da prestação jurisdicional em grau satisfatório.

Há uma dificuldade histórica patente do discurso jurídico em lidar com a realidade social. Busca-se um significado correto, único, quando, na verdade, as expressões do texto legal não são unívocas, mas plurívocas, porque elaboradas sempre a partir de sua historicidade, ou seja, inexiste interpretação sem relação social (STRECK, 2004b, p. 17ss). E o Direito, construído a partir de um processo interpretativo, não existe sem que se opere a sua inserção dialógica na realidade.

O mundo jurídico confina com o mundo dos fatos – materiais ou enérgicos, econômicos, políticos, morais, artísticos, religiosos, científicos –, daí provêm as múltiplas interferências de um no outro (PONTES DE MIRANDA, 1954, p. 184). A Constituição mesma, ápice instrutor de toda a ordem jurídica, representa a solução normativa das aspirações que se conflitam, dos interesses que se entrechocam, dos fins e interesses que indivíduos e grupos pretendem realizar; ela não produz interesses, mas os reproduz. Assim, ela provém da realidade e a ela retorna para conferir às relações humanas segurança para logro dos fins. Numa sociedade em desenvolvimento – em constante transição –, canalizar o processo social, abrir vias normativas para disciplinar os interesses, compondo harmonicamente os individuais com os transindividuais é sempre atividade que se desdobra em ritmo mais lento que as mudanças científicas e tecnológicas. Daí a necessidade desta interpretação adaptada às transformações e apartada de qualquer mecanicidade da lei geral ao caso individual. Se o jurista não vai além das diretrizes do ordenamento – nem contra ele –, supre vazios normativos, contorna imperfeições. Desta forma, não deixa de cumprir a função jurisdicional e nem por isso atenta contra a ordem jurídica, pois há, antes, no sistema jurídico, uma potência lógica expansiva imanente. A função jurisdicional ou encontra o direito explícito, ou o desenvolve quando implícito. Algo implícito não é novo, já existe, não está por "criar", mesmo porque este ofício está resguardado à função legislativa (VILANOVA, 2003, p. 463ss).

Os princípios constitucionais consubstanciam premissas básicas, representam a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica e, inevitavelmente a partir deles, deve iniciar a tarefa de interpretação (BARROSO, 2004, p. 151ss). Nesta extensão, a Constituição Federal de 1988 elegeu no art. 170, que trata da ordem econômica, os seguintes princípios que devem reger toda e qualquer atividade deste cunho: I- soberania nacional; II- propriedade privada; III- função social da propriedade; IV- livre concorrência; V- defesa do consumidor; VI- defesa do meio ambiente; VII- redução das desigualdades sociais e regionais; VIII- busca do pleno emprego; IX- tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. No caput do artigo, ainda se faz menção à observância da justiça social e existência digna assegurada a todos.

Mesmo um olhar desatento logo percebe que essa principiologia é contraditória e pouco esclarecedora de um caminho econômico a ser seguido. Por exemplo, livre concorrência não rima com tratamento favorecido. Cabe ao jurista a interpretação harmônica destes princípios, onde um não signifique necessariamente a exclusão do outro, mas a sua utilização racional em maior ou menor grau de acordo com a sua prioridade. É a ponderação (Abwägung): se dois princípios colidem, se algo é proibido segundo um princípio e segundo outro o mesmo é permitido, deve um dos dois recuar (ALEXY, 2006, p. 78s, 143s). Assim sendo, pode-se dizer que, diretrizes que são, princípios impõem limites fundados em critérios racionais. O limite da livre iniciativa deve esbarrar na defesa ao meio ambiente e aos consumidores (ANTUNES, 2005, p. 13); empresas que explorem a atividade com OGMs para inseri-los no mercado de consumo devem trilhar suas atividades por meio da responsabilidade ambiental e da proteção à figura do consumidor.

