Artigo Destaque dos editores

Reforma da execução em Portugal:

desjudicialização ou privatização?

Exibindo página 2 de 2
13/06/2007 às 00:00
Leia nesta página:

3. Privatização?

Parece haver consenso de que houve desjudicialização e até desjurisdicionalização [18] na Reforma da execução judicial portuguesa. Mas essa desjudicialização se processa nos moldes da privatização? Seria a mesma coisa? [19] Ou uma coisa não teria relação com outra? Certamente o tema está longe de obter uma resposta final, por ser novo. Até onde podemos chegar, a resposta depende da interpretação que se dê ao texto legal. Vamos por partes.

Inicialmente, devemos observar que não estamos falando, literalmente, de privatização dos cargos de juiz ou de oficial de justiça. A profissão de solicitador de execução, não sendo antes pública, não poderia agora ser "privatizada" (sentido literal e restrito), como no caso dos notários.

A questão reside em saber se as "atribuições funcionais" dos juízes e oficiais de justiça foram privatizadas, além de serem apenas "transferidas" para o setor privado. Em outras palavras, esta "transferência" é total, definitiva, paralela (concorrente)? Qual sua essência? Não seria a primeira vez que a lei, ou órgão público por previsão legal, delega poderes ao setor privado. Essa é uma prática comum que todos conhecem. Ocorre com os notários privatizados, quando têm que atestar com fé pública, e até mesmo com os juízes arbitrais [20]. Em suma, os agentes privados têm exercido atribuições públicas, mas geralmente de forma efêmera ou muito especial, diferentemente do solicitador de execução. Torna-se, assim, difícil uma comparação com outras experiências.

Outro aspecto que devemos levar em conta ao tratar da hipótese de privatização é que, além das regras de direito administrativo, estamos falando de "direito processual", que é eminentemente público e possui regras próprias muito rígidas. Tratando-se basicamente de "litígios", as regras do contraditório exigem firmeza e imparcialidade, diferentemente das jurisdições voluntárias das meras homologações de transações, que seguem trâmites meramente administrativos mais facilmente. Mesmo na execução, são infindáveis os litígios com conotação cognitiva por vezes envolvendo terceiros, e, como sabemos, alguns casos são muito mais complexos que os da tradicional fase de conhecimento. Por isso, quando se discute a liberdade e o dever do juiz de interferir na execução, sabe-se que essa liberdade e esse dever ocorrem num nível diferente, por exemplo, daquele que ocorre com os notários ou outros órgãos burocráticos, em que o juiz só deve interferir se houver provocação do suposto lesado.

Esta questão de o juiz depender de ser provocado ou não é que nos parece relevante para caracterizar uma eventual privatização ou não. Não conseguimos, no caso concreto da Reforma de Execução de 2003, levando em conta o envolvimento do direito processual, ver outro termômetro que não este. Embora as citações teóricas que expusemos neste texto não tenham sido relacionadas diretamente com o tema "privatização" e sim com a "desjudicialização", tomamos a liberdade e assumimos o risco de concluir que os teóricos que colocam o juiz dependente de provocação para agir na execução seguem a direção conclusiva de privatização das atividades judicantes.

Já as análises que concluem que o juiz pode intervir de ofício a qualquer momento na execução vão no sentido conclusivo da não privatização. Acreditamos que, com o tempo, será difícil sustentar análises intermediárias que geram dúvidas nos conflitos entre juízes e solicitadores e entre estes e seus clientes. É certo que com a prática futura, levando-se em conta a jurisprudência e as tradições locais, estas questões processuais se definirão melhor. E ficará mais claro se Portugal precisa mesmo seguir o que vem sendo considerado paradigma para a União Européia.


BIBLIOGRAFIA

CAMPOS, Isabel Menéres, (2004), As questões não resolvidas da reforma da acção executiva, Revista Subjudice, n. 29, outubro/dezembro 2004, publicada em maio de 2005

CAPELLETTI, Mauroe GARTH, Bryant, "Acesso à justiça". Porto Alegre, Fabris, 1988.

FERREIRA, António Manuel Carvalho de Casimiro, Trabalho Procura Justiça – Os Tribunais do Trabalho na Sociedade Portuguesa, Almedina, Coimbra

FREITAS, Lebre José, (2001), Os paradigmas da Acção Executiva, Revista da Ordem dos Advogados, 2001, II,

........................(2004), O primeiro ano de uma reforma executiva adiada, Revista Subjudice, n. 29, outubro/dezembro 2004

GOMES, Manuel Tomé Soares, (2005), Balanço da Reforma da Acção Executiva – Benefícios e desvantagens da alteração do paradigma da Acção Executiva, Revista Subjudice, n. 29, outubro/dezembro 2004, publicada em maio de 2005

GOUVEIA, Maria França, (2005), Poder Geral de Controlo, Revista Subjudice, n. 29, outubro/dezembro 2004, publicada em maio de 2005

