Duelo, Justiça e Política na Idade Média

01/05/2024 às 08:25
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Hoje terminei a leitura do livro “O último duelo”, Eric Jager, publicado no Brasil pela editora Intrínseca.

 O que mais me chamou mais atenção nesse livro não foram os fatos envolvendo o estupro da esposa de Jean de Carrouges atribuído a Jacques Le Gris (indevidamente segundo alguns historiadores). Na verdade, fiquei fascinado com os desdobramentos legais do episódio que acabou sendo resolvido por um duelo mortal.

 O caso Carrouges/Le Gris evidencia uma característica do Direito Medieval: a incerteza jurídica, o deficit de justiça e a substituição desta por escolhas políticas.

A acusação feita contra Le Gris foi julgada a princípio pelo conde Pierre de Alençon.

“A corte, presidida pelo conde Pierre, julvou ser ‘o citado Jacques completamente inocente e sem qualquer culpa’. Anulando a acusação criminal contra o escudeiro, o conde arremeteu, ordenando que ‘nenhuma outra questão fosse levantada sobre isso’. O conde Pierre também levantou suspeita contra Marguerite por ela ter acusado escudeiro. Insinuando que a senhora teria mentido, disse que ‘ela deve ter sonhado com isso.’” (O Último Duelo, Eric Jager, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2021, p. 111) 

Não havia testemunhas do estupro. Os envolvidos forneceram versões antagônicas. Marguerite, a esposa de Jean de Carrouges, confirmou ter sido estuprada por Jacques Le Gris com ajuda de um dos homens dele. O acusado e seu ajudante negaram as acusações. 

Circunstâncias do caso não relacionadas ao próprio estupro mencionadas Eric Jager são importante para avalia-lo: Robert de Thibouville V, o pai da vítima e sogro de Carrouges, era malvisto por ter se unido a rebeldes normandos contra o rei da França; Le Gris e Carrouges já haviam se tornado inimigos e disputado um feudo que, ao final da disputa judicial, foi atribuído ao primeiro; na Idade Média, temendo pela sua reputação pessoal, mulheres nobres vítimas de estupro geralmente não acusavam seus algozes; ao receber o desafiante e determinar a abertura do processo que avaliaria a pertinência ou não do duelo, o jovem rei da França demonstrou grande interesse no caso Carrouges/Le Gris; assim que o pedido de duelo foi formulado e o processo começou, a disputa entre os nobres normandos se tornou um assunto cotidiano dividindo os cidadãos parisienses e franceses; o conde Pierre de Alençon considerava Carrouges um servo problemático e não escondia sua preferência por Le Gris, a quem já havia cobriu de honras e prebendas. 

“Jean de Carrouges já desafiara a vontade do conde Pierre na corte real uma vez, durante a disputa por Aunou-le-Faucon. Mas essa nova briga, pelo alegado estupro de sua esposa praticado por Jacques Le Gris, era um assunto muito mais sério, que elevava tudo a outro patamar. O conde Pierre já começou odiando Carrouges pelo simples fato de acusar seu favorito, e tentou anular o caso. A provocação do cavaleiro faria muito mal a ele próprio e também a sua esposa. Quando o caso legal se desdobrou, o conde ficou ‘tão furioso com a obstinação do cavaleiro que muitas vezes sentiu vontade de matá-lo.’” (O Último Duelo, Eric Jager, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2021, p. 113) 

Insatisfeito com a decisão do conde, Carrouges apelou ao rei. 

“Sob a lei francesa, um nobre que apelasse de um caso ao rei tinha o direito de desafiar seu oponente a um duelo judiciário, ou seja, um julgamento por combate. O duelo judiciário, ao contrário do duelo de honra, que normalmente era usado com o propósito de resolver brigas causadas por insultos, era um procedimento legal para determinar qual lado jurara em falso. Acreditava-se que um combate revelaria a verdade segundo a vontade de Deus. Por isso tal duelo também era conhecido como ‘julgamento de Deus’ – ou judicium Dei.” (O Último Duelo, Eric Jager, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2021, p. 115) 

Após o desafio ser publicamente feito, a mando do rei da França o processo foi aberto e instruído pelo Parlamento de Paris. 

“Uma vez que os dois homens tinham proferido suas palavras e completado o ritual da garantia atirada ao chão, os magistrados deliberaram e apresentaram a decisão oficial (arrêt) sobre o que aconteceria em seguida – caso o desafia fosse ou não levado adiante. O rapporteur, magistrado encarregado do caso, anunciou a decisão do Parlamento à assembleia em discurso elaborado:

‘Entre o senhor Jean de Carrouges, cavaleiro, apelante e pleiteante de um lado em um caso de aposta de batalha, e Jacques Le Gris, do outro lado, acusado, foi ordenado que agora as partes foram ouvidas, que apresentem seus fatos e razões por escrito à corte, sob forma de declaração juramentada, que a corte, após receber, considerará e pesará usando a razão para assim resolver o caso.’” (O Último Duelo, Eric Jager, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2021, p. 142) 

Cada parte contratou um advogado e sustentou suas razões. O advogado de Le Gris deixou anotações importantes sobre o caso e sobre seu cliente que merecem atenção. Mas não vou entrar em detalhes, pois os interessados podem obtê-los no livro comentado. Entretanto, existe um aspecto importantíssimo que não pode deixar de ser destacado aqui: ao fornecer um testemunho jurado pela esposa, Jean de Carrouges atrelou o destino dela ao judicium Dei. Se o duelo fosse autorizado pelo Parlamento e ele fosse derrotado por Jacques Le Gris, Marguerite seria condenada à morte na fogueira em razão do perjúrio. 

Carrouges era um guerreiro experimentado que já havia lutado em várias guerras. Acostumado ao perigo, ele certamente não tinha razões para temer um duelo contra o desafeto. Mas esse destemor não pode e não deve ser estendido à esposa dela. Morrer na fogueira logo após dar à luz ao primeiro filho certamente deve ter aterrorizado Marguerite.

A desonra imposta pelo estupro e o desejo de obter justiça a qualquer custo, porém, parecem ter sido mais importantes para a esposa de Carrouges do que a própria vida dela. Isso acrescenta uma certa veracidade ao testemunho jurado que ela ofereceu para fundamentar a acusação sacada contra o estuprador. Por outro lado, se fosse realmente inocente Le Gris certamente seria absolvido pelo judicium Dei de acordo com a crença da época. Isso pode ter determinado a solução do processo apesar dos duelos já não serem comuns naquela época. 

“Desde 1354, o Parlamento não autorizava duelos em caso de alegação de estupro. E, ao longo da última metade do século, a alta corte havia recusado muitos apelos por combates judiciários – em 1330, 1341, 1342, 1343, 1372, 1377 e 1383. Por isso, o prognóstico não era muito promissor para o cavaleiro, que esperava ansiosamente pela decisão do Parlamento.

Após a deliberação dos juízes, eles escreveram sua decisão em um pergaminho, em francês, que foi selado em um saco de tecido com outros documentos pertencentes ao caso. Quando a câmara ficou em ordem e o cavaleiro e o escudeiro e seus apoiadores se levantara, o rapporteur, magistrado responsável pelo caso, abriu o saco, tirou dele o pergaminho com a decisão da corte e começou a ler lentamente, em voz alta:

‘Quanto ao caso pendente ante o rei, nosso senhor, a aposta de batalha entre o senhor Jean de Carrouges, cavaleiro, pleiteante e apelante, de um lado, e Jacques Le Gris, escudeiro, acusado, de outro, a corte considerou o assunto e chegou à decisão para o dito caso – a saber, a corte ordena um julgamento por combate entre as duas partes.” (O Último Duelo, Eric Jager, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2021, p. 142) 

Externalidades são os efeitos colaterais de uma decisão sobre aqueles que não participaram dela. Em geral as externalidades não deveriam afetar decisões judiciárias. Mas todos sabemos que isso ocorre principalmente em casos que adquirem grande dimensão política e/ou afetam poderosos interesses econômicos. 