O problema da tutela jurídica do meio ambiente se manifesta a partir do momento em que sua degradação passa a ameaçar não só o bem-estar, mas qualidade de vida humana, se não, a própria sobrevivência do ser humano (SILVA, J. A., 1998, p. 9). No art. 225, caput, da Constituição, o meio ambiente foi elevado à categoria de direito fundamental. Estende-se a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida –, elegendo, ainda, como diretriz, o desenvolvimento sustentável, sendo incumbência do Poder Público e da coletividade a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Dentro dos esquemas tradicionais, fica dificultada a compreensão do meio ambiente como um direito difuso. Até então, a noção predominante de direito esteve baseada na idéia de uma relação material subjacente, ao passo que a defesa dos interesses difusos não se adaptam a essa perspectiva. O que informa os interesses difusos é a participação democrática na vida da sociedade, daí dizer-se que toda questão suscitada pelos interesses difusos é política em essência. A construção pragmática do Direito depende de lutas que os cidadãos reputem legítimas contra atividades que lesem seus interesses. Embora ainda aquém do satisfatório, o desempenho de indivíduos, ONGs e do próprio Ministério Público em demandas jurídico-ambientais é merecedor de destaque: é cada vez mais corriqueiro o fato de que os Tribunais têm servido de barreira às tentativas escusas de governos e grandes empresas no desenvolvimento de atividades sem as devidas cautelas para com o meio ambiente, nele compreendida a saúde humana – representada no dispositivo mencionado por meio da sadia qualidade de vida (ANTUNES, 2005, p. 16ss).

O reconhecimento e a proteção dos direitos estão na base das constituições democráticas modernas: sem direitos fundamentais reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não há condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em face do estágio de desenvolvimento tecnológico-científico atual, onde, como se afirmou, o paradigma liberal-individualista se encontra ultrapassado, faz sentir-se a necessidade de englobar o direito ao meio ambiente no rol daqueles fundamentais. Assim, emergiram os chamados direitos de terceira dimensão, dentre os quais afirma-se, sem receio, que o mais importante é aquele reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito a viver num ambiente não-poluído. Inclusive, já se cogita sobre direitos referentes aos efeitos cada vez mais impactantes da pesquisa biológica que permita a manipulação do patrimônio genético de cada indivíduo [01], sendo certo que essa nova vertente não há de se restringir a pessoas, abrangendo quaisquer outros organismos vivos, uma vez que, tal qual aludido, já existem claras evidências da urgência de um modelo ecocêntrico (ANTUNES, 2005, p. 20ss). Seria incoerente e insustentável defender o oposto, quando, conforme se defende, manipulações genéticas em organismos destinados ao consumo não estão isentas de causar danos substanciais à saúde do homem. Para tanto, é indeclinável que toda e qualquer atividade de manipulação genética seja norteada pelo princípio da precaução e sujeite-se ao estudo prévio de impacto ambiental.

2.2 O Princípio da Precaução: da Construção Teórica à Aplicação pelos Tribunais

Ao lado do princípio da cooperação [02], orientador de uma atuação conjunta entre Estado e sociedade, e do poluidor-pagador, que visa à internalização dos custos externos de deterioração ambiental, está o princípio da precaução (Vorsorgeprinzip), surgido na Alemanha na década de 1970.

Este princípio corresponde à essência do Direito Ambiental. Indica uma atuação racional para com os bens ambientais, com a mais cuidadosa apreensão possível dos recursos naturais, indo além de medidas simplórias para afastar o perigo. É, na verdade, uma precaução contra o risco, na medida em que objetiva prevenir uma suspeição de perigo ou garantir uma suficiente margem de segurança da linha de perigo (DERANI, 1997, p. 165).

Sua política ambiental não se limita a proteger o homem e o meio ambiente contra riscos inaceitáveis, mas se compromete a fazer com que até mesmo riscos de degradação ambiental enquadrados em níveis aceitáveis sejam reduzidos ainda mais. Há esse nível de risco – risco residual –, que é tolerável ou tão baixo em magnitude ou probabilidade que a escassez dos recursos naturais e, no caso dos alimentos transgênicos, os impactos sociais e econômicos adversos das medidas adotadas ditam se o risco deve ou não ser repassado (REHBINDER, 2005, p. 20). Este fato – o de eventuais impactos sócio-econômicos indesejados destas medidas determinarem se um risco será repassado e, caso seja, até que ponto é considerado suportável – reflete bem a forma com que critérios pragmáticos determinam o alcance do princípio jurídico. [03]

Não raro, as situações que surgem são aquelas que se apresentam na fronteira da investigação científica e, em vista disto, nem sempre a ciência pode oferecer ao Direito uma certeza quanto a determinadas medidas que devam ser tomadas para evitar alguma conseqüência danosa ao meio ambiente e à saúde. O que, hoje, pode ser visto como inofensivo, amanhã poderá ser considerado extremamente perigoso ou até mesmo o contrário. Toda a questão gira em torno de saber quais são os limites entre o avanço do conhecimento e a irresponsabilidade pura e simples.

Ainda que pesquisas e experimentos com OGMs sigam protocolos internacionais e sejam dirigidos com seriedade e segurança, há a possibilidade inerente a esses projetos de que determinado produto ou procedimento seja responsável por esta ou aquela doença ou anomalia ambiental. Por isto, o caráter indispensável e basilar do princípio da precaução, uma vez que é o princípio jurídico apto a lidar com quadros da tutela preventiva, nos quais o meio ambiente [04] venha a sofrer impactos causados por novos produtos e tecnologias que ainda não possuam um acúmulo de informações suficientes para assegurar quais as conseqüências que poderão advir da sua liberação no ambiente (ANTUNES, 2005, p. 31s).

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A aplicabilidade do princípio impõe o desenvolvimento de uma série de ações básicas governamentais. Os desdobramentos concretos das políticas públicas que devem ser adotadas com base no princípio da precaução consistem na defesa contra o perigo ambiental iminente, no afastamento ou na diminuição do risco e na proteção à configuração futura do ambiente, o que, sem dúvida, exige desde uma legislação que vise a esses objetivos até a execução de planos de uma política de proteção ambiental coesa.

Precaução quer dizer cuidado – in dubio pro securitate –, está diretamente ligada aos conceitos de afastamento de perigo e segurança das gerações futuras. É a partir desta premissa que deve não só se considerar o risco iminente de uma determinada atividade, mas também os riscos futuros decorrentes de empreendimentos humanos, jamais captados pela nossa compreensão e pelo atual estágio de desenvolvimento em toda intensidade. O alcance deste princípio depende, portanto, substancialmente, da forma e da extensão da cautela econômica: a tarefa do Poder Público é a de prevenir danos ambientais antes mesmo que eles aconteçam, devido a sua essência irreversível. Diante destes reflexos ainda imprevisíveis que o consumo de OGMs pode causar, o modelo não deve identificar, primeiro, um risco para, só depois, afastá-lo. No lugar de se questionar "causaria o alimento transgênico ‘x’ um dano?", seria contraposta a indagação: "precisamos do OGM ‘x’?" (DERANI, 1997, p. 165ss).

Um instrumento relevante para esta perspectiva de cautela foi a lei 6.938/81, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, inserindo como objetivos desta política pública, no art. 4º, I e VI, a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico, e a preservação dos recursos ambientais, condicionados à utilização racional e disponibilidade permanente. Entre os instrumentos da PNMA, instituiu-se, no art. 9º, III, a avaliação dos impactos ambientais.

Em sede constitucional, só em 1988 é que foi recepcionada, no art. 225, § 1º, IV, a imposição de se realizar "estudo prévio de impacto ambiental" (EIA) para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ao meio ambiente, dando-se publicidade aos seus resultados. Embora não seja expressamente mencionado o princípio da precaução, ele passa a instruir, a partir da Constituição, todo o ordenamento jurídico ao exigir-se que se avaliem os impactos de uma atividade antes mesmo da sua execução. Portanto, elevado a nível constitucional, o princípio da precaução há de se ter em conta na interpretação da legislação ordinária em sentido amplo e na concretização de cláusulas gerais. Como as normas constitucionais precedem em hierarquia todas as demais normas jurídicas, uma disposição inferior que esteja em contradição com este princípio constitucional é passível de invalidez (LARENZ, 2005, p. 479).

Nesta linha, a resolução CONAMA 237/97, documento que estabelece critérios regentes dos procedimentos de licenciamento, passou a fixar, sem prejuízo de outras licenças legalmente exigíveis, a exigência de prévio licenciamento do órgão ambiental para atividades consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, as quais utilizem recursos ambientais, inclusive espécies exóticas e/ou geneticamente modificadas.