PEDROSO, João e CRUZ, Critina, (2001) "A Acção Executiva: caracterização, bloqueios e propostas de reforma", www.opj.ces.uc.pt

PIMENTA, Paulo, (2004), Reflexões sobre a nova acção executiva, Revista Subjudice, n. 29, outubro/dezembro 2004, publicada em maio de 2005

TEIXEIRA, Paulo Duarte, (2004), Apresentação da Revista Subjudice – Justiça e Sociedade, de out/dez, n.29


NOTAS

01 O Código de Processo Civil, Decreto-lei 44.129, de 28.12.1961 (que substituiu o CPC de 1939), após já ter recebido as reformas de 1995/96, sofreu a de 2003 por força do Decreto-lei 38 de 8 de março, com entrada em vigor em 15 de setembro do mesmo ano. Este Decreto-lei foi alterado pelo Decreto-lei 199/2003, de 10 de setembro, para certas retificações e, mais tarde, pela Lei 14/2006, de 26 de abril, que modificou regras de competência territorial.

02 "Agente de execução" é a designação geral do profissional liberal que atua na execução. "Solicitador de execução" foi o profissional liberal designado especificamente no caso português, sendo aproveitado o antigo "solicitador", como veremos a seguir.

03 Neste estudo propõe-se a adaptação, em Portugal, do Huissier de Justice existente na França, Canadá, Romênia, Polônia, Estônia, Lituânia e Hungria. Os autores aconselharam um profissional licenciado em Direito, Economia ou Gestão nomeado e certificado pelo Ministério da Justiça. Ainda sugeriram que tal profissional fosse chamado de "agente oficial de execução" ou, de forma mais abrangente, "agente oficial de cumprimento de obrigações (ou de créditos)". Porém, os solicitadores é que viriam a ser utilizados.

04No ano de 1926, logo após o golpe salazarista, procedeu-se a criação da Ordem dos Advogados. A seguir foi realizada a Reforma do Judiciário (Decreto 13:809 de 22 de junho de 1927, substituído no ano seguinte pelo Decreto 15:344 de 12 de abril), quando a profissão de advogado foi regulamentada detalhadamente e criada e regulamentada a profissão de solicitador juntamente com sua Câmara, órgão semelhante a uma ordem profissional. No Brasil também existiu o solicitador (não o de execução), mas, não sendo criado um órgão que representasse a profissão, esta foi aos poucos perdendo força e sendo preterida totalmente pela profissão de advogado, que possuía uma ordem profissional forte.

05A Ordem dos Notários foi criada em 2004 (DL 26/2004 de 4 de fevereiro) juntamente com seu Estatuto (DL 27/2004, de 4 de fevereiro, logo alterado pela Lei 51/2004, de 29 de outubro). Num plano geral, houve uma inversão de valores: enquanto os solicitadores passaram a ter funções públicas, os notários passaram do âmbito público para o privado.

06 Além do princípio geral de publicidade dos atos do Direito Administrativo, os atos do processo judicial também devem ser públicos em função das normas processuais. Há a exceção do segredo de justiça, mas, mesmo aqui, não se omitem à outra parte fatos e provas que interfiram no julgamento.

07 Aqui se torna "transparente", legalizado e obrigatório o que antes era ilícito e imoral: o pagamento feito por muitos advogados para que o oficial cumpra o mandado com agilidade, o que às vezes até já entrava no orçamento dado ao cliente.

08 O art. 10º do Estatuto do solicitador permite que ele seja empregado, embora o art. 103º procure preservar os deveres deontológicos do mesmo. Tratando especificamente do solicitador de execução, o Estatuto (item 2 do art. 121º) considera como impedimento "a representação judicial de alguma das partes, ocorrida nos últimos dois anos", o que nos parece pouco.

09 Poderíamos estender este ponto de conflito a outros funcionários públicos, mas, em todo caso, a decisão final seria tomada pelo juiz que tem o controle jurisdicional. Especificamente em relação ao oficial de justiça, função que não foi extinta, o solicitador passou a ter uma competência concorrente. Agora o oficial de justiça atua quando não existir um solicitador disponível que possa ser designado para um processo de execução (art. 808, 2, do CPC).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

10 A multa é aplicada em caso de "violação do dever de colaboração com a verdade" (art. 519 do CPC de Portugal).

11 Artigo 116.º do Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de abril: "Definição: o solicitador de execução é o solicitador que, sob fiscalização da Câmara e na dependência funcional do juiz da causa, exerce as competências específicas de agente de execução e as demais funções que lhe forem atribuídas por lei".