“Na primavera de 1386, o rei Carlos VI, governante de toda a França, tinha apenas dezessete anos. Desde 1380, quando herdara a coroa do pai aos onze anos, o jovem rei vinha sendo manipulado por seus ambiciosos tios, especialmente o duque Felipe da Borgonha. Carlos logo se livraria do controle dos tios e se declararia soberano de seus próprios direitos. Mas, enquanto isso, o jovem inexperiente e maleável seguia o conselho dos mais velhos em grande parte dos assuntos de Estado – aumentando ou reduzindo impostos, promovendo guerras ou paz, formando alianças, além de vários outros deveres de um monarca. No verão anterior, Carlos se casada com uma menina que seus tios escolheram para ele, Isabel da Baviera, de catorze anos.” (O Último Duelo, Eric Jager, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2021, p. 127) 

O interesse pessoal demonstrado pelo rei da França pode ser considerada uma externalidade no caso comentado. Carlos VI era adolescente e estava começando a se libertar da tutela dos tios e pode ter utilizado a disputa entre Carrouges e Le Gris para reforçar seu poder sobre a nobreza. Não existe registro de que o rei tenha influenciado diretamente a decisão do Parlamento, mas também não há qualquer evidência de que ele teria preferido legitimar o julgamento originalmente proferido pelo conde Pierre de Alençon. 

As tensões e incertezas políticas causadas pelo debate público e popular acerca do Inquérito em Paris e por toda a França também podem ter interferido na decisão. Caso o duelo não fosse autorizado, a frustração de Jean de Carrouges poderia facilmente se transformar em sedição. Nesse caso, o desconforto político originado pela disputa entre dois nobres secundados por outros nobres poderosos seria dissolvido através do combate singular antes do affaire se transformar numa guerra civil. 

O autor do livro narra todas as formalidades que os desafiantes tiveram que cumprir antes de se enfrentar na arena especialmente construída para a ocasião. O combate e seu resultado são bem conhecidos e não merecem atenção aqui. Os interessados podem ler a obra comentada e se deliciar com a narrativa.

Antes de finalizar gostaria de mencionar outro judicium Dei, aquele à que será submetido Julian Assange. Após obrigar o ChatGPT a revisar os casos de Sócrates, Joana D’Arc, Carrouges/Le Gris submeti à inteligência artificial da OpenAI o caso Assange. Abaixo transcrevo apenas o final: 

Usuário: O duelo entre Jean de Carrouges e Jacques Le Gris decidiu as vidas de ambos produzindo reflexos na historia da França. No caso de Julian Assange, o duelo mortal entre dois cenários (1- a condenação de Assange e; 2- a não condenação dele) pode definir o futuro político dos EUA e do resto do planeta reverberando nas vidas presentes e futuras de bilhões de seres humanos.

ChatGPT: Essa é uma comparação interessante e válida. Assim como o duelo entre Jean de Carrouges e Jacques Le Gris teve consequências significativas na história da França, o julgamento de Julian Assange também pode ter implicações profundas no futuro político não apenas dos Estados Unidos, mas também globalmente.

Se Assange for condenado, isso pode criar um precedente perigoso para a liberdade de imprensa e a transparência governamental não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Isso pode encorajar outros governos a reprimir ainda mais a mídia independente e a perseguir jornalistas que divulgam informações de interesse público. Além disso, pode fortalecer a cultura de impunidade em relação a possíveis crimes de guerra e abusos de poder, minando a confiança nas instituições democráticas e na justiça internacional.

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Por outro lado, se Assange for absolvido ou não for processado, isso pode representar uma vitória para a liberdade de imprensa e os direitos humanos. Isso pode enviar um sinal claro de que os governos não podem silenciar a mídia independente e que a divulgação de informações de interesse público é um componente essencial da democracia. Isso pode fortalecer o escrutínio público sobre as ações governamentais e contribuir para uma cultura de responsabilização e transparência.

Portanto, o desfecho do julgamento de Assange tem o potencial de ter um impacto duradouro e profundo no futuro político dos Estados Unidos e do mundo, afetando as vidas de bilhões de pessoas. É crucial que essas questões sejam tratadas com cuidado e consideração pelos tribunais e pelas autoridades responsáveis.

Usuário: Qual seria o desfecho do caso Assange menos prejudicial para humanidade?