Os tribunais brasileiros, habituando-se a essa vertente, iniciaram a construção de uma doutrina com base no princípio da precaução, sobretudo no que concerne aos OGMs. De todos esses processos, o mais simbólico, talvez por ser um complexo divisor de águas, foi a medida cautelar [05] ajuizada pelo IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), o Greenpeace e o Ministério Público Federal contra a União, a Monsanto do Brasil Ltda. e a Monsoy Ltda., por haver sido emitido parecer técnico conclusivo para a soja Roundup Ready da Monsanto sem que se realizasse EIA/RIMA, bem como estudos sobre segurança dos alimentos e regras de rotulagem. O Juiz Federal responsável, Antônio Souza Prudente, acolheu nitidamente o princípio da precaução ao decidir, entre outras medidas que: (i) as empresas rés apresentassem estudo prévio de impacto ambiental como condição indispensável para o plantio, em escala comercial, da soja transgênica; (ii) as empresas referidas não poderiam comercializar as sementes da soja geneticamente modificada até que fossem regulamentadas e definidas as normas de biossegurança e de rotulagem dos OGMs pelo Poder Público competente; e (iii) fossem intimados os Ministros da Agricultura, da Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente e da Saúde, para que não expedissem qualquer autorização às empresas antes de serem cumpridas as determinações judiciais, ficando suspensas as autorizações que tivessem sido expedidas neste sentido (MACHADO, 2004, p. 63). Os réus recorreram da decisão para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a decisão de primeira instância foi mantida pela Juíza Relatora Assusete Magalhães. [06]

2.3.Os OGMs na Legislação Ordinária

2.3.1.Lei nº. 8.974/95

Em obediência, então, ao que determina a Constituição no art. 225, § 1º, II e V, foi aprovada a Lei de Biossegurança, nº. 8.974/95 – hoje revogada em seu inteiro teor pela Lei 11.105/05 –, que estabelecia normas para o uso das técnicas de engenharia genética, mecanismos de construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado no meio ambiente. Mesmo que seu escopo fosse a proteção da vida e da saúde humana, animal e vegetal, foi muito criticada, juntamente com o decreto que a regulamentou, pelo fato de não ter servido ao efetivo estabelecimento de uma segurança na manipulação dos organismos vivos pela engenharia genética e a liberação do seu produto no meio ambiente (LABARRÈRE, 2001, p. 102).

Ao falar em normas de segurança, a lei abarca, implicitamente, o conceito de que a engenharia genética implica riscos, os quais necessitam ser geridos. Para tanto, atribuiu ao Ministério da Saúde, da Agricultura, do Abastecimento, da Reforma Agrária, do Meio Ambiente e da Amazônia legal a fiscalização e monitoramento de atividades e projetos, a emissão de registro de produtos e a liberação no meio ambiente, a emissão de autorização e o cadastro de instituições e profissionais, desde que essas atividades envolvam OGMs. A lei definiu Organismo Geneticamente Modificado como o organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética (art. 3º, IV).

Criou, ainda, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), composta de representantes da sociedade civil, da comunidade científica e do Governo Federal, o que foi levado a efeito pelo Decreto 1.752/95, vinculando a CTNBio à Secretaria Executiva do Ministério da Ciência e Tecnologia. Outro decreto – 1.520/95 – estabeleceu a competência da Comissão em 17 incisos. com destaque para: (i) estabelecimento de normas e regulamentos relativos às atividades e projetos relacionados a OGM; (ii) classificação dos OGMs segundo o seu grau de risco; (iii) criação dos mecanismos de funcionamento das Comissões Internas de Biossegurança (CIBios) em todas as instituições que pesquisem transgênicos; (iv) emitir parecer técnico conclusivo sobre os projetos de OGMs pertencentes a um rol não taxativo previstos no Grupo II da Lei, encaminhando-o ao órgão competente; (v) emitir parecer técnico prévio conclusivo sobre registro, utilização e comercialização de produto contendo OGM ou derivado, enviando-o ao órgão competente; e, finalmente, conferiu poder discricionário à CTNBio ao (vi) exigir Estudo de Impacto Ambiental, caso entenda necessário, e Relatório de Impacto no Meio Ambiente, com exigências específicas de acordo com o nível de risco (MACHADO, 2004, p. 955). Ressalte-se que a Comissão tinha caráter consultivo e os pareceres emitidos por ela eram prévios e conclusivos.