12 Ironicamente, as tabelas de honorários são amplamente combatidas pela União Européia. O "Relatório sobre a Concorrência nos Serviços das Profissões Liberais (COM/2004/83 final) não considera sequer que os preços fixos máximos protejam os consumidores, porém vê como exceção o caso dos notários, em que a regulação dos preços está associada a outras medidas regulamentares, como restrições quantitativas e proibições à publicidade" (item 36). Mas, recentemente a Autoridade da Concorrência de Portugal vem combatendo a tabela dos notários, entre outras coisas (ver "Projeto de Recomendação" sujeito à consulta pública até 27.10.2006 http://www.autoridadedaconcorrencia.pt/vImages/Projecto%20sobre%20notariado%20%20consulta.pdf).

13 No estudo do Observatório Permanente de PEDROSO e CRUZ (2001), onde se propõe a Reforma, um dos motivos apresentados para o surgimento da nova profissão de solicitador de execução é o de "aliviar o orçamento do Estado, através de delegação de uma atividade de Estado em profissões independentes" (p.184). Antes do processo moderno, na Roma antiga e no Brasil colonial, as execuções eram feitas por contratados que recebiam percentuais de 10% (dízimo), daí seus atos serem chamados de dizimação, já que iam pelos campos expropriando bens a favor da Coroa. Isso demonstra que a proposta de delegar essa função a um profissional privado não é novidade. Na Antiguidade parece que a execução funcionava, mas parece também que não agradava muito aos produtores.

14 A Reforma foi feita no Código de Processo Civil português e o processo trabalhista possui código próprio (atualmente Decreto-lei 480/99, de 9 de novembro).

15 O Ministério da Justiça de Portugal havia encomendado ao Observatório Permanente da Justiça de Portugal – órgão do Centro de Estudos Sociais (CES) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (http://opj.ces.uc.pt/) – estudos sociológicos e jurídicos que dessem fundamentação à Reforma. Os estudos, diga-se logo, não incluíram os tribunais do trabalho, embora o Observatório tenha estudos específicos sobre o tema.

16 Segundo o Observatório, em Portugal as reformas ocorridas no sistema de administração da Justiça após a Constituição de 1976 podem ser agregadas em três períodos: o período de 1977 a 1987, em que se procedeu às reformas judiciárias necessárias à dignificação e democratização do poder judicial e ao corte com o sistema judicial vigente durante o Estado Novo; o período de 1987 a 1999, dominado pela controvérsia sobre os tribunais de círculo e pela crescente desadaptação dos tribunais ao crescimento exponencial da procura; e o período de 1999 até a atualidade, em que se extinguiram os tribunais de círculo e se registrou uma tentativa de adaptação da oferta de Justiça à procura crescente, através da disponibilização de mais meios físicos e humanos e do reforço da informatização. Assim como da incorporação na política pública de Justiça das idéias de simplificação processual e de desjudicialização, em especial através da criação de meios alternativos de resolução de litígios (Item 10, das Conclusões Gerais do Capítulo VIII, p.13).

17 Serviram como verdadeira cartilha, neste sentido, os estudos de CAPELLETTI e GARTH (1988). A preocupação, no entanto, não era nova. Praticamente todas as chamadas "reformas processuais" são apresentadas para atacar a morosidade processual. Assim também foi, em Portugal. No prefácio do Código de Processo de Trabalho de 1963 (Decreto-lei n. 45.497 de 30.12) dizia-se: "a justiça do trabalho tem de ser rápida, sob pena de não ser justiça". Ver a propósito, Ferreira (2005, p.215).

18 Segundo Lebre de Freitas (2001, ps. 543-545 e 550-552), "fala-se de desjudicialização quando o tribunal não tem de intervir e de desjurisdicionalização quando, dentro do tribunal, é dispensada a intervenção do juiz".

19 Embora a desjudicialização e a privatização no neoliberalismo podem se confundidas em muitos aspectos, a primeira depende mais da importância do Judiciário e do juiz na sociedade, enquanto a privatização está mais relacionada com os aspectos administrativos e econômicos dos órgãos e profissões. Teixeira (2004, p.5) preferiu o termo "semiprivatização" para designar o que ocorreu em Portugal com a Reforma da Execução.

20 Os juízos arbitrais só atuam no processo de conhecimento diversamente do solicitador de execução, o que dificulta uma comparação melhor. Por outro lado, só quando os juízes arbitrais são obrigatórios é que poderíamos de fato vislumbrar uma desjudicialização e/ou privatização, caso contrário a situação está mais relacionada com a transação. A arbitragem embora antiga nunca conseguiu sobrepor-se ao judiciário, sendo vista mais como uma válvula de escape do "peso" do Judiciário. A exceção talvez seja no direito coletivo do trabalho, quando ela é obrigatória.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Ivan Alemão

juiz titular da 5ª Vara do Trabalho de Niterói (RJ), professor da Universidade Federal Fluminense (UFF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALEMÃO, Ivan. Reforma da execução em Portugal:: desjudicialização ou privatização?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1442, 13 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10000. Acesso em: 29 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos