A origem da alienação fiduciária

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04/12/2023 às 11:48
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SUMÁRIO

Introdução; 1. O surgimento da fidúcia; 2. A fidúcia romana; 3. A fidúcia do direito inglês; 4. A alienação fiduciária no direito brasileiro.

RESUMO

Este artigo científico tem como intenção analisar as origens históricas da alienação fiduciária um importante instituto jurídico com implicações significativas no contexto do Direito, além do grande impacto que gera na economia nacional. De forma a discorrer sobre a origem da alienação fiduciária, investigando as raízes históricas da fidúcia desde a Roma Antiga, passando pelo direito germânico e inglês, até chegar ao contexto do direito brasileiro. Esse histórico fornece uma compreensão desse instituto ao longo dos séculos, demonstrando o quanto sua evolução o modificou e o trouxe até os dias atuais para legislação brasileira.

Palavras-chave: Fidúcia. Pacto. Confiança.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como pretensão compreender com base na Jurisprudência e doutrina os diversos entendimentos em torno da origem da alienação fiduciária.

A alienação fiduciária de bens imóveis é um tema de grande relevância no âmbito do Direito, que combina elementos históricos, teóricos e práticos, influenciados por diversas tradições jurídicas ao longo dos séculos.

Como objetivo geral identificar sua evolução, as modificações realizadas perante as demandas das massas econômicas, sua presença cultural, e personagens que permeiam o instituto.

Essa investigação busca delimitar a trajetória da fidúcia, até o momento em que adentra o direito brasileiro. Delimitando a dúvida investigativa, como problema principal da pesquisa, identificar o motivo pelo qual o instituto perdura ao longo dos anos, ao ponto de ser aplicado ainda hoje.

Para tanto foi utilizado como método de pesquisa o indutivo e como técnicas, a do referente, da categoria, da revisão bibliográfica e a do fichamento.

  1. O SURGIMENTO DA FIDÚCIA

No período pré-clássico, que abrange desde o início de Roma até a Lei Abetuma, com data incerta, mas estimada entre 149 e 126 a.C., o pactum (acordo) era adicionado ao ato de alienação de bens, que envolvia a transferência de propriedade por meio da mancipatio ou in iure cessio. Nesse pactum, o fiduciário se comprometia a devolver a coisa ao fiduciante ou a dar-lhe um destino específico. No entanto, esse pactum era considerado um nudum pactum, ou seja, um contrato desprovido de uma ação judicial associada a ele2.

A fidúcia, com sua essência de confiança e segurança, desempenhou um papel essencial nos negócios, mercados em geral e no desenvolvimento econômico. Ela sempre esteve interligada aos modos de contratos e propriedade, que são fundamentais para as bases econômicas. Trazendo uma pretensão de desenvolvimento dos mercados financeiros e de capitais, muito atrelado com o setor imobiliário, atraindo a este, muita relevância, e de modo social, com extensa geração de empregos3.

Portanto, nessa fase evolucionária do instituto, o fiduciante deveria confiar exclusivamente na boa-fé do fiduciário em relação ao cumprimento de seu compromisso de restituição ou destinação, pois não poderia obrigá-lo a cumprir tal compromisso perante o pretor. Já no direito clássico, do período da Lei Abetuma até o fim do reinado de Diocleciano, em 305 d.C., esse pactum fiduciae passou a ser sancionado por meio de uma actio in factum (ação de fato), sendo, portanto, incluído na categoria dos pactos sancionados por ações, mais especificamente na modalidade do pacta pretoriana, a tutela decorria da atuação do pretor. Entretanto, a actio in factum ainda não significava o pleno reconhecimento do direito civil em relação à fidúcia. Esse reconhecimento ocorreria quando a fidúcia fosse admitida como um contrato pelo ius civile, que era o direito Romano, finalmente4.