Ademais, a CTNBio causou polêmica ao sustentar que, além de poder dispensar EIA/RIMA, seus pareceres técnicos prévios conclusivos vinculavam as decisões dos Ministérios da Agricultura, Saúde e Meio Ambiente, órgãos do SISNAMA encarregados de licenciamentos. Em parecer [07], o Ministério do Meio Ambiente, defendeu, com base no princípio da precaução, a necessidade de se elaborar EIA/RIMA, uma vez que o parecer prévio conclusivo da Comissão não tem caráter vinculante ou autorizativo. Sustentou-se o seguinte: prévio significa que o primeiro órgão a ser ouvido sobre uma autorização ou registro é a CTNBio. Só depois de sua apreciação, deveriam ser ouvidas as autoridades dos Ministérios da Saúde, Meio Ambiente e Agricultura. Já conclusivo, conduz no sentido de que a Comissão deve articular posição nítida, se favorável ou não (CAPPELLI, 2000, p. 103), nada que verse acerca da dispensabilidade de EIA/RIMA, que, como se defende, é imposição constitucional da qual é impossível fazer refugir instrumentos legais inferiores que lidem com matérias desta magnitude. E, ainda que a Administração, em casos menos graves, houvesse de se posicionar pela sua dispensabilidade, seriam os órgãos que integrassem o SISNAMA que o fariam – e não órgãos do porte da CTNBio que sequer estão arrolados entre estes. [08]

Acerca do caráter exigível do EIA/RIMA, o Supremo Tribunal Federal já examinou, em medida liminar, dispositivo da Constituição do Estado de Santa Catarina, que previa a dispensa do estudo de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais. O Relator Min. Ilmar Galvão decidiu pela realização do estudo sem qualquer exceção, uma vez que a norma impõe restrição prejudicial à tutela do meio ambiente. O caso foi apreciado pelo STF de forma definitiva, que se posicionou pela procedência do pedido [09], o Min. Sepúlveda Pertence, ao expor seu voto, mencionou o caráter absoluto desta norma, obstando quaisquer formas mais flexíveis ou permissivas. [10]

Quanto à Responsabilidade, a lei previu cinco hipóteses de crimes no art. 13: (i) manipulação genética de células germinais humanas; (ii) intervenção em material genético in vivo; (iii) produção, armazenamento, ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível; (iv) intervenção in vivo em material genético de animais; e (v) a liberação ou descarte no meio ambiente de OGM em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e constantes da regulamentação da lei. Já de acordo com a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, assumindo relevância para o estudo, estabeleceu a Responsabilidade Civil Objetiva no art. 14: "sem obstar a aplicação das penas previstas nesta Lei, é o autor obrigado, independente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade".

2.3.2.A "Nova" Lei de Biossegurança: nº. 11.105/05

Como se não bastassem todos os debates e calorosas discussões em torno da exigência de estudo prévio de impacto ambiental pela CTNBio, a natureza dos seus pareceres, inconstitucionalidades constantemente levantadas e disputas judiciais a respeito, tendo acabado de assumir a presidência, o governo Lula sofre pressão do governo do Rio Grande do Sul e de associações dos agricultores gaúchos, bem como do Ministério da Agricultura, para permitir a colheita e a venda da soja transgênica, contrabandeada da Argentina para o estado.

A Casa Civil, para dar cabo do impasse, forma uma comissão composta por nove Ministérios, a qual analisou a possibilidade de elaborar um Termo de Ajustamento de Conduta para os plantadores da soja transgênica, no qual eles se responsabilizariam por garantir uma próxima safra livre de OGMs. Entretanto, por razões não muito claras e, em sentido contrário ao da decisão do Juiz Federal Antônio Prudente, o governo decidiu-se pela Medida Provisória nº. 113, mais tarde, vertida na Lei 10.688/03, que permitiu a colheita e o consumo daquela safra, exigindo, ainda, sua rotulagem e a proibição da venda de sementes transgênicas.