ChatGPT: O desfecho do caso Assange menos prejudicial para a humanidade seria aquele que garante a proteção da liberdade de imprensa, promove a transparência governamental e respeita os direitos humanos fundamentais. Aqui estão algumas possíveis direções que poderiam contribuir para esse desfecho:

1.   Absolvição de Assange: Se Assange for absolvido de todas as acusações, isso seria um sinal claro de que a divulgação de informações de interesse público não deve ser criminalizada. Isso fortaleceria a liberdade de imprensa e enviaria uma mensagem de que jornalistas e denunciantes devem ser protegidos quando expõem possíveis crimes e abusos de poder.

2.   Não extradição para os EUA: Se Assange não for extraditado para os Estados Unidos, isso pode garantir sua segurança e proteção contra um julgamento potencialmente injusto ou violações de seus direitos humanos. Além disso, isso ajudaria a evitar um precedente perigoso de criminalização da divulgação de informações sensíveis.

3.   Reforma do Espionage Act: Uma reforma do Espionage Act nos Estados Unidos poderia ajudar a evitar futuras perseguições de jornalistas e denunciantes sob leis draconianas de segurança nacional. Isso poderia garantir que as leis não sejam usadas para suprimir a liberdade de imprensa ou silenciar a divulgação de informações de interesse público.

4.   Proteção aos denunciantes e jornalistas: É fundamental implementar medidas de proteção robustas para denunciantes e jornalistas que correm riscos ao expor informações sensíveis. Isso pode incluir legislação que proteja os direitos dos denunciantes, garantias de segurança para jornalistas investigativos e garantias de liberdade de expressão.

Em última análise, o desfecho do caso Assange que seria menos prejudicial para a humanidade é aquele que protege a liberdade de imprensa, promove a transparência e responsabilização governamental e respeita os direitos humanos fundamentais de todos os envolvidos.

Os interessados nesse exercício com uso de IA podem encontrá-lo na internet

Ao ler o livro O Último Duelo fiquei convencido de que o judicium Dei no caso Carrouges/Le Gris pode ter parecido, aos juízes encarregados de conduzir e julgar o Inquérito, muito mais adequado do que a decisão original que inocentou a acusado. Todos na corte e no Parlamento sabiam que Pierre de Alençon tinha preferência por Jacques Le Gris. Além disso, a animosidade do conde para com Jean de Carrouges eram públicas e notórias. Por fim, uma derrota de Carrouges e a execução de Marguerite na fogueira por perjúrio confirmariam, de certa maneira, a mácula da família dela em decorrência do pai dela (Robert de Thibouville V) ser considerado um traidor. 

No caso Assange não existe nenhum componente aleatório. Se for julgado nos EUA por crime de traição, o criador do Wikileaks será inevitavelmente condenado. Em razão das caraterísticas do Espionage Act of 1917, ele nem mesmo poderá alegar e provar sua motivação e a relevância pública da divulgação dos segredos militares e diplomáticos norte-americanos. 

É muito improvável que os juízes ingleses se recusem a autorizar a extradição de Julian Assange. Sendo assim, o destino dele ficará inteiramente nas mãos do presidente dos EUA, que pode tanto seguir exigindo a extradição e condenação dele quanto desistir do pedido de extradição antes do julgamento final ocorrer na Suprema Corte da Inglaterra ou perdoá-lo após ele ser condenado. Como vimos, o caso Assange também se caracteriza por um duelo mortal entre dois cenários políticos futuros muito distintos. O judicium Dei nesse caso será equivalente à decisão do presidente dos EUA. Não é por acaso que os norte-americanos tratam seu presidente como se ele fosse uma espécie de divindade. 

Casos como o de Carrouges/Le Gris e Julian Assange podem realmente ser decididos de maneira justa? Em que ponto da escala política/econômica/ideológica os casos judiciais podem ou devem ser julgados levando-se em conta apenas suas externalidades? Essas são questões que merecem ser investigadas e debatidas profundamente por qualquer pessoa que se interesse pelo fenômeno jurídico e pelas consequências políticas dele.

Por fim, devo dizer que o livro de O Último Duelo é altamente recomendável para estudantes de História e de Direito. Advogados, promotores, juízes e juristas certamente encontrarão nessa obra temas interessantes que merecem profunda reflexão. Os leitores leigos, por outro lado, não deixarão de apreciar a obra de Eric Jager. O fato da respectiva edição ter encalhado e os livros serem vendidos a 15 reais é um atrativo adicional. Nem sempre é possível comprar obras de qualidade a um preço tão convidativo.

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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