A fidúcia é uma forma de garantia que se assemelha às garantias reais tradicionais, mas possui uma eficácia ainda maior. Nos contratos de garantia convencionais, como na hipoteca, o devedor oferece um bem ou direito como garantia, mas mantém a propriedade desse ativo em seu patrimônio. Na fidúcia, por outro lado, o devedor efetivamente transfere a propriedade ou titularidade do ativo ao credor, que passa a ser o proprietário fiduciário desse ativo até que a dívida seja totalmente paga5.

Claramente na fidúcia ocorre a transmissão de propriedade, para o credor, traz grande segurança e satisfação, garantindo de forma pactuada, que receberá do devedor a obrigação determinada. Agindo assim como proprietário do bem, mas com o dever de restituir totalmente essa propriedade, assim que o devedor satisfazer a obrigação6.

O adquirente detém uma propriedade plena, ao mesmo tempo que tem a obrigação de dar determinada destinação para o bem ou direito que recebe, de forma a se tornar um contrato bilateral, composta de dois acordos, sui generis, único, fiduciante com a transferência da propriedade, e fiduciário que, com direito de propriedade erga omnes, perante todos, obrigada a dar determinada destinação, de acordo com o pacto adjeto7.

  1. A FIDÚCIA ROMANA

O direito romano tem uma influência profunda e duradoura em muitos sistemas jurídicos, incluindo o direito brasileiro. Suas regras, princípios e categorias serviram como base para o desenvolvimento do direito ao longo da história. No contexto dos direitos reais de garantia, como a alienação fiduciária, podemos traçar paralelos entre as práticas romanas antigas e as formas modernas de garantia de empréstimos. Essa continuidade destaca a importância do conhecimento da história do direito, para entender a evolução das instituições jurídicas ao longo do tempo8.

No sistema jurídico romano, existiam três formas distintas de direitos reais de garantia, cada uma com uma construção jurídica única: a fiducia em posse de um amigo (fiducia cum amico)9; a fidúcia em relação ao credor, onde um bem ficava em posse do credor (fiducia cum creditore); o penhor (pignus); e a hipoteca (hypotheca)10.

Na fidúcia cum creditore, ocorria a constituição da propriedade fiduciária como garantidora de créditos, onde o devedor vendia certos bens ao credor, para mais adiante recuperá-los assim que realizasse o pagamento da dívida11.

O penhor envolvia a transferência da posse da coisa oferecida como garantia ao credor, que, nessa posição, possuía proteção possessória contra qualquer interferência externa, inclusive por parte do proprietário original. O credor não tinha o direito legal de dispor da coisa, mas efetivamente possuía a mesma, garantindo assim a possibilidade de obter o pagamento da dívida por meio dela, caso o devedor não cumprisse com suas obrigações. A criação do penhor ocorria por meio de um acordo sem formalidades específicas, seguido pela entrega da coisa ao credor12.

A hipoteca, constituía uma garantia real estabelecida apenas pelo acordo, sem que a propriedade ou posse da coisa fosse transferida ao credor. A coisa oferecida como garantia ficava vinculada simplesmente pelo acordo, conferindo ao credor um direito oponível contra todos (erga omnes) de obter a satisfação de seu crédito por meio dela, caso o devedor não o liquidasse. Observa-se, portanto, que o penhor e a hipoteca eram institutos muito semelhantes, com a diferença de que, na hipoteca, o devedor não perdia a posse da coisa para o credor. Além disso, na prática, o penhor passou a ser utilizado principalmente para coisas móveis, enquanto a hipoteca era mais comum para bens imóveis13.

A fidúcia com relação ao credor (fidúcia cum creditore), com origens mais remota do direito romano, traz o conceito de venda fictícia, ou provisória, convenção entre as partes, onde uma, recebido de outra, a propriedade sobre a coisa, obrigava-se a restitui-la assim que alcançado o fim, estipulado no pacto14.

Com a garantia de pagamento da dívida de dois modos, garantia pessoal ou real; no primeiro, um terceiro assume a responsabilidade da dívida caso o devedor não a cumpra; na outra um bem fica vinculado para atingir a mesma finalidade. Em essência o direito real de garantia, dando ao credor o direito sobre uma coisa alheia, assim garantindo a satisfação de um crédito15.

De bona fides, ou seja, de boa-fé, em que o fiduciário adquiria a propriedade da coisa, que apenas em face de sua boa-fé poderia o fiduciante reaver o bem, e não o valor equivalente, exigível com fulcro na prestação obrigacional, caso o primeiro recusasse a restituição16.

MEZZARI17 defende que além da existência da fidúcia cum creditore também existia a fidúcia com amicu:

Na fidúcia com amicu havia a transferência da propriedade da coisa para um amigo, na salvaguarda de interesses do próprio fiduciante. Essa transferência ocorria em situações especiais de longas viagens, risco de perecer na guerra, perdas advenientes de eventos políticos etc., e não tinha finalidade de garantia, mas apenas dava ao fiduciário (amico) a custódia ou administração do bem, embora perante terceiros fosse este o proprietário, permanecendo oculta a convenção que limitava suas atribuições.

Essas transferências traziam um cunho de confiança, realizadas para pessoas amigas, pois aquele que recebia a propriedade era detentor da integral confiança do transmitente18.

Conforme MIRANDA19 a fidúcia cum creditore e a fidúcia cum amico de fato “o traço em comum dessas duas modalidades era a efetiva transferência do bem, com a ressalva que essa transferência estava condicionada ao cumprimento de algo pactuado entre as partes, sendo, portanto, um ato solene.”

A fidúcia com relação ao credor (fidúcia cum creditore), entendia-se pela transferência de propriedade ao credor, com a garantia de uma obrigação principal, transferidos bens, através do mancipatio, onde o credor obrigado a restituir a propriedade, assim que receber o que lhe era devido na obrigação principal garantida20.

A fidúcia, tem o requisito da entrega da coisa ao fiduciário, e com o acordo de vontade, que faz o fiduciário a restituí-la, ou dar-lhe determinada destinação, o pactum fiduciae, só tinha eficácia obrigacional, retomando o bem, transferência pelo fiduciário ao fiduciante21.

É importante notar que aqui reside uma diferença fundamental em relação aos outros institutos; no penhor e na hipoteca, o credor tinha apenas o direito de possuir (ius possidendi): o primeiro a partir da constituição do penhor, e o segundo a partir do descumprimento da obrigação principal. O Contrato de fidúcia classifica-se como real, pois ocorre a transferência da propriedade com o mancipatio. Gera obrigações para o fiduciário e eventuais ao fiduciante, de forma a se tornar bilateral imperfeito. E de boa-fé, presente a fides, que se traduz em fé, lealdade, apartado pelo pactum fiduciae. Contudo, essas duas formas de pactos fiduciários apresentavam uma falha significativa, prontamente identificada pelos historiadores: a devolução da propriedade constituía uma obrigação pessoal do credor, mas não possuía caráter real22.

No caso de um inadimplemento dessa obrigação, dispunha o fiduciante, apenas, inicialmente, sanção moral, e posteriormente ação específica que veio a surgir posteriormente nos fins da República, o actio fiduciae contraria, para quebrar a eventual resistência do fiduciário ao cumprimento do contrato23.

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Junto a este surgiu o actio fiduciae directa, apresentados por Chalhub24:

a) actio fiduciae directa, facultada ao fiduciante na hipótese de o fiduciário deixar de restituir a coisa ou de lhe dar a destinação convencionada; e
b) actio fiduciae contraria, facultada ao fiduciário na hipótese de o fiduciante deixar de cumprir as obrigações que eventualmente tenha contraído.

Mesmo com o Actio fiduciae, o credor como dono da coisa, não era impedido de dispor do bem até sua devolução, ficando bem protegido. Já o dono da coisa dada em garantia, não gozava da mesma segurança, onde possuía menos proteção25.

A fidúcia constituída para dar garantia ao credor, fez surgir uma outra modalidade na fidúcia, pois caso o devedor não cumprisse com o pagamento de sua dívida, o credor poderia vender o bem para pagamento do débito, e se com a venda não venha a cobrir a dívida, de forma a ser restituído um valor inferior ao débito, o devedor continuaria a obrigado a pagar a diferença. Assim constituiu-se o pacto de ser lícito vender a coisa, (pactum ut vendere liceret), podendo o devedor também receber o possível excesso, nomeado de supérfluo26.

  1. A FIDÚCIA DO DIREITO INGLÊS

O direito anglo-saxão apresentava duas figuras semelhantes, ao que continha no direito romano, referente a alienação fiduciário, que seriam o “montigare” e o “trust”. Mas que difere em pontos específicos, conforme será apresentado.

Ao se tratar do antigo direito inglês, traz à tona o nominado montigare, podemos notar a semelhança com o direito romano, pois representava a transmissão de propriedade ao credor, a título de garantia, na função de salvaguarda de um débito, celebrado por meio de um pacto adjeto, que obrigava o credor a restituir a coisa ao devedor. O que afasta esse instituto da base romana seria o direito imobiliário, que no montigare , é atribuído ao credor, sob condição resolutiva27.

Trazendo à tona a etimologia da palavra, composto por duas palavras de origem francesa, em que “mort” carrega consigo o significado de “morte”; e “gage” o significado de “promessa”. Percebendo assim como “promessa de morte”, de acordo com Ribeiro28 que complementa:

Há nesta expressão um contraste imediato com a “vivium vadium” ou “lanving pledge” (ou seja, “promessa de vida”), pelo qual o devedor que havia obtido dinheiro emprestado, transferia um imóvel ao seu credor; a fim de que este usasse os frutos da terra até que o débito fosse integralmente quitado de modo que o imóvel jamais “morria” para o devedor.

Na mortuum vadium, perfaz assim ao mortgage, o credor detém a propriedade do imóvel, que poderá ser extinta com o pagamento da dívida, mediante data limite de seu vencimento. Essa incerteza, do pagamento mediante o prazo convencionado, vem a justificar a expressão mortigage. E caso o pagamento não aconteça, a propriedade, seria tomada do devedor, portanto, tornando-se “morta” perante o devedor29.

Da mesma forma do direito romano, esse instituto também se baseia na confiança em si, como característica comum. No direito medieval inglês o penhor de coisas móveis se traduzia na transferência da posse ao credor, enquanto no moderno direito anglo-saxônico sucedeu como uma “hipoteca imobiliária”. Onde o devedor detinha a posse do bem, enquanto prestava o pagamento ao credor, e se esse não pagasse o débito, aí sim, o bem seria transmitido ao credor, sendo esta evolução o chattel mortigage30.

Neste processo de evolução, de forma clara, narra Lima31:

Mas, ultrapassada esta primeira fase, passou o Chanceler, como representante do Rei e como fountain of justice, a intervir na relação negocial, expedindo um writ, contendo uma vocatio in ius para que o fiduciário comparecesse perante ele. Comparecendo o réu e reconhecida como fundada, não in ius ou at law, mas in equity, isto é, segundo os dados imperativos da consciência, a pretensão do autor, impunha o Chanceler a ele um determinado modo de comportamento ou de praticar determinado ato, sob pena de prisão. Intervinha, assim, a equity para modificar uma situação definitiva decorrente da common law, e isto porque, sob o ponto de vista da equity, seria iníquo que o mortgagor, por não ter cumprido a prestação no dia fixado no ato constitutivo, perdesse irremediavelmente a res, cujo valor era consideravelmente maior do que o montante do débito.

Nesse contexto, começou a ser considerado inaceitável, sob o ponto de vista da equidade, que o fiduciante, por não cumprir o pagamento conforme estabelecido, perdesse permanentemente a propriedade do bem dado como garantia, cujo valor era maior do que o montante devido. Como resultado, foi criada uma figura no direito anglo-saxão conhecida como equity of redemption. Através desse instituto, o tribunal concede ao devedor o direito de reaver a posse do bem dentro de um prazo razoável, desde que pague a dívida, os juros e uma compensação pelos atrasos32.

Por outro lado, o credor possui o direito de requerer que a Corte exija que o devedor exerça o direito de equity of redemption dentro de um prazo determinado, sob a ameaça de perder permanentemente a propriedade. Para evitar esse procedimento, as partes passaram a inserir no contrato, uma cláusula autorizando o credor a vender o bem em caso de inadimplência33.

Outra instituição relevante no direito inglês, que merece análise devido à sua importância, é o trust. Essa figura tem suas origens no instituto jurídico chamado "uses", criado no direito medieval inglês. O use consistia em uma relação jurídica em que um indivíduo (feoffee to use), era investido de poder jurídico, cujo exercício deveria beneficiar economicamente outra pessoa, (cestui que use)34.

Tanto o instituto do martigage quanto o do trust surgiram na Inglaterra, e, embora tenham origens diferentes, compartilham a característica comum de confiança, expressa pela palavra "trust"35.

A origem do trust pode ser explicada pela distinção entre os sistemas de common law e equity no direito inglês. No sistema da common law, as obrigações geralmente surgiam apenas a partir de contratos e delitos. Em contraste, na equity, a confiança desempenhava um papel crucial. Nesse contexto, quando bens eram entregues a pessoas de confiança com a finalidade de administração por um período determinado, isso não implicava automaticamente uma obrigação jurídica de restituição desses bens36.

O trust se configura como um arranjo jurídico em que certos bens são entregues a uma pessoa, para que ela os utilize conforme um encargo específico que lhe foi confiado, baseado na confiança depositada no receptor desses bens. O trust era operacionalizado pela transferência da propriedade para um receptor, pelo instituidor, que tem o objetivo de beneficiar economicamente uma terceira pessoa, o beneficiário37.

De fato, trust significa confiança, e essa confiança não surge da lei ou do direito, mas sim da probidade e consciência do receptor. Portanto, a restituição do bem ou a sua entrega ao beneficiário implicava apenas um dever moral, baseado na consciência do receptor. Dessa forma, o use representava a transferência de direitos a um terceiro, para que ele administrasse propriedades em benefício do cedente ou de outra pessoa designada por ele. O termo "use" foi adotado porque a transmissão de um bem de A para B continha a expressão "to the use" (para o gozo) de C38. Uses que no decorrer do tempo passou a ser chamado de trusts.

Nessa estrutura de relação jurídica, temos os seguintes atores: o instituidor do trust, sendo ele que entrega os bens e transmite efetivamente o domínio sobre eles, sendo denominado settlor; o receptor dos bens, que simultaneamente assume a obrigação de administrá-los, é chamado trustee, aquele em que se confia; e o beneficiário, a pessoa em favor de quem o trust é criado é chamada de beneficiary ou cestui que trust, aquele em que se confia39.

A característica fundamental do trust é a dupla propriedade dos bens, o que proporciona flexibilidade ao sistema e segurança às partes envolvidas. No entanto, essa dupla propriedade dos bens pode criar desafios ao ser adaptada por sistemas jurídicos baseados no direito romano, como o sistema brasileiro, que tradicionalmente adere ao princípio da unicidade ou exclusividade de domínio. Isso significa que, sob a perspectiva do direito brasileiro, a ideia de duas entidades simultaneamente detendo a propriedade de um bem pode ser complexa e requerer adaptações significativas40.

Esses modelos são impostos pela Corte, de modo que, além do direito real que liga a coisa ao beneficiário, a Corte supervisiona e controla a atuação do receptor dos bens na implementação do trust, mantendo-o dentro dos limites estabelecidos para o trust que lhe foi confiado41.

É essencial destacar que, apesar da grande relevância do desenvolvimento da propriedade nesse contexto, o cerne do trust está intrinsecamente relacionado ao sistema processual, a partir do qual surge um padrão de confiança e consciência estabelecido pelo Judiciário. Nesse sentido, mais do que apenas buscar ostentar o direito de propriedade, o beneficiário prioriza a garantia de que, em certas circunstâncias, as Cortes protegerão seus interesses através do controle do processo42.

O sistema de proteção judicial evidência que, ao longo da evolução histórica do trust, embora a jurisprudência tenha estabelecido um sólido mecanismo de controle para salvaguardar os interesses do beneficiário, a essência do instituto continua a ser a confiança, sendo notável a peculiaridade de que o Judiciário detém a autoridade para determinar os padrões de lealdade e consciência a serem seguidos pelo receptor43.

Observa-se que a existência de uma dupla propriedade não possui equivalente nos sistemas de filiação romana. Não se referindo a uma propriedade condominial ou enfiteuse, mas sim a uma verdadeira propriedade separada, própria e exclusiva de cada indivíduo sobre o mesmo bem. Nesse contexto, coexistem a propriedade formal, limitada ao propósito para o qual foi constituída, e a propriedade de fruição44.

É válido ressaltar, além da dualidade da propriedade que confere ao beneficiário o direito real e a fruição da coisa, que o elemento primordial do trust, responsável por proporcionar segurança e estabilidade na relação jurídica, é o sistema de proteção exercido pelo poder judicante. Esse sistema emana modelos de consciência e fidelidade que o trustee é obrigado a observar em sua relação com a propriedade confiada no trust, sendo esses modelos impostos pela Corte45.

A grande distinção ontológica entre os sistemas jurídicos romano-germânico e anglo-saxão tem sido objeto de estudo para muitos juristas, tanto nacionais quanto estrangeiros46.

Neste contexto nas descreve Siqueira47:

No Brasil os negócios fiduciários têm ampla utilização, que se estende desde a gestão de patrimônio até a garantia de créditos. Ocorre que a ausência de uma regulamentação genérica com respeito a esse tipo de negócio acaba por não deixar que o instituto tenha uma utilização ainda maior. Faz falta um modelo normativo. (...) Mas o sistema brasileiro também tem vantagens sobre o sistema anglo-saxão. A propriedade fiduciaria resultante de um negócio fiduciário é mais segura para o fiduciante e o beneficiário no Brasil, do que o bem em trust na lei anglo-saxônica. Isso acontece porque enquanto no Brasil a efetividade do negócio juridico fiduciário típico é ipso iure, ou seja, dada pelo direito, em relação a todos, no Reino Unido terceiros de boa-fé que obtenham o bem em trust podem, dadas algumas condições, mantê-los, e o beneficiário terá direito apenas para pedir ao trustee o valor do bem para substituir o perdido.

Embora tenham se dedicado a analisar o trust e suas diferentes fases evolutivas, alguns encontraram obstáculos intransponíveis. No entanto, não se pode negar a relevância desse instituto nas diversas modalidades e concepções de negócios fiduciários48.

  1. A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA NO DIREITO BRASILEIRO

A fidúcia foi suprida do corpus Iuri civilis no século VI e devido isso, não foi acolhida nos sistemas jurídicos romano-cristão, ignorado no código francês de 1.804, alemão de 1.896, e no código civil brasileiro de 1.91649, sobrevivendo apenas na lei germânica e na legislação do commom law, na figura do trust. Mesmo sido ignorada pelo legislador de 1.916, não estando presente no negócio jurídico tradicional típico, a fidúcia esteve presente no direito brasileiro, de forma esporádica como meio de concretização de negócios e garantias50.

Nas palavras de Pereira51:

A supressão da fidúcia do Corpus Ius Civilis do século VI importou em que não recebeu acolhida nos sistemas romano-cristãos. Não penetrou no Código Civil Francês de 1804, nem no BGB de 1896, e em consequência os Códigos todos, filiados à corrente napoleônica e à tedesca, o ignoraram. Inclusive o brasileiro de 1916. [...] Deixando de ser negócio jurídico contratual típico, nem por isso ficou entre nós repudiado inteiramente. Filho órfão, e mesmo enjeitado, encontrou, todavia, abrigo em uma e outra manifestação esporádica. A doutrina não o desconhecia de todo, e os tribunais, embora com certa relutância e alguma vacilação, entenderam que não seria uma figura contratual contrária ao nosso sistema.