O mesmo grupo de representantes dos Ministérios, pressionado pela Casa Civil, passou a se reunir, em encontros quase diários, no intuito de elaborar um novo projeto de lei dentro do exíguo prazo de trinta dias. Deu-se início a um ciclo de debates, raro na área, quando se ouviu representantes da sociedade civil no Congresso. Ainda que as idéias do grupo convergissem em diversos aspectos secundários, divergiam quanto ao caráter vinculante do parecer da CTNBio e, portanto, a quais instâncias administrativas caberia dar a palavra final com relação à liberação dos transgênicos para uso comercial e de saúde. Os Ministérios da Agricultura e da Indústria e Comércio defenderam o parecer vinculante, chocando-se, assim, com a competência dos Ministérios da Saúde, Meio Ambiente e do próprio Ministério da Agricultura em matéria de licenciamento, reduzindo-a a burocracia vazia.

Na impossibilidade do consenso, o Presidente havia recebido dois projetos de lei: um sugerindo o parecer vinculante e outro, não-vinculante. Apesar de a opinião do grupo ter sido a segunda opção, por oito votos a dois, a Casa Civil elaborou proposta final que concedia à CTNBio o parecer vinculante. A situação ensejou uma crise política em que se cogitava que a Ministra do Meio Ambiente renunciasse. O governo voltou atrás, embora, ao remeter-se o projeto ao líder governista na Câmara, Aldo Rebelo, foi ressuscitada a proposta de parecer vinculante da CTNBio no relatório. Some-se a isto o fato de que foi acrescentada ao projeto de lei a questão das células-tronco, tornando-o ainda mais polêmico e confuso.

Diante dos trâmites legislativos lentos, o governo, freqüentemente pressionado pelo governo do Rio Grande do Sul, Ministro da Agricultura e agricultores gaúchos, duas outras vezes, verte a exceção em regra. Edita Medida Provisória que autoriza o plantio, a colheita e a comercialização da soja transgênica até 2006 (LISBOA, 2005, p. 55ss).

O projeto passa, então, pelo Congresso, em março de 2005, levando o Ministério do Meio Ambiente a divulgar, no dia seguinte, nota repudiando as posturas da nova Lei. Na íntegra:

O Ministério do Meio Ambiente reitera sua posição, já conhecida publicamente, acerca do Projeto de Lei que dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança e estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), aprovado ontem pelo Congresso Nacional.

O Ministério do Meio Ambiente considera que o projeto de lei, no que se refere a transgênicos, relega os órgãos públicos que atuam nas áreas de meio ambiente, de pecuária e agricultura, de pesca e de saúde a um papel secundário, ao conferir à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) poderes exclusivos e vinculantes na liberação da produção comercial de organismos geneticamente modificados.

O Ministério do Meio Ambiente entende que o modelo de regulação adotado cassa a competência do Sistema Nacional de Meio Ambiente para avaliar impactos ambientais decorrentes da liberação de transgênicos no meio ambiente, ao atribuir à CTNBio o poder de definir a necessidade, ou não, de realização do licenciamento ambiental.

Cria-se com isso sério desequilíbrio no processo de tomada de decisão a respeito dos OGMs, em prejuízo das precauções necessárias para lidar com tecnologias cujas conseqüências nos ecossistemas brasileiros ainda não estão devidamente identificadas. Ciente da plena competência constitucional do Congresso Nacional de aprovar democraticamente as normas legais que regem o país, o Ministério do Meio Ambiente sente-se na obrigação de apontar à sociedade brasileira os potenciais riscos ambientais envolvidos no projeto de lei aprovado.

O Ministério continuará a exercer suas prerrogativas institucionais relativas à proteção e preservação do meio ambiente e à promoção do desenvolvimento sustentável, cuja premissa fundamental é a capacidade de levar em conta, nas escolhas do presente, as condições de vida a serem legadas às gerações futuras. [11] (Sem destaques no original)

Em essência, numa visão otimista, poder-se-ia dizer que a atual Lei de Biossegurança trouxe pouquíssimos avanços, quase despercebidos em face do claro retrocesso no tocante a aspectos de maior relevância, a exemplo do parecer vinculante, já tão mencionado. Sequer a fixação – indiscutivelmente necessária – de um seguro obrigatório às empresas que vierem a exercer atividades com OGMs foi instituída.