Apesar disso a alienação fiduciária em garantia, existindo a mais de dois mil anos, pode ser vista como um instituto jurídico moderno, que foi moldado e adaptado pelas situações fáticas, a atender as necessidades das massas, com agilidade jurídica52.

O surgimento da alienação fiduciária no Brasil, ocorreu apenas em 14 de junho de 1965, com a Lei n° 4.728, regulamentando os mercados de capitais, que em seu objetivo trazia como objeto de garantia apenas bens móveis, especialmente a garantir em contratos de venda de eletrodomésticos e veículos automotores53.

Foi em 20 de novembro de 1997, com a Lei n° 9.514, que o instituto abrangeu seu objetivo, agora também sendo aplicado aos bens imóveis. Este novo modelo adotado, seria o trust inglês, que por sua vez, derivado do fideicomisso germânico54.

O surgimento dos bens imóveis no instituto, se deu em um momento de grande desenvolvimento econômico, onde as garantias reais que existiam, sendo hipoteca, penhor e anticrese, não satisfaziam a necessidade, as estruturas jurídicas tradicionais não eram adequadas para atender às demandas necessárias para a produção em série de bens de consumo e para financiar a aquisição desses bens pela população, e trazer uma garantia do investido. A situação evidenciada naquele momento, era que a anticrese, já se dava como um instituto ultrapassado, que não atendia, assim já abandonada; a hipoteca, por se manter o domínio do bem em posse do devedor já não atendia mais as demandas efetivas que buscava o mercado; por último, o penhor, exigia a tradição do bem ao credor, o que não atendia as necessidades, em atendimento as grandes demandas55.

O Código Cível de 2022, por não harmonizar a matéria, convencionou de forma breve a alienação fiduciária, mantendo os sistemas anteriores que o precederam, sem os revogar, dificultando a compreensão no direito pátrio. Conforme Ribeiro56, o direito brasileiro, com suas leis fragmentas ainda hoje, dificulta a compreensão:

O direito brasileiro peca por não ter um modelo normativo, com regulamentação genérica e princípios fundamentais acerca do negócio fiduciário, a permitir uma construção dogmática do arquétipo. Ainda hoje os negócios jurídicos que se fundam na fidúcia se encontram espalhados de modo ainda desconexo em Códigos e leis extravagantes o que exige grande esforço hermenêutico para se angariar uma possível teoria geral. Ademais, o regime jurídico fragmentado em diversos diplomas legais merece críticas porque ao serem editados em contextos diversos dão ensejo a regras heterogêneas e aspectos incoerentes aos institutos que possuem a mesma matriz estrutural.

Assim como uma forma para equilibrar o “problema”, e chegar à fonte de interesse, deve-se ter em mente que a alienação fiduciária em garantia, é espécie do gênero negócio fiduciário. E por mais que as normas estejam fragmentadas, dois sistemas prevalecem, sendo o primeiro o regime jurídico geral, contido no Código Civil, entre os artigos 1.361 a 1.368-B, onde o objeto é coisa móvel infungível, e o credor, pessoa qualquer, física ou jurídica.

Já o sistema jurídico especial, abrange um conjunto de normas estravagantes divididas assim por RIBEIRO57:

(a)- Decreto-lei 911/1969, acrescido do art. 66-B da Lei 4.728/1965 (atualizados pela Lei 10.931/2004), tratando da propriedade fiduciária incidente em bens móveis fungíveis, além da cessão fiduciária de direitos sobre a coisa móvel ou de títulos de crédito, restritos a figura do credor fiduciário à pessoa jurídica instituição financeira: e
(b)- Lei 9.514/1997 que trata da propriedade fiduciária imobiliária.