Manteve-se a definição no art. 3º, segundo a qual OGM consiste no "organismo cujo material genético tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética". A nova lei abrangeu, no art. 1º, junto às outras atividades da lei anterior, a produção, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento e a pesquisa de OGMs; proibiu a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição de uso (art. 6º), resultado das reivindicações de organismos ambientais contra a disseminação de sementes estéreis (MAGALHÃES, 2006, p. 34); determina à pessoa jurídica exploradora da atividade o dever de investigar, adotar as medidas cabíveis e informar à CTNBio, demais autoridades competentes e sociedade acerca de acidentes com OGMs (art. 7º, I, II e III); e cria o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), vinculado à Presidência da República e responsável por fixar princípios e diretrizes para a ação administrativa dos órgãos e entidades federais com competências sobre a matéria. É, ainda, incumbência sua analisar, a pedido da CTNBio, pedidos de liberação de OGMs e derivados para uso comercial sob juízos de conveniência e oportunidade sócio-econômicas e sob o interesse nacional. Por fim, avoca e decide o CNBS, em última e definitiva instância, com base em manifestação da CTNBio e, quando julgar necessário, dos órgãos e entidades referidos no art. 16 da Lei, no âmbito de suas competências, sobre os processos relativos a atividades que envolvam o uso comercial de OGM e seus derivados (art. 8º, § 1º, I, II e II).

Ainda, no teor do Decreto 4.680/03, que estabeleceu regras acerca da rotulagem de produtos de composição transgênica, a lei prevê, no art. 40, que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informações nesse sentido em seus rótulos. Institui tipos penais, nos arts. 24 a 29, entre eles, a produção, armazenamento, transporte, comercialização, importação ou exportação de OGMs ou derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização.

Alguns aspectos que, particularmente, despertam o nosso interesse merecem cuidadosa análise. Na ciência de que a atividade em torno dos OGMs é passível de desencadear conseqüências irreparáveis à saúde e ao meio ambiente, a Lei estabeleceu a Responsabilidade Civil ao antever, no art. 20, que os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão solidariamente – modalidade sem menção na lei anterior –por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa e sem prejuízo da aplicação das penas previstas na Lei. No art. seguinte, também ganhou projeção a Responsabilidade Administrativa, segundo a qual qualquer ação ou omissão que viole as normas previstas na Lei e demais disposições legais pertinentes à matéria é considerada infração administrativa. Para tanto, quando a infração constituir crime ou contravenção, ou lesão à Fazenda Pública ou ao consumidor, a autoridade fiscalizadora representará junto ao órgão competente para apurar as responsabilidades administrativa e penal (art. 23, § 4º).

A nova Lei ampliou a órbita de competências da CTNBio consideravelmente. Conferiu natureza vinculante ao seu parecer (art. 14, § 1º) e a possibilidade de deliberar em última e definitiva instância sobre os casos em que a atividade seja potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a necessidade do licenciamento ambiental (art. 16, § 3º). Como se pouco fosse, a soja geneticamente modificada resistente a glifosato teve a sua produção e comércio legalizados em todo território nacional sem maiores fundamentos.

Nesta perspectiva, assiste-se a um nítido retrocesso: um espetáculo de desrespeito aos direitos fundamentais, onde o princípio da precaução, tão caro e elementar às atividades concernentes aos OGMs, foi reduzido à letra fria da lei. Há razão de ser: um autêntico Estado de Direito é, sempre, também, um Estado da segurança jurídica, na medida em que a proteção a um direito fundamental não deve se ater a atos retroativos apenas. Extrapola-se, imperiosamente, aos atos prospectivos que visem a acarretar retrocessos ulteriores a conquistas já alcançadas (SARLET, 2005, p. 412ss). É, em virtude deste quadro, que o Direito, em que pese a sólida construção em torno da cautela para a efetiva proteção por meio da tutela preventiva, deve, também, se antecipar na ocupação do tratamento da tutela reparatória em matéria de transgênicos, uma vez que a Administração Pública tem se submetido a um dos papéis principais nesta novela de ações imprevidentes que expõem toda a sociedade a riscos incalculáveis.

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Sobre o autor
Afrânio Ferro de Novaes

Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOVAES, Afrânio Ferro. Responsabilização do Estado por danos decorrentes do consumo de organismos geneticamente modificados (OGMs). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1502, 12 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10262. Acesso em: 29 abr. 2024.

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