De forma que o Código Cível em seu artigo 1.368-A define, As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial”58.

Denota que bens fungíveis e demais espécies de titularidade fiduciária sujeita-se, as respectivas leis especiais, operando o Código Civil no que não for incompatível com a lei especial59.

Nas palavras de Miranda60 “o conceito de fidúcia é o ato entre declarantes ou manifestantes de vontade, onde um dos quais confia (espera) que o outro se conduza como ele deseja e, pois, tem fé.” De maneira que haja confiança, com objetivos pré-estipulados, para alcançar a determinada transação objeto principal.

Considerações Finais

O objeto desta pesquisa foi estudar a origem do instituto da Alienação Fiduciária, mais especificamente direcionado a sua evolução histórica, as modificações realizadas perante as demandas das massas econômicas, sua presença cultural, e personagens que permeiam o instituto.

Delimitando a trajetória da fidúcia, até o momento em que adentra o direito brasileiro. Identificando o motivo pelo qual o instituto perdura ao longo dos anos, ao ponto de ser aplicado ainda hoje.

Remonta em Roma seu surgimento, por volta de 149 e 126 a.C., e curiosamente se tratava de algo para amigos, para alguém a quem realmente se confiava um bem de grande valor, para posteriormente poder ser resgatado, sem nenhum tipo de intervenção estatal, por livre vontade do detentor, apenas forçado pela moral e boa-fé.

Além da fidúcia com “amico”, também se deu a fidúcia “cum creditore”, onde o bem ficava em posse do credor, como uma forma de garantir um crédito, o devedor vendia o bem ao credor, para na sequência, após o pagamento da dívida ter o bem restituído. Caso o adimplemento não ocorresse o bem continuava com o credor, e ele poderia o vender para quitar o débito.

Em ambas ocorria a transferência da propriedade, mas que sempre se respaldava em um pacto conhecido como “mancipatio”, que assegurava que a pós cumprida a condição, o bem retornava ao devedor. Como dito inicialmente o fiduciante apenas dispunha da sanção moral, mas posteriormente nos fins da República surgiu “actio fiduciae directa” e “actio fiduciae contraria”, para que ambas as partes pudessem reivindicar frente ao não cumprimento do acordado.

Por mais que a fidúcia foi amplamente utilizada no período clássico e até pós-clássico, ela caiu em desuso, não sendo incluída nem nas Compilações de Justiniano.

Após este, o direito inglês também apresentou sua modalidade de fidúcia, que ocorria através de dois institutos, conhecidos como “montigare” e otrust”.

No primeiro, nota-se semelhança com o direito romano, pois apresenta a transmissão da propriedade ao credor, como uma garantia de dívida, que era celebrado por um pacto adjeto, forçando o credor a devolução do bem, assim que a dívida fosse paga, mas o que diferencia evidentemente é que aqui a posse e propriedade do bem é transferida ao credor.

Já o “trust” tem sua estrutura para benefício econômico de outra pessoa. O titular dos bens, os transfere a um receptor, baseado na confiança, este investido de poder jurídico, dava destinação ao bem conforme lhe foi confiado, para benefício econômico de outra pessoa.

Encerrando o artigo investiguei a entrada da alienação fiduciária no direito brasileiro, que ocorreu com a Lei n° 4.728 em 14 de junho de 1965, que regulamentou os mercados de capitais, com objeto os bens móveis, como eletrodomésticos e automotores. Sendo aplicado para bens imóveis apenas em 20 de novembro de 1997, com a Lei n° 9.514.

Assim denota a reposta ao questionamento levantado, a fidúcia como forma de garantia, veio a atender as necessidades comerciais como uma garantia mais atrativa que as demais, de forma a ser restaurada e modificada. Percebe-se que no direito brasileiro ela vem em um momento oportuno, proporcionando um avanço na economia imobiliária, sendo este um dos grandes norteadores econômicos.

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS

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Sobre a autora
Pâmela Regina da Costa

Acadêmica do curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí.

Informações sobre o texto

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